Top 10 Kid Abelha

Por Alexandre Inagakiterça-feira, 26 de abril de 2016

Foi através de uma nota no Facebook que o Kid Abelha anunciou, oficialmente, o fim de suas atividades como banda. De modo discreto, quase que parafraseando aquele poema de T. S. Eliot que dizia que o mundo expira não com uma explosão, mas com um suspiro. Escrever este post foi a maneira que encontrei de reagir a essa notícia, buscando valorizar o legado de uma banda que, antes de se chamar Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens, correu o risco de ser chamada de Tia Harry e Os Três Porquinhos ou de Morangotango (vide este documentário exibido no Multishow). E de agradecer, é claro, a um grupo que compôs boa parte da trilha sonora da minha juventude.

* * *

Top 10 Kid Abelha:

10. “Pintura Íntima” (Paula Toller e Leoni, 1983) - O primeiro grande hit do Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens foi um excelente cartão de visitas da banda: um imediato clássico pop que se tornou onipresente nos playlists das FMs no ano de 1983, com versos juvenis tergiversando sobre amor e sexo emoldurados por um arranjo marcado pelo onipresente saxofone de George Israel.

Muita gente desconhece o nome desta canção, que é facilmente encontrada no YouTube sob a alcunha alternativa de “Fazer Amor de Madrugada”. Seu refrão antológico, diga-se de passagem, nunca agradou muito ao autor da letra. Em declaração feita a Ricardo Alexandre para o livro Dias de Luta - O Rock e o Brasil dos Anos 80, Leoni declarou: “Eu pensava num tema como ‘Sexual Healing’, de Marvin Gaye, em que os problemas são resolvidos na cama, dão uma virada no relacionamento do casal“. Sem conseguir encontrar uma rima mais satisfatória para “madrugada”, o refrão acabou terminando mesmo em “amor com jeito de virada”, inspirando inúmeros virunduns como “amor com jeito de pirada” ou “amor com jeito de piada“. Mas pior mesmo foi ver a galera completando os espaços em branco da letra e cantando, em altos brados, versos mais infames ainda:

Fazer amor de madrugada
(Em cima da cama, embaixo da escada)
Amor com jeito de virada
(Primeiro a patroa, depois a empregada)”

9. “Apenas Timidez” (Paula Toller e George Israel, 1996) - Faixa 6 de Meu Mundo Gira em Torno de Você, o álbum de estúdio de maior sucesso comercial da carreira do Kid Abelha (com mais de 500 mil cópias vendidas), “Apenas Timidez” faz parte da longa linhagem de canções confessionais sobre relacionamentos que marcou toda a carreira da banda:

Confesso entretanto que sou incapaz
De exibir assim minhas marcas nos jornais
Prefiro deixar o tempo passar
Quebrando uns pratos até você chegar
Não pense que é covardia
É apenas timidez
Só me serve a sua companhia”

Vale mencionar, a propósito, que a regência e o arranjo de cordas desta gravação ficaram por conta de um dos maiores instrumentistas da música popular brasileira, o maestro Wagner Tiso.

8. “Lágrimas e Chuva” (George Israel, Bruno Fortunato e Leoni, 1985) - Este sucesso do melhor álbum do Kid Abelha é uma composição da fase áurea em que Leoni integrava a banda. Em entrevista concedida ao site Universo Musical, Leoni comenta: “A letra é muito densa, mas os arranjos são muito pop, muito leves. Ou seja, não se percebia que a letra estava tratando do que tratava.” Fato: “Lágrimas e Chuva” é uma canção sobre alguém que está escrevendo um bilhete de suicídio. Repare, por exemplo, em versos como “Eu sou capaz de certas coisas que eu não quis fazer“, ou “Será que existe alguém/ Ou algum motivo importante/ Que justifique a vida/ Ou pelo menos esse instante“.

Curiosidade: o videoclipe de “Lágrimas e Chuva” foi dirigido por Boninho, que hoje em dia é mais conhecido por ser o diretor do Big Brother Brasil na Globo.

7. “Como Eu Quero” (Paula Toller e Leoni, 1984) - Balada presente na trilha sonora de dez em dez bailinhos da vassoura e festinhas de garagem dos anos 80, esta singela composição sobre um relacionamento amoroso, à primeira vista, parece ser uma daquelas músicas fofinhas que namorados dedicam um ao outro.

Mas, sob um olhar mais atento, “Como Eu Quero” revela ser uma canção sobre dominação e o desejo de moldar o outro (“o que você precisa é de um retoque total, vou transformar o seu rascunho em arte final”). O significado da palavra “como” do refrão não diz respeito à intensidade de um desejo, pois, e sim à maneira como uma pessoa pretende impor suas ordens e comandos ao seu par amoroso a fim de que ele se transforme em alguém “bem melhor” (ao menos sob o ponto de vista de quem dá as ordens e arma a “cilada” citada na letra). Quem assistiu a Um Corpo Que Cai, por exemplo, poderá recordar as cenas em que Judy Barton muda seus figurinos, trejeitos e corte de cabelo a fim de atender aos pedidos de John Ferguson, que a moldou para que ela se parecesse cada vez mais com Madeleine Elster, a mulher por quem se apaixonara antes.

Em tempo: embora muita gente ouça o refrão de “Como Eu Quero” lembrando da melodia de “Time After Time”, de Cyndi Lauper, a inspiração confessada por Leoni para este hit do Kid Abelha foi a linha de baixo usada pelo Duran Duran em “Save a Prayer”. Sobre o videoclipe da música, vale citar que ele foi dirigido por José Emílio Rondeau, um verdadeiro pau pra toda obra do rock brasileiro dos anos 80: Rondeau foi jornalista da revista Bizz, produtor do álbum de estreia da Legião Urbana e diretor de diversos outros clipes daquela época, dentre eles os de “Pro Dia Nascer Feliz” (Barão Vermelho), “Cena de Cinema” (Lobão e os Ronaldos) e “Tempo Perdido” (Legião Urbana).

6. “Grand’ Hotel” (Paula Toller, George Israel e Lui Farias, 1991) - Eis o grande sucesso do álbum Tudo É Permitido, uma balada pungente sobre um amor que se transformou em “bom dia”, cuja letra foi escrita a quatro mãos por Paula e seu marido Lui Farias.

O texto de release do disco, assinado pelo vocalista da Legião Urbana Renato Russo, descreve desta maneira a música: “O título se refere à revista de fotonovelas dos anos 60: ‘Se não tivéssemos exagerado a dose, poderíamos ter vivido um grande amor’. É a balada do disco, especialíssima como só o Kid sabe fazer; uma canção pop clássica, dessas que vai certamente vir a ser a ‘nossa canção’ de tantos jovens apaixonados.”

Curiosidade: você já ouviu “Gran Hotel”, a versão em espanhol deste hit?

5. “Garotos” (Paula Toller e Leoni, 1985) - Os versos iniciais desta balada com um quê de bossa nova e outro quê de jazz a la Style Council poderiam ter sido escritos na agenda de qualquer mocinha adolescente dos anos 80, desiludida com suas primeiras experiências amorosas:

Garotos gostam de iludir
Sorriso, planos, promessas demais
Eles escondem o que mais querem
Que eu seja outra entre outras iguais”

O vídeo acima, de um playback da música feito no Globo de Ouro, já não conta com a participação de Leoni, que havia saído da banda em fevereiro de 1986. O desligamento daquele que era o baixista e principal compositor do grupo ocorreu após um incidente folclórico nos bastidores de um show que reuniu Leo Jaime, Herbert Vianna e Kid Abelha. Em depoimento dado a Jamari França para o livro Os Paralamas do Sucesso - Vamo Batê Lata, Herbert descreveu como foi esse episódio:

Teve uma briga feia por questão de ego. No show do Léo, ele chamou a Paula e o George Israel para cantar, mas esqueceu de chamar o Leoni, que se sentiu preterido e ficou pau da vida. (…) E aí, na saída, eles começaram a discutir, a Paula começou a gritar, o Leoni segurou ela e ela falou: ‘Me larga, me larga’. Quando ele largou, ela estava com um pandeiro na mão e mandou uma pandeirada na cabeça dele e rasgou na cabeça.

4. “Amanhã é 23” (Paula Toller e George Israel, 1987) - Tomate, o primeiro álbum de estúdio gravado após a saída de Leoni, é uma típica obra de transição: as músicas são irregulares e parecem tentar seguir diversas direções. A crítica, que nunca foi benevolente com o Kid Abelha, aproveitou a ocasião para descer ainda mais a lenha no grupo, vide o trecho de uma resenha publicada na Folha de S. Paulo: “Quem gosta de jogar tomates no Kid Abelha não vai ter trabalho desta vez. Merecidamente, o tomate já está na capa do novo disco da banda. (…) No primeiro LP de estúdio sem o seu principal compositor, o Kid Abelha abandonou seu estilo, partiu para uma incursão no funk e perdeu o rumo por completo.

Porém, em meio às pedradas e porradas desferidas pela crítica musical, houve um sucesso que provou que haveria um futuro promissor sem Leoni: “Amanhã é 23”, canção de forte conteúdo autobiográfico. Paula Toller, que foi criada pelos avós paternos sem a presença da mãe, nasceu em 23 de agosto. Sabendo dessa história, não é difícil imaginar que a música pode ser interpretada como o relato imaginário, em primeira pessoa, de uma mãe lamentando a falta de proximidade de sua filha.

Há vinte anos você nasceu
Ainda guardo um retrato antigo
Mas agora que você cresceu
Não se parece nada comigo”

Curiosidade: Tomate é o último álbum assinado por Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens. Depois, as abóboras foram deixadas para trás e a banda assumiu a alcunha definitiva de Kid Abelha.

3. “Educação Sentimental II” (Paula Toller, Leoni e Herbert Vianna, 1985) - No press-release de lançamento do segundo álbum da banda, Paula escreveu:

Em pouco tempo nossas vidas mudaram muito. Quase todos saímos de casa, passamos a nos sustentar por conta própria, vivemos juntos, nos separamos, tocamos muito, brincamos, discutimos, disputamos opiniões e decisões, nos enrolamos entre a vida pessoal e a profissional, a privada e a pública. (…) Chamamos de ‘Educação Sentimental’ porque é um processo que estamos passando.

De fato, poucos títulos seriam mais apropriados para um disco do Kid Abelha, que tomou emprestado o nome do romance homônimo escrito por Gustave Flaubert em 1869 para nomear o seu segundo trabalho, com a missão de suceder a verdadeira coletânea de hits que havia sido Seu Espião, álbum de estreia do grupo. Desafio mais do que bem sucedido: Educação Sentimental emplacou diversos sucessos, dentre os quais a melancólica “Educação Sentimental II”, parceria de Paula Toller com dois de seus ex-maridos (Leoni e Herbert Vianna). A música retoma, sob o ponto de vista feminino, um tema esboçado pelos Paralamas do Sucesso na faixa “Mensagem de Amor”, de 1984: a incapacidade que os livros pareciam ter de dar luz aos problemas cotidianos daquela geração. Em “Mensagem de Amor”, Herbert canta:

Os livros na estante já não tem mais tanta importância
Do muito que eu li
Do pouco que eu sei
Nada me resta
A não ser a vontade de te encontrar

Em “Educação Sentimental II”, Paula Toller ecoa dramas sentimentais similares:

A quem eu devo perguntar aonde eu vou procurar
Um livro onde aprender a você não me deixar
Agora você vai embora e eu não sei o que fazer
Ninguém me explicou na escola
Ninguém vai me responder”

2. “Os Outros” (Leoni, 1985) - Comparações, embora sejam invariavelmente injustas, são inevitáveis na vida. E foi pensando em um grande amor, que serviria de base de comparação para todos os relacionamentos amorosos posteriores, que Leoni emulou o espírito de Chico Buarque (especialista em compor músicas sob a ótica feminina) e criou mais uma jóia pop que ganhou na voz de Paula Toller o veículo perfeito.

A melhor análise sobre “Os Outros” foi feita pelo jornalista Carlos Eduardo Lima, que escreveu:

É em ‘Os Outros’ que o bicho pega mesmo. Aqui uma menina faz declaração de amor cortante para o ex-namorado, despindo-se de qualquer orgulho fútil (talvez o grande inimigo do amor, mas este já é outro papo), colocando o coração na garganta. Poucas vezes ouvi em algum idioma algo tão singelo, sincero e verdadeiro. Paula empresta um tom de sofrimento e melancolia meio alegre, como quem tentasse eclipsar o sol com um grão de areia, chegando a admitir a derrota como em ‘ninguém pode acreditar na gente separado, eu tenho mil amigos mas você foi meu melhor namorado’ ou então ‘procuro evitar comparações entre flores e declarações, eu tento esquecer (…), a minha vida continua mas é certo que eu seria sempre sua (…), depois de você, os outros são os outros e só’. A música era tão autenticamente feminina que era estranho um homem cantá-la, mas quase dava para pegar a tristeza no ar.

1. “Nada Tanto Assim” (Leoni e Bruno Fortunato, 1984) - A geração do rock brasileiro dos anos 80 foi pródiga em revelar letristas de alto quilate, como Renato Russo, Cazuza e Arnaldo Antunes. Porém, creio que nenhuma música dessa geração foi tão precisa em descrever o modo DDA constantemente ativado e a maneira como nos interessamos por mil e uma coisas simultaneamente, porém sem sermos capazes de nos aprofundar nelas:

Só tenho tempo pras manchetes no metrô
E o que acontece na novela
Alguém me conta no corredor
Escolho os filmes que eu não vejo no elevador
Pelas estrelas que eu encontro
Na crítica do leitor”

26 anos após a gravação desta música, em 2010, foi lançado um livro sobre a internet descrito desta maneira:

As pessoas têm acesso quase ilimitado às informações na grande rede, mas perdem a capacidade de focar em apenas um assunto. A mente do internauta está caótica, poluída, impaciente e sem rumo, e este livro é um manifesto destacando a importância da calma e do foco.

O livro é Geração Superficial: o que a Internet Está Fazendo com Nossos Cérebros, de Nicholas Carr, e eu diria que, em 1984, “Nada Tanto Assim” já descrevia os mesmos sintomas que seriam multiplicados pela profusão de conteúdos na web.

Só me concentro em apostilas
Coisa tão normal
Leio os roteiros de viagem
Enquanto rola o comercial
Conheço quase o mundo inteiro por cartão postal
Eu sei de quase tudo um pouco e quase tudo mal
Eu tenho pressa
E tanta coisa me interessa
Mas nada tanto assim”

Além dos versos afiados de Leoni, vale mencionar que tanto Bruno Fortunato, na guitarra, quanto George Israel, no saxofone, fizeram solos instrumentais que merecem destaque. “Nada Tanto Assim” é, enfim, um clássico do rock brasileiro e um exemplo significativo do quanto as canções do Kid Abelha foram subestimadas ao longo do tempo.

* * *

Valeu, Kid!

P.S. 1: Que tal conferir outras listas musicais que já foram publicadas por aqui? Alguns exemplos: Top 10 David Bowie, Top 5 Cássia Eller, 5 grandes baladas nacionais dos anos 00, 10 clipes do rock brasileiro dos anos 90, Top 5 músicas do Roberto Carlos e 8 clipes do rock brasileiro dos anos 80.

P.S. 2: Iniciativa bacana: a Lorrene Carolline criou uma playlist no Spotify com as músicas citadas neste post. :)

Pense Nisso!
Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.

Categorias:

Comentários do Facebook

Comentários do Blog

  • Amo Kid Abelha! Também marcou minha vida, desde o final da minha infância. Um pena que acabou!

    Te acompanho há bastante tempo e te redescobri recentemente. Se puder, conheça o meu blog: http://www.divandosemdrama.com.br.

    • Olá Silvia, tudo bem? Obrigado pela leitura e pela visita! Ah, e parabéns pelo seu blog, gostei das suas dicas para aliviar a ansiedade. :)

Pense Nisso! Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista e consultor de comunicação em mídias digitais. É japaraguaio, cínico cênico. torcedor do Guarani Futebol Clube e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos. Já plantou semente de feijão em algodão, criou um tamagotchi (que acabou morrendo de fome) e mantém este blog. Luta para ser considerado mais do que um rosto bonitinho e não leva a sério pessoas que falam de si mesmas na terceira pessoa.

Parceiros

Mantra

A vida é boa e cheia de possibilidades.
A vida é boa e cheia de possibilidades.
A vida é boa e cheia de possibilidades.