“Progressiva, degenerativa e irreversível”
Por Alexandre Inagaki ≈ sexta-feira, 02 de novembro de 2007
Hoje de manhã, ainda imerso no típico estado de molesma que costuma atingir a gente em dias de feriado, zapeei a televisão e vi que o padre Marcelo Rossi estava celebrando uma espécie de “showmissa” no autódromo de Interlagos. Me despertou atenção a chamada do evento: “Show da Vida – Saudade Sim, Tristeza Não”. Concordo discordando desse mote.
Sim, neste dia de Finados reservo uma parte do dia para lembrar de meus amigos e parentes que morreram e que fazem falta por aqui. Recordo-os com carinho, resgatando os bons momentos que tive a sorte de compartilhar com eles. Porém, é mais do que natural ver pessoas que ainda sofrem pelas perdas que sofreram, e fico um tanto quanto incomodado com uma espécie de ditadura da felicidade que reina atualmente, fazendo com que seja socialmente desejável aparentarmos estar felizes, serelepes e “pra cima” o tempo todo.
Por certo não foi esta a intenção do incauto padre, mas o nome de sua showmissa me fez pensar que não é obrigação de ninguém ter de secar suas lágrimas a fórceps. Cada um reage à sua maneira e ao seu tempo às perdas que a vida nos impõe. Há os momentos de ser feliz, do mesmo modo que há momentos em que necessitamos deixar que a tristeza seja externada por meio do choro incontido e das lágrimas, certa vez definidas por Paulinho da Viola como “pedras preciosas da ilusão”.
“Fulano passou desta para melhor”. “Sicrana bateu as botas”. “O gato subiu no telhado”. Por que usamos tantos eufemismos para nos referirmos à morte, fato inevitável à vida de todos nós? Será que a tememos tanto a ponto de o simples fato de citá-la nominalmente precisar ser evitado?
Não existe consenso sobre o que ela seja. Pode ser o fim de tudo ou, simplesmente, um novo começo, o primeiro passo para um novo estágio de nossa existência no universo. Castigo absurdo, tabu delicado, condição inaceitável? Bem. o fato é que nós não gostamos de falar “nela”. Ao mesmo tempo, nutrimos um interesse que pode ser adjetivado como mórbido. Manchetes de jornais anunciam que filhos matam pais, ídolos morrem no auge de suas carreiras, serial killers atacam misteriosamente, tragédias vitimam centenas, internautas buscam no Google por fotos de acidentes. A morte nos intriga, a morte faz parte intrínseca da vida. No entanto, somos incapazes de encará-la de frente. O que se passa conosco?
Nossa relação com a morte é decidida por nossas raízes culturais. No mundo ocidental, ela é tabu. Tudo que possa recordá-la é retirado de nossa vista. Idosos são recolhidos em asilos, e os doentes morrem longe de nossos olhos, em UTIs assépticas, afastados de seus parentes. A morte é vista como nosso adversário-mor - de capa negra, rosto cadavérico e foice na mão, é a própria personificação do Medo.
Do outro lado do mundo, os brâmanes hindus a encaram como uma transição semelhante àquela que transforma uma lagarta em borboleta. Já em algumas tribos indígenas brasileiras, os velhos se deitavam na rede e simplesmente aguardavam pela hora de partir. Não comiam, nem bebiam; apenas aceitavam que sua hora tinha chegado, e se curvavam frente ao imponderável. Enquanto isso, fundamentalistas muçulmanos realizam missões suicidas, transformando-se em homens-bomba ou jogando aviões contra arranha-céus porque crêem, piamente, que ao cumprir sua missão na “guerra santa” (a maior das contradições em termos) receberão passaportes para a sonhada Terra Prometida.
Para nós, ocidentais, a coisa é bem diferente. Cada vez mais relutamos em aceitar a tal Indesejada das Gentes, e o imaginário hollywoodiano é bastante ilustrativo sobre esse assunto. Mesmo quando a morte se sobrepõe, há sempre uma maneira de se encaixar um final feliz - o casal do filme Titanic “ressuscita” no fim, e o par romântico de Ghost vive um amor que perdurará mesmo no “outro lado da vida”.
O fenômeno da edulcoração progressiva da morte no Ocidente é relativamente recente. Conforme relata o historiador Phillippe Ariès em seu livro “História da Morte no Ocidente - da Idade Média aos Nossos Dias”, foi a partir do século 18 que a morte ganhou uma conotação dramática, passando a ser vista como um ato que roubava o homem de sua família e amigos. Transformaram-na em tabu, e os familiares de um moribundo passaram a tentar poupá-lo e a ocultar de terceiros a gravidade de seu estado. Um contraste radical com o modo como a proximidade da morte era encarada no começo da Idade Média: naquela época, um moribundo recolhia-se ao seu leito na companhia de parentes, amigos e vizinhos, cumprindo um ritual de despedida. O doente pedia perdão por seus erros, legava seus bens e aguardava naturalmente pelo seu destino final, desprovido de maiores arroubos dramáticos ou macabros. Uma visão serenamente lúcida: afinal de contas, se a morte é parte essencial da vida, por que estranhá-la?
Outro exemplo cotidiano de como o mundo ocidental modificou sua postura frente à morte é o modo como os tradicionais contos de fada passaram a ser relatados. O francês Charles Perrault (1628-1703), e os irmãos alemães Jacob e Wilhelm Grimm (cujo primeiro livro saiu em 1812) foram os pioneiros a recontar em papel relatos que passavam de geração a geração, como as histórias de Chapeuzinho Vermelho, O Gato de Botas, O Pequeno Polegar e Cinderela. Na época, esses contos infantis eram vistos como uma forma de educar as crianças para os fatos da vida, e finais tristes eventualmente faziam-se necessários. Walt Disney, ao transpor tais relatos para a tela cinematográfica, preferiu oferecer a seus espectadores happy ends devidamente domesticados.
Um exemplo? A última frase de Perrault em sua versão da história de Chapeuzinho Vermelho acaba assim: “O malvado lobo atirou-se sobre Chapeuzinho e a comeu”. Seja sincero: você nunca achou uma tremenda forçação de barra um caçador ouvir os gritos da menina, salvá-la e ainda abrir a barriga do lobo para tirar a vovozinha ainda viva de lá? Outro exemplo lapidar: na história dos irmãos Grimm, a madrasta da Branca de Neve não caiu do penhasco, como mostrado no desenho da Disney. Na versão original alemã, ela foi obrigada a dançar com um par de chinelos de ferro em brasa até cair morta, em plena festa de casamento da princesa!
Pesquisa realizada pelo psicólogo americano Lisl Goodman, publicada no livro “Death and the Creative Life”, de 1981, mostra que o medo de morrer está fortemente ligado a uma frustração perante a vida. Entrevistas realizadas com centenas de pessoas entre 17 e 70 anos revelaram que as mais temerosas eram justamente aquelas que não haviam concretizado seus projetos. Segundo Goodman, “para esses a vida tinha sabor de uma obra inacabada”.
Contudo, como nos ensinaram os Rolling Stones, “I can’t get no satisfaction”. Na falta do que fazer, sempre arranjamos algum motivo para nos apegar à vida. Eu quero ver o pôr-do-sol de amanhã, sentir a brisa de cada manhã no rosto, chupar jabuticaba, correr descalço pela grama, dançar em frente ao espelho, beijar outros lábios, nutrir novos sonhos e esperanças. Enfim, viver.
A ciência avança. Os progressos da medicina, os estudos do Projeto Genoma e os novos remédios que prometem retardar o envelhecimento fazem com que deixemos de pensar em nossa finitude. E, se ela vier enfim, há quem se creia na criogenia como um meio de sobreviver à própria morte.
Robert Ettinger, professor de física da Universidade de Michigan, escreveu em 1964 um livro intitulado “A Perspectiva de Imortalidade”. A obra lançava um conceito polêmico: se, logo após a morte de uma pessoa, seu cadáver fosse imerso em nitrogênio líquido interrompendo-se o processo da decomposição), seu corpo poderia ser mantido até um futuro em que seja desenvolvida uma tecnologia capaz de reanimá-lo para a vida. Crentes nos dons milagrosos dessa técnica conhecida como criogenia, cerca de 130 pessoas estão congeladas dentro de cápsulas de aço, de cabeça para baixo e mantidas em nitrogênio a uma temperatura de cerca de 196 graus negativos (especula-se que, olha ele aí novamente, Walt Disney seja uma delas). Contudo, é opção para poucos: o custo para o congelamento e manutenção de um corpo é de 120 mil dólares.
Mas sobreviver à própria morte não necessariamente requer fortunas. Mesmo porque ninguém (com poucas exceções, como a do falecido ex-presidente João Figueiredo) deseja ser esquecido e passar a eternidade em uma lápide empoeirada e sem flores no dia de Finados. Através da arte, poetas, pintores, escultores e cineastas alimentam o desejo de permanecer para além da vida, criando obras que sejam capazes de sobreviver a suas mortes físicas. Do mesmo modo, há aqueles que criam instituições ou museus perpetuando seus nomes, como Alfred Nobel e John Rockfeller. A luta contra o olvido post mortem faz parte da condição humana.
Talvez tudo fosse mais fácil se agíssemos como certas ordens católicas em que os monges, ao se encontrarem nos corredores de um mosteiro, cumprimentam-se com a expressão “memento mori”. Que significa, em latim, “lembre-se de que você vai morrer”. A saudação, que nada possui de mórbida ou pessimista, é uma espécie de exercício espiritual para a aceitação da própria morte. Mais do que isso: é um lembrete para investir na vida.
“É preciso viver cada dia como se fosse o último”. O clichê é verdadeiro: aceitar a morte significa aprender a valorizar cada momento presente. Talvez o exemplo maior tenha sido dado pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Que, consciente da proximidade de seu fim físico, soube viver com muito mais intensidade e generosidade. E faleceu aos 61 anos, em sua casa, no dia 9 de agosto de 1997, cercado por amigos e parentes.
Mais do que a morte, é preciso dissipar em nós o medo de viver. Recordo aqui as palavras de Oscar Wilde: “São poucas as pessoas que realmente vivem; a maioria delas apenas existe”.
P.S. 1: As ilustrações deste post foram extraídas do Día De Los Muertos, excelente site que explica como o povo mexicano externa sua relação com a morte através de um feriado de três dias: uma celebração da vida na qual os mexicanos relembram e homenageiam seus entes queridos já falecidos. A propósito: se você repousar o mouse em cima das ilustrações, poderá ler alguns aforismos relacionados com o meu texto.
P.S. 2: Trechos deste artigo foram publicados originalmente na edição 082 do finado Spam Zine.
P.S. 3: Com a palavra Paulo José, ator que, apesar de ter sido diagnosticado com o Mal de Parkinson há mais de dez anos, permanece firme em suas atividades no cinema, teatro e televisão desde então:
Quando o Parkinson foi diagnosticado e o médico me receitou Prolopa, eu perguntei até quando deveria tomar o remédio. Aí, com um ar meio maquiavélico, ele me respondeu: ‘Você tem uma doença progressiva, degenerativa e irreversível’, e ficou me olhando com uma cara trágica, como se quisesse tirar minha esperança. Mas aí eu lembrei que a vida que a gente leva também é assim: progressiva, degenerativa e irreversível. Percebi ali que o homem é produzido para ter só 30 anos. Depois disso, as peças começam a sair da garantia.
Alexandre Inagaki
Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.
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