O que você quer ser quando você morrer?

Por Ana Carolina Morenoquarta-feira, 06 de junho de 2012

As peças do nosso quebra-cabeça estamos deixando, todos os dias, em lugares da internet dos quais já não nos lembramos, sob a guarda de termos de serviço que não lemos.

Talvez sempre tenha sido assim: nossos pais, avós e outros antepassados desconectados viviam o que aparecia pela frente, surfavam nas ondas do destino, de vez em quando deixavam uma delas passar porque estavam distraídos ou preguiçosos, e um dia morriam. De sopetão ou com aviso prévio, eles morreram quando o coração parou de bater, igualzinho vai acontecer comigo e contigo, ainda bem.

O que mudou, além da idade média e causas dessa mortalidade, é que eles deixaram de herança suas calças com a barra gasta de tanto arrastar, um sofá rasgado, a poupança ou as dívidas no banco, a gilete enferrujada na pia, um vinil na estante, a lista de compras na geladeira e quem sabe cartas secretas de uma antiga namorada no fundo da gaveta.

Depois de mortos, os utensílios de uso pessoal dessa gente sortuda iam para o lixo, os pertences úteis para um bazar e as cartas poderiam até quebrar o coração da viúva, mas então eram queimadas e desapareciam, ou apenas desbotavam. Os mortos viravam memórias, anedotas, jargões, princípios transmitidos indiretamente pelas lembranças subjetivas de quem participou de uma parte de suas vidas.

Nem todos conseguiram manter uma reputação positiva, é claro, mas justamente o fato de não poderem falar por si mesmos lhes confere um certo benefício da dúvida. Quando eles morreram, levaram consigo peças fundamentais para que completemos o quebra-cabeça do que foi a vida deles.

As peças do nosso estamos deixando, todos os dias, em lugares da internet dos quais já não nos lembramos, sob a guarda de termos de serviço que não lemos.

Você já buscou algum nome no Facebook de alguém que morreu de forma repentina e virou notícia de jornal? Geralmente, o perfil dessa pessoa desconhecida é aberto, e ali você descobre qual foi a última coisa que ela digitou, vê as fotos das últimas férias dela, do casamento. Você encontra o blog dela, lê seus textos escritos naqueles momentos de mágoa descontrolada que provavelmente nem ela releu nos meses seguintes, pois seguramente se arrependeria de ter publicado aquilo para quaquer um ler.

Tenho medo de poucas coisas na vida. Morrer não é uma delas, mas perder o controle da minha vida porque a tecnologia é cada vez mais avançada me parece sinal de que nossa humanidade está perdendo a corrida. Você sabe em quantos sites tem perfil? Lembra da senha de todos eles? Já fez alguma busca nos arquivos da internet atrás dos seus rastros inapagáveis?

Não precisa levantar o dedo, eu sei que você já se arrependeu de algo que já deixou registrado na internet. Enviar para o mundo aquele pensamento que mal tivemos tempo de formular é fácil porque digitar na tela sensível a toque é mais rápido que refletir sobre o que realmente queremos dizer.

Completo 30 anos nesse mês. Metade deles passei online, primeiro em bate-papos e mensageiros instantâneos com primos, amigos, uma menina com Síndrome de Down na BBS e um garoto de Karachi que usava o apelido MA$E no iCQ. Desde os 18 produzo e publico conteúdo em texto, fotos, vídeos e até em alguns arquivos de áudio.

Há anos alguma lembrança sobre o que publiquei me vem à mente esporadicamente, e instantaneamente corro para checar quão público é aquele detalhe que eu, em certo momento, achei relevante expor a um nível que eu sequer consigo medir.

Há meses penso em escrever sobre isso, mas as ondas da vida são cada dia mais parecidas com as praias do Havaí do que com a nossa pacata Enseada, no Guarujá.

Há semanas eu engasguei durante uma despretensiosa soneca. Estava sozinha em casa, acordei com a garganta fechada, saltei da cama desesperada em busca de fôlego, e em poucos segundos já respirava normalmente. Talvez eu nem sequer tenha chegado perto da morte, e por isso tenha levado ainda um bom tempo para chegar ao décimo-primeiro parágrafo desse texto que tem martelado tanto na minha cabeça. Mas vamos morrer do jeito que escolhemos viver, e gostaria de refletir sobre a possibilidade de termos concordado em deixar nossas escolhas de vida nas mãos alheias.

Esse é o primeiro de uma série de textos que eu gostaria de escrever sobre esse assunto. Privacidade, auto-censura, segurança e também a insegurança são alguns dos fatores que merecem atenção nesse debate, além dos detalhes que eu ainda não cogitei e que vocês podem sugerir nos comentários. Em breve eu volto, se até lá eu não morrer ou me distrair…

Pense Nisso!
Ana Carolina Moreno

Ana Carolina Moreno (1982) é graduada em jornalismo pela Universidade de São Paulo (2006), com especialização em Edição em Jornalismo pela Universidade da Coruña (2009). Já trabalhou em jornais, revistas e sites de notícias no Brasil e na Espanha, além de ter experiência como correspondente internacional na Argentina, Cabo Verde, Chile, França, Suécia e Turquia.

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  • Miguel Solano

    Realmente é complicado. Acho que 99% da população mundial não sabe em quantos sites tem cadastro. Mas será que não está na hora de ter um lado Público e outro Privado?

    http://www.abrindoamochila.com

  • http://www.hiperativo.com/ Davi

    Infelizmente é impossível dizer o que queremos ser quando morrer.
    Afinal, ninguém sabe ao certo o que acontecerá depois da morte.
    Muitos acreditam que iremos para um paraíso, outros, que iremos reencarnar, e outros até falam simplesmente que morreremos é acabou.
    Eu realmente espero que cada um de nós tenhamos o paraíso que desejamos e pensamos ser como é.
    Já que se não puder ser assim, a vida não teria sentido.

  • http://delamila.wordpress.com/ Camila

    Este texto tambem esta no Dela Mila. Com os devidos credito é claro. :D
    http://www.delamila.wordpress.com

  • Patrícia Abu-Jamra

    Eu quero é ser lembrada.  

  • http://www.vejaisso.com/ Felipe Veiga

    Acho que a pergunta é muito relevante, mas tudo o que nós sabemos de ciência e tudo mais, não sei se existe algo além disso que vivemos. Não faria sentido, mas talvez não precise saber. 
    Minha conclusão é que não há nada. Mas estou aberto a qualquer coisa que acontecer!

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  • Lalá L.

    Gostei do tema. E da pergunta-título. Essa nossa auto-censura e o que os outros fazem com as informações, que inevitavelmente vamos deixar são questões muito importantes mesmo.
    Nem morra, nem se distraia muito (se for possível!rsrs) e continua escrevendo.
    :)

  • Josemarcapistrano

    Ana bom dia  sua passagem por essa vida terrena estar diguinificando todo conteudo de nossas vidas. Obrigado
     

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  • Helena Moreno

    Nossa! Penso sempre nisso. Mas, como sou “das antigas”, meus pensamentos, mágoas, momentos felizes ou não, momentos de reflexão, dúvidas… e aí vai, estão todos bem acondicionados, guardados, cuidados para que eu determine o que possa ser lido, e quem poderá fazê-lo. Já estive com esta pasta nas mãos por várias vezes para dar um fim em tudo, antes que alguém leia e possa se magoar por se identificar em algumas das situações por acaso descritas; ou sentir certa soberba por se identificar como causador de momentos de grande alegria… Mas, penso: deixa para amanhã. Vou selecionar aqueles escritos que acho que valem a pena serem compartilhados. Aí, volto a me questionar: não seria bom também que saibam das minhas angústias? Na dúvida, vai ficando como está. Acho melhor continuar atenta ao que é melhor fazer antes de morrer, porque depois…

  • Léia Carvalho

    Deu até vontade de limpar tudo e começar do zero…  Mas é melhor aquietar e pensar mais antes da próxima sopa de letrinhas ser lançada no blog, no face, no caderninho de cabeceira… ou não.

  • Jose Lopes

    Muito interessante a Pergunta: O que você quer ser quando Morrer? Esta é uma questão não de escolha quando morrer. mas a escolha dever ser feita em vida.

    O conhecimento desperta a consciência individual para a realidade que o substancia, fluindo daquela aptidão adiquirda toda vez que as circunstâncias o demandam.

    Porém, as Sagradas Escrituras afirmam: “Ao Homem (Humanidade) está ordenado morrer uma única vez, e agaurdará o Juízo’ Hebreus 9:27.

    Porém, ser filho de Deus agora desde o momento em que decide aceitar a Jesus Cristo comoúnico e suficiente salvador você decide em vida. João 1:11, 3:16.

    Mas o que é a Salvação da Alma?

    É um extraordinário milagre de Deus! Salvação  é mais que arrependimento;  é mais que uma confissão de fé, é mais do que ser membro duma igreja.

    è reconhecer que é pecador, e confessar que Cristo é seu Salvador e confiar em Jesus como Senhor de sua vida.

    Portanto, decida o que você deseja após a morte: Vida Eterna com Deus ou perdição eterna sem Deus?

    Que Deus Ilumine o seu caminho e sua alma.

  • http://twitter.com/mau10 mauricio gaia

     eu tenho um combinado com um amigo. ele tem todas as minhas senhas. se por acaso, eu morrer, coisa que definitivamente não está em meus planos, ele tem a orientação para deletar todos os meus perfis asap.

    • Carol - Kakah

      Vou deixar minhas senhas num cofre no banco e um nome no testamento. Acho que (talvez e espero que eu esteja errada) não confio em ninguém tanto assim. Mas quero que apague os perfis. Os textos, as confissões e outras coisas que deixe espalhadas por aí, podem ficar, a minha cara ali pra todo mundo ver, não.

  • Rafa

    F*da!!!

Pense Nisso! Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista e consultor de comunicação em mídias digitais. É japaraguaio, cínico cênico. torcedor do Guarani Futebol Clube e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos. Já plantou semente de feijão em algodão, criou um tamagotchi (que acabou morrendo de fome) e mantém este blog. Luta para ser considerado mais do que um rosto bonitinho e não leva a sério pessoas que falam de si mesmas na terceira pessoa.

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