Ayrton Senna, 1° de maio de 1994

Por Alexandre Inagakiquinta-feira, 01 de maio de 2014

O Brasil vivia uma crise de autoestima. Naqueles primeiros meses de 1994, a economia ainda não andava lá essas coisas, a moeda ainda era o cruzeiro real e a gente precisava fazer cálculo dos preços em URVs, a fim de descobrir o valor verdadeiro das coisas. Depois do tricampeonato em 1970, a seleção brasileira de futebol acumulava decepções em cima de decepções. Duas das três músicas que foram indicadas ao Troféu Imprensa daquele ano foram “Me Leva” (Latino) e “Lá Vem o Negão” (Cravo e Canela). Ou seja, a coisa estava realmente ruim. Mas havia ao menos um alento em meio a tudo aquilo.

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Ayrton Senna havia deixado os torcedores brasileiros bem acostumados com suas vitórias nas manhãs de domingo. Eu colocava o despertador pra tocar mais cedo, a fim de ver as corridas desde a largada, mas meus pais preferiam aproveitar os domingos para colocar o sono em dia. Várias foram as vezes em que minha mãe acordava e, ao me ver na sala, perguntava: “E o Senna, ganhou?”. E eu respondia: “Sim, mãe. De novo!”.

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Quando vi aquele acidente na Tamburello, em um primeiro momento eu sequer cogitei a hipótese de que pudesse ter ocorrido alguma coisa mais séria com Senna. Como poderia acontecer alguma coisa com o maior piloto de todos os tempos, ídolo quase solitário de uma nação, o homem que estava predestinado a bater o recorde de cinco títulos mundiais de Juan Manoel Fangio na Fórmula 1? Após um minuto quase insuportável de expectativa, as câmeras flagraram a cabeça de Ayrton se mexendo dentro da Williams, deixando-nos esperançosos por alguns segundos. Hoje sabemos que aquele movimento foi involuntário, como um último espasmo de vida, como se ela tivesse se movido graças a todos os pensamentos positivos de milhares de fãs por todo o mundo, que ansiavam por ver Senna se levantando do carro e saindo do cockpit são e salvo.

Minutos intermináveis se passaram, enquanto médicos atendiam ao piloto brasileiro na pista e uma câmera a bordo de um helicóptero, à distância, capturava as cenas ao longe. Até que, durante uma das tomadas dessa câmera áerea, uma mancha indisfarçável de sangue, espalhada pela pista, foi flagrada em um enquadramento. Galvão Bueno não fez nenhum comentário sobre aquela imagem, mas aquele momento de fato dispensava palavras. Naquele instante, todos os telespectadores que estavam em silenciosa vigília intuíram que Senna não havia conseguido passar incólume por aquele acidente.

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Mais do que um ídolo brasileiro, Ayrton Senna era admirado por fãs de todo o mundo. A prova disso foi a maneira como os jornalistas japoneses anunciaram, ao vivo, a morte do tricampeão mundial. Chorei as mesmas lágrimas que eles, devastados com a notícia, derramaram em frente às câmeras da TV nipônica.

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Ao contrário de muitos, continuei acompanhando as corridas de Fórmula 1 após a morte de Senna. E não, não creio que as manhãs de domingo perderam a graça. Apesar de ter sido um grande ídolo meu, não resvalo na armadilha fanática daqueles que até hoje o idolatram como se ele, feito um herói de ficção, não possuísse um único defeito. Admiro, sim, o talentosíssimo piloto que foi, arrojado, destemido e rápido como poucos. Agradeço a Senna por ele ter trazido tantas alegrias para uma nação combalida, e por ter ficado em minha memória afetiva como marco de uma época boa da minha vida.

Como esquecer da GP de Mônaco de 1984 em que ele, pilotando uma modestíssima Toleman, partiu da 13ª colocação no grid para, sob chuva, chegar a um segundo lugar que só não se tornou primeiro porque a corrida foi interrompida antes, impedindo que ultrapassasse Alain Prost? Ou de sua primeira antológica primeira vitória no Brasil, em 1991, quando um microfone a bordo registrou seus berros de felicidade logo após ter cruzado a linha de chegada, em um GP no qual segurou sua McLaren na pista à base de talento e do braço, com apenas uma marcha? Ou do segundo GP Brasil que venceu, em 1993, superando o favoritismo das Williams de Prost e Damon Hill, e que acabou de forma inesquecível, com o público extasiado invadindo a pista de Interlagos para levantá-lo, de braços erguidos, em meio ao povo?

Por fim, deixo aqui as imagens da melhor primeira volta da F-1 de todos os tempos, e que também tive a sorte de assistir ao vivo: a largada do GP Europa de 1993, no circuito de Donington Park, na Inglaterra. Quando Senna partiu da 4ª posição, largou mal, caiu para quinto e depois, em pouco mais de um minuto, ultrapassou os carros de Karl Wendlinger, Michael Schumacher, Damon Hill e Alain Prost, a tempo de finalizar a primeira volta na liderança. De quebra, além de vencer a corrida com mais de 1 minuto de diferença para o segundo colocado, impôs mais de uma volta em cima de Prost.

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Os 20 anos da morte de Senna renderam homenagens nos quatro cantos do mundo. Por exemplo, em uma cerimônia no circuito de Ímola, que contou com as presenças de Fernando Alonso e Kimi Raikkonen. Destaco também os posts de ídolos como Hamilton e Rossi, externando sua admiração. Afinal, mais do que o Ayrton Senna do Brasil, ele foi o Ayrton Senna do mundo.

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P.S. 1: Posts relacionados: Ayrton Senna em Interlagos e Ayrton Senna do Brasil, Japão, 1988, há 20 anos.

P.S. 2: De todos os relatos publicados sobre a morte de Senna, nenhum foi mais impressionante do que a série de 12 textos escritos por Livio Oricchio, que relata detalhes sobre o estado de nervos do tricampeão dias antes do acidente em Ímola: pressões comerciais, gravação comprometedora de Galisteu, o acidente de Rubinho, a morte de Ratzenberger… Destaco em especial, porém, o capítulo final, em que Oricchio relata a viagem a bordo do voo que trouxe o corpo de Senna para o Brasil. Mais do que jornalismo, Livio Oricchio fez literatura em suas memórias sobre o maior ídolo brasileiro dos últimos 30 anos.

P.S. 3: Merece destaque também o vídeo “As aventuras de Bruno e Ayrton Senna”, no estilo “Draw My Life”, com reportagem de Vanessa Ruiz e desenhos do Di Vasca.

P.S. 4: Nem todos sabem que, ao sentar no cockpit da Williams que guiou em sua última corrida, Senna trazia no bolso de seu macacão uma bandeira da Áustria. Sua intenção era de, ao vencer aquele GP da Itália, segurá-la na volta da vitória do mesmo modo que tradicionalmente fazia com bandeiras do Brasil, homenageando o colega falecido no dia anterior, Roland Ratzenberger. Vale a pena ler a matéria de Victor Martins e Henning Steinicke, para a Warm Up, que entrevistaram Rudolf Ratzenberger, pai de Roland.

P.S. 5: O que a Geração Selfie tem a dizer sobre Senna? Confiram este vídeo em que oito jovens nascidos após 1994 comentam o que sabem sobre ele.

P.S. 6: Ao rever, anos depois, as imagens daquele dia fatídico, com o áudio original da transmissão da Globo, a cargo de Galvão Bueno e Reginaldo Leme, revivi toda a angústia que sofri naquele domingo. Posso dizer que esta foi uma cicatriz que não fechou. E que, provavelmente jamais fechará.

Pense Nisso!
Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.

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Comentários do Blog

  • Lulu on the sKy

    Inagaki, jamais me recuperei da morte do Ayrton. São 20 anos de saudades de um ídolo muito amado. Assistia corridas, vídeos com programas, entrevistas, colecionava recortes e naquele dia, um pedaço de mim foi junto com a partida dele.
    Hoje não consigo assistir algo relacionado à ele e não me emocionar, vou as exposições que o Instituto Ayrton Senna promove e faço questão de tirar minhas fotos.
    Tb fiz uma postagem no meu blog e se quiser conferir: http://www.luluonthesky.blogspot.com.br

    Big Beijos

    • http://www.pensarenlouquece.com/ Alexandre Inagaki

      Valeu pelo comentário, Lulu. O que mais gostei em seu post foi a sua foto mostrando a língua pro Schumacher. :) Um abraço!

      • Lulu on the sKy

        Ele mereceu.. nunca fui com a cara dele.. humpf

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Pense Nisso! Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista e consultor de comunicação em mídias digitais. É japaraguaio, cínico cênico. torcedor do Guarani Futebol Clube e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos. Já plantou semente de feijão em algodão, criou um tamagotchi (que acabou morrendo de fome) e mantém este blog. Luta para ser considerado mais do que um rosto bonitinho e não leva a sério pessoas que falam de si mesmas na terceira pessoa.

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