Há coisas nesta vida que a gente só descobre por intermédio da internet. Graças a ela, aprendi por exemplo que em 20 de julho é celebrado o Dia do Amigo. Soube dessa curiosidade através de um camarada que jamais vi, li ou ouvi na vida, mas que por possuir meu e-mail em sua lista, ao lado de mais uns 70 incautos destinatários que receberam a mesmíssima mensagem padronizada, enviou-nos um desedificante anexo de Power Point com mais de 1.000 KB, contendo fotos bucólicas de crianças brincando com um pôr-do-sol ao fundo, ilustradas por versos da indefectível canção do Milton Nascimento que diz que “amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito”.
Uma rápida pesquisa esclareceu que o Dia do Amigo surgiu graças à iniciativa de Enrique Ernesto Febbraro, um professor argentino que viu o homem chegando à Lua no dia 20 de julho de 1969, por intermédio da missão tripulada Apollo XI, constatando que, naquele singelo momento histórico, toda a humanidade quedou-se em frente às televisões que exibiram aquele instante ao vivo, como se todas as fronteiras e diferenças ideológicas tivessem sido momentaneamente dissipadas.
De boas intenções, todos nós estamos cansados de saber que o inferno faz jus ao slogan que aquela marca de desodorante costumava propagar: “sempre cabe mais um com Rexona”. Mas o fato é que, apesar da aparente ingenuidade de se propagar mais uma efeméride feito essa, que soa a invencionice para incrementar vendas de comércio e lotar nossas caixas postais com cartões virtuais piegas, fiquei pensando no conceito por vezes abstrato da Amizade.
Amigo, para mim, é aquela pessoa que tem a liberdade de pensar em voz alta na sua frente, dispensando floreios e dizendo o que realmente acha de suas atitudes. Porém, levando em consideração as sábias palavras de Leonardo da Vinci: “Repreende o amigo em segredo e elogia-o em público”. ;) É aquela pessoa a quem você empresta dinheiro, mas que faz questão de pagar a dívida antes mesmo que você pense em cobrá-la. Ou, viceversamente falando, é o cara com quem você pode contar nos dias em que é necessário vender o almoço para pagar o jantar.
É o ombro no qual você chora suas pitangas, nem que seja às duas da madrugada (por exemplo, quando você é surpreendido com desculpas infames como “não quero estragar a nossa amizade”), e que não pestaneja em lhe dar aqueles esporros necessários ou os afagos que seu ego combalido por vezes requer.
É bóbvio dizer que um verdadeiro amigo é muito mais do que um e-mail na lista de contatos do Gmail ou figurinha em seu álbum do Orkut, mas por vezes as maiores obviedades precisam ser reiteradas.
Quanto a mim, posso dizer que tenho a sorte de ter amigos de rara estirpe vida afora, daqueles que se reúnem em torno de uma mesa de bar e passam horas conversando, esquecidos dos ponteiros do relógio e das vicissitudes do dia-a-dia, inclusive tendo a sorte e o privilégio de ter me tornado colega de trabalho de vários deles.
Amigos compartilham nossos sonhos, neuras, paixões, decepções, alegrias. Riem das abobrinhas que a gente fala, têm à mão um lenço de papel nas horas que a gente necessita. E, principalmente no meu caso particular, compreendem quando eu demoro semanas para responder a um e-mail ou dar um telefonema; meus amigos necessitam ter paciência oriental.
Amigo é aquela pessoa que você não vê há meses, mas quando encontra faz aquela algazarra juvenil:
- Fala veado, cadê a sua mãe?
- Tá lá na zona, aprendendo tudo com a sua!
Amigos falam palavrões com o mais inesperado dos carinhos. Respondem aos nossos rasgos de pieguice com um abraço. São o nosso amparo ao desconcerto com que este mundo é regido. E acreditam de olhos fechados na nossa versão da história.
Enfim, para resumir a história, desejo que todos os meus amigos encontrem a felicidade que eu sei que eles fazem por merecer. E ponto final!
A onda nostálgica em torno dos anos 90 chegou com tudo. Você já deve ter recebido anexos de Power Point ou o link de algum Tumblr recordando com saudade dos “bons” tempos em que o É o Tchan ainda era chamado de Gera Samba, todo mundo queria morar em Beverly Hills e ser amigo da Kelly, do Brandon e do Steve, o pessoal ia pras baladas dançar poperô ao som de Ace of Base, Jon Secada, Londonbeat, Corona ou Erasure, ápice da tecnologia era ter conta em BBS, depois teclar no mIRC e ficar “invisible” no ICQ, ainda havia Mappin, Mesbla, fichas telefônicas e TV Manchete, objetos de desejo eram Kinder Ovos, tamagotchis e Mega Drives, duplas sertanejas e grupos de pagode invadiram as FMs, as manhãs de domingo eram embaladas pelas vitórias do Ayrton Senna, Astrid, Cuca, Thunderbird e Gastão eram os principais VJs da MTV Brasil e os maiores escândalos da década foram Lilian Ramos sem calcinha ao lado de Itamar Franco, Sharon Stone cruzando as pernas em Instinto Selvagem e Monica Lewinski quase derrubando um presidente dos EUA por causa de um fellatio.
A década da ovelha Dolly, das propagandas de facas Ginsu e meias Vivarina, do movimento grunge, da conversão dos cruzeiros reais em URVs, dos caras pintadas protestando contra Fernando Collor e do ET de Varginha já está sendo recordada em festas temáticas, posts do Fred Fagundes e livros sobre a década. Dentro dessa pegada, segue abaixo uma compilação de 10 músicas que marcaram o Brock tupinambá dos anos 90. Como diria Cissa Guimarães, aquela tal “garota que quebra o coco, mas não arrebenta a sapucaia” (e que saiu na capa da Playboy em agosto de 1994), estes clipes vieram direto do túnel do tempo…
* * * * *
Chico Science & Nação Zumbi - “Manguetown” - Francisco de Assis França fez história na MPB ao idealizar e liderar, ao lado de outros nomes da cena musical pernambucana como Fred Zero Quatro do grupo Mundo Livre S/A, o movimento manguebeat. Em 1994, Chico Science & Nação Zumbi gravou seu primeiro álbum pela multinacional Sony: Da Lama ao Caos. O disco projetou a banda nacionalmente, revitalizando a cena musical tupinambá com a fusão da guitarra sincopada de Lúcio Maia à percussão que juntou o ritmo do maracatu com o rock. O segundo álbum, Afrociberdelia, saiu em 1996, com uma pegada mais pop e influências da música eletrônica. Seu primeiro single, “Manguetown”, recebeu um videoclipe duca dirigido pelo cenógrafo Gringo Cardia, e a boa recepção de crítica e público indicava que Chico Science & Nação Zumbi teriam uma longa e brilhante carreira ainda a percorrer. Mas, lamentavelmente, em fevereiro de 1997 Chico Science morreu em um acidente de trânsito, devido ao rompimento do cinto de segurança que ele usava no momento da batida. Continue Lendo
Pra vocês verem como são as coisas. Minha receita de miojo cru repercutiu bastante, a ponto de ter chamado a atenção de uma agência de publicidade que me chamou para ser cozinheiro de aluguel. Portanto, o que vocês lerão a seguir (ou não) é um post devidamente patrocinado.
* * * * *
Como os leitores deste blog já devem saber, culinária é uma arte que eu não domino. Até me pediram que eu compartilhasse alguma receita que eu fosse capaz de fazer; e eu pensei em várias, afinal de contas sou um cozinheiro versátil: sei fazer ovo frito, cozido, estrelado, mexido e, pasmem, até mesmo omelete. Minha receita de lata de sardinha à moda da casa também é prática, saborosa (especialmente para pessoas sem paladares muito apurados) e ainda tem a vantagem extra de permitir reciclagem das latas, de modo que eles posteriormente possam ser transformadas em pedal de distorção para guitarras.
Resolvi, porém, compartilhar uma receita clássica da minha infância: arroz com natô.
Para quem não sabe, natô é soja fermentada. Vendida em pequenos potinhos, a aparência não é das mais atrativas. Isso se dá porque os grãos de soja, após passarem pelo processo de fermentação, ficam um tanto quanto gosmentos e embranquiçados. O cheiro é um tanto quanto peculiar, e o natô fica mais babado que quiabo, como vocês podem checar conferindo a foto ao lado. Ainda assim, creiam-me, natô é gostoso sim!
Eis o meu método de preparo: com um garfo, pego de duas a três porções de natô e coloco-as em cima do prato. Depois, tempero a soja fermentada com um pouco de shoyu e uma a duas pitadas de aji-no-moto. Misturo tudo, coloco algumas colheres de arroz quente em cima do natô e, nhamy!, está pronta uma deliciosa refeição, considerada nutricional e terapêutica. Ou não.
* * * * *
Como minhas chances de faturar um concurso de culinária são tão grandes quanto as possibilidades de encontrar algum pingo de bom senso naquele projeto do senador Eduardo Azeredo, menos mal que na promoção Receita Milionária são os comentaristas deste post que poderão ser recompensados. A pegada é a seguinte: todos aqueles deixarem comentários aqui (informando cidade e estado onde mora) descrevendo uma receita original de sua própria autoria que sirva de 4 a 6 pessoas, que use ao menos um produto Knorr, e narrando a história por trás da criação dela, participarão de uma promoção específica para blogs.
P.S.: Além da promoção exclusiva para comentaristas de blogs, não se esqueçam que há uma outra valendo R$ 1 milhão para quem enviar sua receita por meio deste link!
Não importa o que digam. A despeito de todas as mazelas, de resto comuns a quaisquer metrópoles, o fato é que o Rio de Janeiro continua merecendo com sobras o título de Cidade Maravilhosa, e qualquer ocasião é pretexto para voltar a visitá-la. Pena que o paulistano aqui anda atolado de trabalho, mal consegue atualizar este blog e tampouco poderá estar presente a um evento imperdível para quem tiver a sorte de estar no Rio amanhã, dia 5 de julho, a partir das 14h: a Descolagem.
Mas o que é uma Descolagem? Digamos que possa ser uma apresentação, mas também um workshop, uma performance, uma palestra, uma desconferência ou tudo isso ao mesmo tempo agora. Qualquer pessoa poderá participar da Descolagem, seja in loco ou, como não poderia deixar de ser nestes tempos atuais, assistindo à transmissão ao vivo pela internet no site do Núcleo Avançado em Educação, o NAVE, interagindo e enviando perguntas aos participantes do evento por e-mail, SMS ou Twitter (usando a tag #descolagem).
A Descolagem inicial terá a curadoria de mestre Beto Largman, jornalista e blogueiro. O tema será “Cultura Digital e o Impacto da Tecnologia no Mundo Moderno”, e contará com a participação de um timaço de respeito para desenvolver as conversações, incluindo nomes como Silvio Meira, Cris Dias, Fabio Seixas, Ronaldo Lemos e Marco Gomes. O evento será realizado na Usina de Expressão do NAVE, uma escola pública de alta tecnologia (vide a foto acima) criada com a ajuda do Instituto Oi Futuro, localizada na Rua Uruguai, 204, na Tijuca. Para participar do evento, envie um e-mail para [email protected] ou cadastre-se no site do Nave (o número de vagas, ao menos no evento físico, é limitado). A propósito, você poderá ir à Descolagem de metrô: uma van fará o trajeto entre a estação Saens Peña e o NAVE gratuitamente. De quebra, o wi-fi estará liberado no local. B)
Em tempo: as Descolagens serão eventos quinzenais. Para que você saiba antecipadamente o que rolá nas próximas desconferências arquitetadas por Beto Largman, fique atento ao site do NAVE.
* * * * *
Cauã Taborda e Rafael Sbarai, dupla de jovens jornalistas, escrevem no De Repente, um dos melhores blogs da atualidade; além de tratar de assuntos como cultura pop e mundo digital, também levanta discussões sobre assuntos como política e ambientalismo. Não à toa, Cauã e Sbarai estiveram presentes ao almoço de lançamento do blog Formigas com Megafones, e foi por intermédio deles que soube que a área de proteção ambiental da Estrada Parque Itu, que abriga uma das mais belas reservas da Mata Atlântica, está sob ameaça de um projeto do governo paulista que intenciona instalar duas barragens na região, que simplesmente inundariam 120 hectares de mata e ainda acabaria com as corredeiras do rio Tietê.
Ajude a barrar esse projeto e fazer com que as autoridades vetem o licenciamento de barragens em áreas de proteção ambiental: assine a petição contra as barragens no rio Tietê e informe-se melhor sobre o assunto no site da S.O.S. Mata Atlântica, difundindo informações e divulgando-as junto aos seus amigos.
* * * * *
P.S.: Com a palavra, os signatários do manifesto “Eu não sou blogueiro de aluguel”: “Blogueiro de verdade fala a verdade, doa a quem doer. Blogueiro de aluguel é quem não conhece a dinâmica do meio e tenta enganar. (…) Quem censura a livre expressão dos blogueiros não deveria nem participar da discussão. Antes de ser mídia ou veículo, blog é opinião registrada de quem tem voz ativa e diz o que pensa”.
Em se tratando de gastronomia, sigo a seguinte regra: jamais gasto mais tempo cozinhando do que comendo. Imagino até que seja bacana dominar a arte da culinária, mas o meu lado Ofélia nunca surgiu à tona. Por essas e outras, no intuito de auxiliar aqueles que, feito eu, não têm a menor vergonha na cara de assumir que são especialistas na fina arte de apelar para o delivery na hora em que a fome bate até quase nos nocautear, decidi compartilhar aqui uma velha receita de minha própria lavra, testada e aprovada por quem não entende do assunto.
* * * * *
Miojo Cru
Ingredientes: 1 pacote de miojo.
Instruções: Abra o pacote de miojo, usando suas habilidades manuais. Se você for meio desajeitado, pode recorrer ao auxílio de uma faca, tesoura ou até mesmo dos seus dentes.
Separe de lado o saquinho com o tempero do miojo, que não será utilizado nesta receita (posteriormente, você pode reaproveitá-lo a fim de temperar o arroz ou a salada). Se bem que há quem aprecie turbinar seu miojo cru com o tempero; essa parte fica a critério do freguês.
A seguir, desfrute desta refinada iguaria quebrando-a em pequenos pedaços e enfiando-os em sua boca. É recomendável mastigar bem cada pedaço antes de engoli-lo, caso contrário sua garganta poderá se ferir durante o processo de deglutição.
Se você quiser pode incrementar seu miojo cru com mel, catchup, azeite ou queijo ralado. Meu amigo Orlando Tosetto, por exemplo, escreveu: “Sugestão: acrescente sal, e fique manducando com uma breja na frente da TV. Substitui o amendoim”. Eu particularmente prefiro apreciar esta fina iguaria em toda a sua crueza. Bon appétit!
Que outro livro é lançado com uma promoção na qual você profere a palavra “pudim” na fila de autógrafos, ganha um desconto de 10% na aquisição de 2 mil exemplares e mais um par de pantufas na forma de brotoejas gratinando picles? O prego, como bem afirmou Manoel de Barros, é uma coisa indiscutível. Da mesma maneira, sequer me passa pela cabeça a possibilidade de que existam pessoas incapazes de vislumbrar sentido nas crises de apendicite e desperdiçar a chance de conhecer pessoalmente Vanessa Barbara e Emilio Fraia, gênios bivitelinos que compartilharam as aulas da Nanami na Cásper Líbero, nasceram no ano da graça de 1982 e acabaram de lançar o livro O verão do Chibo.
Emilio e Vanessa, autores profícuos com diversas obras publicadas pela Editora Google, tiveram passagens conturbadas pelas redações da revistas como Trip e Piauí antes de sucumbirem à tentação de buscar escrever o Grande Romance de Formação Ambientado em um Campo de Milho. Isto posto, cabe a mim compartilhar a informação de que esta dupla do barulho, após aprontar altas confusões na Sessão da Tarde gravando covers das guarânias dodecafônicas de Honorio Bustos Domecq, receberá amiguinhos & inimiguinhos para a sessão de autógrafos de O verão do Chibo na quinta, dia 26 de junho, a partir das 19 horas, na Livraria da Vila. Vanessa e Emílio informam ainda que receberão amigos, familiares, penetras e hortifrutigranjeiros para um convescote na Flip 2008, dia 3 de julho, na companhia de Michel Laub e Adriana Lunardi.
Com absoluta exclusividade mundial e após sucessivas e progressivas chantagens emocionais, disponibilizarei, após os indefectíveis cinco asteriscos que dividem os posts deste blog, um trecho de O verão do Chibo, como uma espécie de acepipe caramelizado e coberto com flocos chocantes do livro escrito por Vanessa Barbara e Emilio Fraia.
* * * * *
“Lembro da primeira vez que vi a plantação. O Chibo me trouxe pela mão, me colocou sentado numa pedra. Pediu para eu não sumir de vista, nem sujar a bermuda, e foi com o Bruno para a beira do laguinho apostar corrida de besouro. O sol, alto e mole, castigava o Cabelo que tinha o nariz coberto de pomada. Ele era o juiz e me olhava desconfiado entre um grito e outro da torcida. Tão logo os cascudos cruzaram a linha de chegada (vitória do Chibo sob vaias do Bruno), o Cabelo veio e perguntou se eu sabia o que era uma bolha de sabão. Fiz que não e ele achou graça. Depois me ensinou sua careta favorita, a boca um pouco mais torta, o olho virado, assim, e em pouco tempo eu e o Cabelo tínhamos nosso próprio besouro, que era o mais rápido e desbancou todos os outros do milharal.
“Com o Bruno foi diferente. No início ele mal falou comigo, não me queria por perto. Ou então duvidava que eu pudesse entender o que ele dizia (daí ficava quieto). Depois isso melhorou, mas não muito. Tinham coisas que ele só contava ao Chibo ou em voz alta quando saía entre os pés de milho. O Cabelo também era carta fora, mas a verdade é que ele não dava a mínima: estava ocupado demais com o nosso besouro campeão. O Cabelo era dedicado: adestrava o cascudo Bob falando enrolado. Botava o bicho na parte de cima da mão, prendia uma pata pra ele não fugir e começava a pregar a palavra: bloash-bloblo-bloarshbloblof. Aproximava o rosto para ouvir a resposta e retrucava bloarsh como se estivesse ensinando o besouro a separar as sílabas. No verão em que descobrimos o Bob cochilando debaixo de uma folha, o Cabelo passava as tardes em longos colóquios besourais, levava o mascote para conhecer o Bruno, botava o bicho perto das coisas a fim de ensinar o que eram. Um dia, enfim, parou de segurá-lo pela pata e fez dele o coleóptero mais rápido do milharal. Bob passeava pelos ombros e costas do Cabelo reclamando da vida, o Bob era nosso, o Bob era de nós dois e conquistou todo o mundo (além das competições de triatlo): lembro do Bruno deixando farelo de pão na modesta residência bobiana que ficava num vão da casa da árvore, lembro do estoque de recheios de bolacha que o Chibo e eu juntávamos pra ele, uma pilha em ziguezague de chocolate e morango. Nunca houve um besouro como o Bob. O Bruno e o Chibo viravam dias catando cascudos e testando um por um nas corridas, mas nenhum era tão bom. Além disso, o Bob brilhava no sol, era muito verde e redondo, parecia uma joaninha do submundo. O Cabelo ensinou o Bob a esfregar as patas quando queria comer, treinou o Bob em sessenta centímetros rasos com e sem obstáculos, levantamento de migalhas, natação na poça de cuspe, salto com vara. O Cabelo tornou o Bob sociável: ele ficava paradinho na mão da gente, tomava sol do lado do Bruno, vinha abanando o rabo quando abríamos o pote.
“Engraçado pensar que o Bob quase não voava. Às vezes ele planava, tranqüilo, mas não gostava muito. Preferia praticar atletismo ou apreciar (antes de dormir) a canção ‘Eu Sou um Bolinho de Arroz’, interpretada pelo Cabelo. O Bob, quando descansava direito, fazia um tempo de seis segundos e oitenta décimos, marca inédita em toda a história da plantação. Os demais concorrentes corriam em círculos, afundavam na terra, saíam voando ou chegavam anos depois, molengos e com cheiro de mofo. Bob atravessava a pista com elegância, batia em falso as asinhas e jogava pra lá e pra cá a carapaça imponente. O Cabelo esperava no fim com uma toalha, eu com cinco tipos diferentes de berros, a gente ficava pulando e gritando enquanto o Bruno e o Chibo olhavam feio para a equipe deles — um amontoado de bichos com a mesma cara de pedra, verão após verão.
“Depois que o Bob morreu de doença nas coronárias, ou problemas abdominais a esclarecer (simplesmente parou e não se mexeu mais), a gente abandonou as corridas porque perdeu a graça. Ainda tentamos cutucar o Bob com um pauzinho, sussurrar bloarsh-boblof com um tom de impaciência (os braços abertos), mas ele tinha ido dormir. Estava cansado. Assim que o Bruno confirmou o passamento do nosso cascudo, confortando o Cabelo com a mão no ombro, observamos um minuto de silêncio. O Chibo não deixou ninguém ficar triste, e o que se viu em seguida foi o funeral mais suntuoso que houve nos lados de cá da árvore toda vermelha: meu irmão fez um discurso comprido, eu virei o meu short do avesso para parecer limpo e o Cabelo cantou ‘Eu Sou um Bolinho de Arroz’, alto e sem chorar, guardando todo o respeito que só as grandes personalidades inspiram. Hasteamos a bandeira e fizemos uma inscrição ao lado da árvore onde o Bob foi enterrado, dentro de uma caixa de chocolates: ‘Aos grandes homens, a pátria reconhecida’.
“Durante o discurso o Chibo falou muitas coisas bonitas, o destino, a pátria, a dura lei das estrelas (e outras que eu não entendi também), mas foi interrompido por um barulho de gafanhotos que crescia e nos cercava. Hoje, quando meu braço ardeu e eu peguei soluço, aconteceu igual. Os gafanhotos. Não dava pra saber de onde vinha o zumbido, vinha de toda parte e de parte alguma. Pensei numa combinação de inimigos; índios, piratas, lagartixas. Ou não é nada disso também, e corri sem saber direito por quê (talvez o Chibo e o Bruno estejam no escuro, do lado de lá, rindo de mim), ou porque eu estivesse exposto e atingido pelas estrelas. Ou perseguido pelo Cara Morto, que não está sozinho, é parte de uma organização invisível; o Cara Morto que manipula as estrelas”.
* * * * *
P.S.: Volta e meia recebo e-mails de leitores do Pensar Enlouquece que me enviam dicas culturais através de [email protected]. Por conta disso resolvi criar um espaço, na coluna à direita deste blog, dedicado para a divulgação de shows, CDs, lançamentos de livros, estréias de filmes e peças de teatro, eventos & afins.
Volta e meia digo que sou um cara “japaraguaio”, uma vez que prefiro pizzas e hambúrgueres a sushis e sashimis, só namorei gaijins, do idioma só sei falar bonsai, Honda, sayonara, Yoko Ono e olhe lá, e das minhas raízes nipônicas só devo ter herdado mesmo meus olhos puxados. Lamento, porém, esse afastamento de minhas origens. Me incomodava muito, por exemplo, a dificuldade que eu tinha em conversar com meus avós, comunicação feita aos trancos, barrancos e mímicas, nas quais um tentava adivinhar o que o outro queria dizer, sem muito sucesso. E me ressinto, em especial, de não ter conseguido conversar mais a respeito das histórias que eles teriam para compartilhar acerca dos primeiros anos em que, distantes da terra natal, meus avós se aventuraram por um país muito diferente do Japão que eles deixaram para trás a fim de buscar uma vida melhor.
Não foi fácil, em especial naqueles tempos em que “globalização” era uma palavra que sequer existia, adaptar-se a uma língua diferente, costumes muito diversos, o clima, hábitos alimentares e as dificuldades financeiras daqueles que, feito os meus avós, vieram para o Brasil buscando novas oportunidades em uma terra ampla, sem os estreitos limites geográficos do arquipélago japonês ainda incapaz de propiciar as chances necessárias para todos os seus habitantes. Continue Lendo
Alexandre Inagaki é jornalista e consultor de comunicação em mídias digitais. É japaraguaio, cínico cênico. torcedor do Guarani Futebol Clube e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos. Já plantou semente de feijão em algodão, criou um tamagotchi (que acabou morrendo de fome) e mantém este blog. Luta para ser considerado mais do que um rosto bonitinho e não leva a sério pessoas que falam de si mesmas na terceira pessoa.