“Sangue Negro” e “Onde os Fracos Não Têm Vez”
Por Alexandre Inagaki ≈ domingo, 24 de fevereiro de 2008
Foi ótimo constatar que os dois filmes com mais indicações ao Oscar deste ano são obras densas, sem concessões às platéias. Não à toa, tanto ao fim das sessões de Sangue Negro, de Paul Thomas Anderson, quanto de Onde os Fracos Não Têm Vez, dos irmãos Joel e Ethan Coen, pude ouvir gente reclamando dos filmes. Não há terra para homens velhos, nem finais felizes para espectadores mimados.
As cenas iniciais de There Will Be Blood mostram Daniel Plainview (Daniel Day-Lewis) cavoucando poços no meio do deserto norte-americano em busca de petróleo. Para saber se há indícios do óleo negro, Plainview cospe nas pedras do poço a fim de tentar ver sinais de minerais. Da saliva ao sangue dos operários que morrem nos poços de petróleo, paulatinamente imergimos na saga de um misantropo que enriquecerá na mesma medida em que terá seu espírito embrutecido. Tratado ambicioso sobre ganância, Sangue Negro justaposta interesses financeiros e religiosos na figura de dois personagens com sobrenomes simbólicos: Daniel Plainview e o pastor Eli Sunday (Paul Dano), homens que dedicam suas vidas a missões completamente alheias ao restante da humanidade.
O filme de Paul Thomas Anderson é repleto de metáforas. Desde o óleo que brota do fundo da terra e rasga em chamas os céus, até a cena final que se passa na pista de um jogo de boliche, nada é gratuito na história centrada em um prospector de petróleo que também é capaz de desvelar o que há de mais negro na alma dos homens que abomina. Vislumbramos, ao longo do filme, espasmos de humanidade na figura de Plainview. Porém, são réstias de luz que desaparecem à medida que seus laços familiares são explicitados como farsas. Sem religiosidade nem família que o resgatem do processo de desumanização, não à toa o personagem assombrosamente personificado por Day-Lewis surge na seqüência final comendo um pedaço de carne com as próprias mãos. No derradeiro e mais brutal de todos os mesmerizantes duelos entre o capitalista Daniel Plainview e o fanático Eli Sunday ao longo da trama, o desfecho não poderia terminar de outra maneira que não fosse com sangue, com strike, com a frase sintomática do processo de esgotamento metafísico do personagem central: “I’m finished”.
À primeira vista, Onde os Fracos Não Têm Vez aparenta ser um western pós-moderno centrado na história de Llewelyn Moss (Josh Brolin), um sujeito comum que acidentalmente descobre uma mala repleta de dólares para casa, e que penará com os efeitos colaterais desse achado, personificados na figura de um assassino apocalíptico, Anton Chigurh (Javier Bardem). Porém, creio que a chave para a compreensão deste filme dos irmãos Coen está no personagem de Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones), o xerife à beira da aposentadoria, velho homem do título original mal traduzido para o português (No Country For Old Men) que sabe que não é possível parar o que está por vir.
A sanha homicida de Anton Chigurh é comparada, em certa passagem, a uma peste bubônica. Não é uma imagem gratuita: o assassino vivido por Bardem é a Morte em pessoa, quase como a epidemia da Idade Média que foi interpretada como um castigo divino. Simbolicamente, uma das armas que utiliza é uma pistola de ar comprimido que costumeiramente é usada para o abate de gado. Além disso, Anton Chigurh age por vezes como um arauto do Destino, dando a suas vítimas a opção de, por meio do “cara ou coroa”, escaparem da morte por meio de um lance do acaso. Ledo engano: todos nós fazemos escolhas, seja no momento de assassinar um ser humano ou de dar água de beber a um moribundo, e o momento em que Chigurh encontra Carla Jean (Kelly Macdonald), esposa de Llewelyn Moss, mostra exemplarmente isso.
Por mais que o destino pareça ser inexorável, somos produtos de nossas escolhas. O personagem de Tommy Lee Jones sabe disso, e não esconde sua perplexidade diante das manchetes de jornais que descrevem crimes tão absurdos que chegam a provocar sorrisos com gosto de culpa. Constata o velho xerife: “Eu sempre achei que, quando ficasse velho, Deus entraria em minha vida de alguma forma. Mas ele não o fez”. E a seqüência do criticado (porém estupendo) final, quando Lee Jones relata para a mulher um sonho que teve, é o desfecho correto para um filme no qual ficamos sem saber as motivações do assassino, o que realmente aconteceu na cena da morte dos traficantes mexicanos, o que faziam o criminoso do escritório e o personagem de Woody Harrelson. Em um mundo que soa mais inverossímil do que qualquer ficção, de que adiantariam respostas simplificadoras e insatisfatórias? Nada mais adequado, pois, do que encerrar o filme com a descrição de um sonho que fala de um passado perdido e de um mundo no qual o filho é mais velho do que o pai. Apenas na linguagem simbolicamente onírica é que poderemos buscar possíveis explicações para o atual e aterrador estado de coisas descrito por esta obra-prima dos irmãos Coen.
P.S. 1: Em um bolão dos resultados do Oscar desta noite, palpito que Onde os Fracos Não Têm Vez levará as estatuetas de direção, roteiro adaptado e fotografia. Levado por uma certa intuição, cravarei uma zebra, chutando que Sangue Negro, que injustamente não foi indicado para o Oscar de Trilha Sonora (composta por Jonny Greenwood, guitarrista do Radiohead) será considerado o melhor filme.
Quero muito que Marion Cotillard, por sua atuação irretocável em Piaf - Um Hino ao Amor, repita o caso de Sophia Loren, primeira atriz premiada com o Oscar por uma atuação em um filme não-falado em inglês, o italiano Duas Mulheres, de 1962, embora reconheça que a favorita é Julie Christie. Barbadas mesmo são três: Daniel Day-Lewis, que tomará todo o milkshake na categoria de melhor ator, Javier Bardem, que criou o vilão mais perturbador do cinema desde Hannibal, o Canibal, e será merecidamente premiado como melhor ator coadjuvante, e Ratatouille, a encantadora produção da Disney/Pixar que levará o Oscar de melhor longa animado. Arrisco ainda dizer que Tilda Swinton garantirá a única estatueta para Conduta de Risco na categoria de atriz coadjuvante (que costuma proporcionar as maiores surpresas da cerimônia), e que a blogueira Diablo Cody levará o careca dourado para casa pelos diálogos espertinhos de Juno. Mas eu sei que meus palpites não me fariam ganhar nenhum bolão…
P.S. 2: Eis a constatação visual de que Anton Chigurh e o Beiçola, da Grande Família, são fregueses do mesmo barbeiro.
P.S. 3: Independentemente de premiações, para mim os melhores filmes de 2007 foram O Hospedeiro, de Bong Joon-Ho, e Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho. Mais discussões sobre a sétima arte? Visitem a Liga dos Blogues Cinematográficos e o meu site predileto sobre a premiação da Academia de Hollywood, o espanhol Tío Oscar.
P.S. 4: Observações após a cerimônia de entrega do Oscar: errei no palpite de melhor filme, mas fiquei satisfeito: Onde os Fracos Não Têm Vez era o meu favorito. Porém, achei injusto Roger Deakins, que foi duplamente indicado na categoria de melhor fotografia por dois excepcionais trabalhos em Onde os Fracos Não Têm Vez e O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford, ter perdido a estatueta para Robert Elswit, de Sangue Negro, por mais que a fotografia do filme de PTA seja também muito boa. De resto, a merecidíssima vitória de Marion Cotillard já valeu a noite, e acabei acertando a previsão de uma das categorias mais imprevisíveis, melhor atriz coadjuvante. Até que fui razoavelmente bem no bolão do Oscar. :D
Alexandre Inagaki
Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.
Categorias:
Artigos relacionados:
Comentários do Facebook
Comentários do Blog
-
http://www.blogdohiroshi.com/2008/03/02/10-posts-que-voce-deveria-ler-essa-semana-4/ Blog do Hiroshi
-
http://www.cinedemais.blogspot.com Demas
-
http://senhoritarosa.wordpress.com senhorita rosa
-
Rosa
-
http://bit-hunter.net/cafedamanhadoscampeoes Pablo Casado
-
http://www.cinedemais.blogspot.com Demas
-
Andrea
-
http://fabianopereiradesigner.blogspot.com Fabiano Pereira
-
http://www.cinedemais.blogspot.com Demas
-
http://www.lauravive.blogspot.com laura
-
http://www.amenidadesebobajadas.blogspot.com Daniel F. Silva
-
Rodrigo Santiago
-
http://digitandodeesquerda.blogspot.com André
-
Te
-
Anônimo
-
mara
-
http://macaenvenenada.zip.net Carla
-
http://www.asletrasdasopa.blogspot.com marie tourvel
-
eduardo
-
Diego Goes
-
Ana Paula Polim
-
http://bit-hunter.net/cafedamanhadoscampeoes Pablo Casado
-
niks
-
http://www.dicionarioesporadico.blogspot.com Meiriane Saldanha
-
Maaark!
-
Anônimo
-
marcelle
-
http://pixinxa.blogspot.com/ carlos
-
http://quixotando.blogspot.com/ dri
-
http://www.asletrasdasopa.blogspot.com marie tourvel