Pombos urbanos
Por Alexandre Inagaki ≈ terça-feira, 07 de janeiro de 2014
Algumas das lembranças mais marcantes de minha infância são as viagens que minha família fazia à cidade onde meus avós maternos moravam. Inúbia Paulista é uma cidade pequeníssima do interior de São Paulo, localizada a 578 km da capital. Tem pouco mais de três mil habitantes, ou seja, quase a mesma população do Edifício Copan, no centro de São Paulo. Ou, para usar uma comparação menos paulistana, pode-se dizer que seriam necessárias quase vinte e cinco Inúbias para lotar um Maracanã.
A cidade é uma verdadeira válvula de escape da neurose urbana. Mas nunca foi uma Pasárgada para mim: uma semana em Inúbia era o suficiente para morrer de tédio com a falta de opções de lazer. Em compensação, até hoje é possível colocar uma cadeira no meio da rua, sentar nela e se deliciar, no meio da noite, com o frescor das brisas desbloqueadas de edifícios, e com a beleza que é poder vislumbrar um céu limpo e cheio de estrelas.
Um de meus passatempos prediletos era o “lançamento de chinelos”. Sentados na varanda da casa de meus tios Michiko e Tsutomu, eu e meus irmãos balançávamos as pernas a fim de impulsionar nossas havaianas em direção à calçada do outro lado da rua, quase sempre deserta. Descalços, corríamos depois para recolher nossos chinelos, desviando das bostas dos cavalos das carroças que eventualmente passavam.
Também ia muito à casa de meu avô, Shigueo, que criava porcos no quintal, geralmente destinados aos banquetes de Ano Novo. Gostava de arrancar folhas das bananeiras para alimentá-los, e depois ouvi-los mastigando a comida, quando eles oincavam de satisfação.
Mas meu passatempo predileto era assustar pombos. Meu modus operandi consistia em espalhar um monte de grãos de milho no quintal. Depois, aguardava as vítimas se ajuntarem, para sair correndo de sopetão no meio deles. Era de dar gosto ver a pombarada desesperada, voando para todos os lados (crianças são cruéis). Mas nem era preciso tanto esforço para assustá-los: uma mera ameaça de avanço para cima deles já bastava.
Hoje, ao caminhar pelos calçadões de São Paulo, noto que os pombos não têm mais medo de mim. Sou obrigado, na verdade, a tomar cuidado para não pisar em cima deles. Eles não estão nem aí para a gente.
Observando a indiferença dos pombos, vejo que eles se acostumaram em nos aturar. E penso em como me sinto, já anestesiado, toda vez que sou abordado por algum pedinte me solicitando esmola. Crianças vendendo balas em ônibus e famílias morando debaixo de viadutos viraram cenas comuns. Dezenas de pessoas são assassinadas diariamente em São Paulo, e, no entanto, são fatos que não ganham sequer uma linha de rodapé nos jornais. Em Inúbia, um “simples” assalto seria assunto a se comentar meses a fio.
A violência e a pobreza tornaram-se tão banais que fizeram com que a gente reaja com a indiferença desses pombos urbanos. O meu medo é de que chegue o dia em que estaremos tão distraídos que seremos incapazes de perceber, a tempo, o enorme pé que irá nos esmagar.
Alexandre Inagaki
Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.