Os Outros, Os Outros Anos, O Mesmo Sonho
Por Alexandre Inagaki ≈ domingo, 19 de novembro de 2006
Antes de mais nada, é bom explicar que o texto abaixo não é de minha autoria, e sim de Carlos Eduardo Lima, que acaba de lançar seu romance de estréia. Enquanto não aterrissa nas livrarias, “Vestido de Flor” já pode ser adquirido através de seu site, com a vantagem especial de ser enviado para a sua casa com uma dedicatória do autor. Eu, que tive o privilégio de escrever o prefácio do livro, decidi postar a crônica abaixo (publicado anteriormente no Scream & Yell) como uma espécie de aperitivo para aqueles que ainda não conhecem os textos deste cara que, além de crítico musical, é escriba de mão cheia e autor de um dos melhores romances de estréia que li nos últimos anos. Não à toa, encerrei meu prefácio a “Vestido de Flor” com esta frase: “Carlos Eduardo Lima é um cara que escreve com a paixão de quem ouve uma música com os olhos fechados, as asas abertas feito um coração dependurado na corda bamba“. Aprecie sem moderação.
Houve um tempo em que um dos meus sonhos mais acalentados era receber uma fita-cassete gravada de uma ex-namorada que tivesse me feito sofrer bastante. E nesta fita deveriam estar algumas canções importantes dos tempos idos, alguns pedidos de perdão implícitos, sendo que a primeira música do lado A deveria ser Os Outros, do Kid Abelha. Sim, é isso mesmo.
Por quê? Porque Os Outros é, sem dúvida nenhuma, um dos mais intensos e fiéis retratos de uma relação de namoro que já foram feitos na língua portuguesa em muito tempo. Exagero? Pode ser, mas vamos entender os fatos.
O ano era 1985. Segundo ano do segundo grau. Colégio Santo Agostinho. Para o Kid Abelha era o ano do segundo disco de sua carreira. Educação Sentimental, o tal disco, foi lançado com a responsa de suceder o debut multivendedor de Seu Espião, que teve todas as suas músicas tocadas nas rádios da época.
Quase um trabalho conceitual sobre relações amorosas dos jovens dos anos 80, Educação Sentimental tinha músicas perfeitas sobre assuntos muito pertinentes. Como se fosse um pretenso manual de ensinamentos amorosos. O disco tinha no baixista Leoni a sua peça-chave. Leoni era o compositor do Kid Abelha e tinha um dom fora do comum para assumir a figura feminina que era o centro da banda. Como Paula Toller, na época com cabelo joãozinho e castanho, não sabia nem cantar direito, Leoni precisava adaptar suas letras para que ela cantasse com máximo de verossimilhança. E ele conseguiu neste disco pelo menos três perolas pop, que se fossem feitas por algum grupo pós-punk ou new wave gringo seriam hoje clássicos absolutos: Os Outros, A Fórmula do Amor e Garotos.
Em A Fórmula do Amor Leoni, em parceria com Léo Jaime, discutia se algumas artimanhas masculinas, como dançar bem, ter um bom papo ou gestos exatos serviam alguma coisa na hora de conquistar uma menina. Versos como “eu tenho o gesto exato, sei como devo andar, um certo ar cruel de quem sabe o que quer, tenho tudo preparado pra te conquistar” retratavam os playboyzinhos de então, com suas camisas Rock 85 da Company.
Já em Garotos, uma menina faz um inventário de suas experiências amorosas listando todos os defeitos que os jovens homens tinham na hora de assumir uma relação. “Garotos fazem tudo igual e quase nunca chegam ao fim, talvez você seja melhor que os outros, talvez quem sabe goste de mim” era o que Paula Toller cantava com ar blasé numa melodia singela. Como alguém realmente desesperançoso de algum futuro.
Mas é em Os Outros que o bicho pega mesmo. Aqui uma menina faz declaração de amor cortante para o ex-namorado, despindo-se de qualquer orgulho fútil (talvez o grande inimigo do amor, mas este já é outro papo), colocando o coração na garganta. Poucas vezes ouvi em algum idioma algo tão singelo, sincero e verdadeiro. Paula empresta um tom de sofrimento e melancolia meio alegre, como quem tentasse eclipsar o sol com um grão de areia, chegando a admitir a derrota como em “ninguém pode acreditar na gente separado, eu tenho mil amigos mas você foi meu melhor namorado” ou então “procuro evitar comparações entre flores e declarações, eu tento esquecer (…), a minha vida continua mas é certo que eu seria sempre sua (…), depois de você, os outros são os outros e só“. A música era tão autenticamente feminina que era estranho um homem cantá-la, mas quase dava para pegar a tristeza no ar.
O Kid Abelha seguiu sem Leoni, que formou os Heróis da Resistência e depois lançou um belo disco solo ignorado totalmente pelo público. Hoje um trio, o Kid é o tipo de banda que não se pode levar a sério se o seu caso é ouvir algo relevante, mas há dezesseis anos a coisa era diferente. Quanto aos sonhos, a tal fita cassete nunca veio, mas o meu sonho desde sempre acabou vindo triunfalmente no ano passado, quando me casei com uma menina linda chamada Renata.
Bem, isso era 2001. Há cinco anos. Renata se foi, nos separamos no ano passado. Latino, o mestre dos magos, fez Renata Ingrata em homenagem. A vida segue, as músicas continuam sendo dardos certeiros espetados em várias partes do coração, como um vudu de desenho do Pica-Pau. O que importa realmente é que a fita (hoje provavelmente seria um CD-R) ainda não veio. E o sonho, que parecia ser realidade há cinco anos, ainda é uma lacuna a ser preenchida na minha vida. Um dia, tenho certeza, ela virá.
P.S. 1: O site oficial do Kid Abelha disponibiliza, na seção “Disco”, todas as letras de todas as músicas do grupo. De quebra, oferece trechos dos raríssimos videoclipes que o Kid gravou para o Fantástico. É uma pena que são apenas trechos: adoraria poder rever na íntegra os clipes de Lágrimas e Chuva e Os Outros.
P.S. 2: Recado específico aos assinantes do RSS deste blog: não sei por que cargas d’água, a versão index.xml nem sempre mostra os posts na íntegra (o RSS de 80 Clipes Brasileiros dos Anos 80, por exemplo, exibiu apenas metade do texto). Ainda não sei como corrigir isso; assim, recomendo a assinatura da versão atom.xml. A propósito, só quem lê este blog no endereço do Gardenal.org vê os vídeos e ouve músicas (disponibilizadas graças ao site GoEar.com) em streaming.
P.S. 3: Sub Rosa é um blog que, desde 2001, oferece preciosas dicas literárias e cinéfilas aos seus leitores. Um verdadeiro clássico da blogosfera brasileira.
P.S. 4: Os e-mails que deixei acumulados para responder olham-me de soslaio. A cara que fazem não é das mais amistosas…
P.S. 5: Confira mais textos de Carlos Eduardo Lima, a.k.a. CEL, em sua coluna na Rock Press!
Alexandre Inagaki
Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.
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