Cantigas de roda para a geração mertiolate-que-não-arde
Por Alexandre Inagaki ≈ quinta-feira, 16 de janeiro de 2014
“Atirei o pau no gato, mas o gato não morreu. Dona Chica admirou-se do berro que o gato deu.” Todo mundo já ouviu essa historinha alguma vez na vida. Porém, há quem ache que os versos desta cantiga clássica poderiam estimular crianças abiloladas a cometerem violências contra animais. E assim, surgiu a versão edificante (ou não) cantada por Aline Barros, cujos versos dizem:
Não atire o pau no gato
Porque isso não se faz
Jesus Cristo nos ensina
A amar, a amar os animais
Amém!”
Outras versões edulcoradas de cantigas infantis andam sendo disseminadas em escolas que pregam a cartilha do politicamente correto, na qual ninguém mais bate em ninguém e todas as histórias têm um final feliz. Vide o que andaram aprontando com “O Cravo e a Rosa”, cujos versos originais dizem:
O Cravo brigou com a Rosa
Debaixo de uma sacada
O Cravo saiu ferido
E a Rosa despedaçada
O Cravo ficou doente
A Rosa foi visitar
O Cravo teve um desmaio
E a Rosa pôs-se a chorar”
Imagino que, se esta singela cantiga fosse adaptada para a contemporaneidade, ela terminaria com a Rosa dando uma avaliação negativa para o Cravo no Lulu, enquanto o Cravo, além de dar unfollow no Twitter e de bloqueá-la no Facebook, vasculharia fotos ousadas da Rosa a fim de compartilhá-las com seus amigos no WhatsApp. Porém, como a tendência é de que historinhas para crianças recebam finais felizes que nem sempre são encontrados na vida real, algum incauto criou esta continuação:
A Rosa deu um remédio
E o Cravo logo sarou
O Cravo foi levantado
A Rosa o abraçou”
Há também quem tenha enxergado nesta canção uma apologia à violência doméstica. Como bem ironizou Luiz Antonio Simas: “O próximo passo é enquadrar o cravo na Lei Maria da Penha.” E aí, por causa disso, reescreveram a primeira estrofe da cantiga:
O Cravo encontrou a Rosa
Debaixo de uma sacada
O Cravo ficou feliz
E a Rosa ficou encantada”
Não conheço nenhuma criança que tenha maltratado um felino só porque cantou “Atirei o Pau no Gato”, do mesmo modo que não creio que nenhum jogador de videogame passou a esmagar tartarugas influenciado por Super Mario Bros. E não vejo sentido nesta paranóia da superproteção, que faz com que pais e professores omitam aspectos não agradáveis da sociedade e do comportamento humano destas cantigas transformadas em relatos assépticos. Medo, inveja, raiva, vaidade, decepções, dores e perdas fazem parte inexorável da existência; omiti-las de músicas e histórias para crianças não as prepará melhor para os socos que por vezes são desferidos pela vida.
Por essas e outras, toda vez que alguém comenta comigo sobre alguma regravação de um clássico infantil, digo que a única versão decente que conheço é a regravação pinkfloydiana do Falcão.
P.S.: Leituras relacionadas: “Progressiva, degenerativa e irreversível” e Qual o livro que mais marcou sua infância?
Alexandre Inagaki
Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.