Resenhas express
Por Alexandre Inagaki ≈ quarta-feira, 14 de setembro de 2005
Ao traçar o perfil do fotógrafo David Bailey, o jornalista e escritor inglês Tony Parsons extraiu a seguinte declaração do entrevistado: “Todo mundo gosta de um pouco de bajulação, sexo e dinheiro. Se bem que para mim a bajulação não é uma força motivadora tão grande - sem dúvida, prefiro sexo e dinheiro“. Ao escrever sobre os neo-hippies, Parsons vaticinou: “Nenhuma cultura que requer a leitura de O Senhor dos Anéis, Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas e Fernão Capelo Gaivota pode ser realmente boa. Uma gaivota não deve saber porra nenhuma“.
Em um artigo sobre o amor, outro tiro certeiro: “Meu caro apaixonado, você não sabe que o romance nada mais é que o amor antes de ter a chance de ter errado? E você não sabe que, se a frágil flor não for esmagada assim que florescer, então, um, cinco, dez anos depois, você vai estar empurrando um carrinho de bebê no supermercado e se perguntando: ‘Mas onde estará meu verdadeiro amor?’. E ele estará ali, diante de você, seu amor verdadeiro, que ficou frio e distante, olhando amargamente para as datas de validade.“
E é assim. A cada leitura do imperdível “Disparos do Front da Cultura Pop” (Editora Barracuda, R$ 39), coletânea de artigos escritos por Tony Parsons em publicações como New Musical Express, The Guardian, Elle e Arena entre 1976 e 1994, preciso resistir à tentação de publicar trechos de todos os textos, que invariavelmente exibem a prosa hábil, bem-humorada e repleta de wit deste autor que iniciou a carreira jornalística fazendo resenhas dos primeiros shows de bandas como Sex Pistols e Clash, ainda no nascedouro do movimento punk.
Atualmente elaborando um roteiro para cinema baseado em um romance escrito por ele mesmo (por encomenda de Julia Roberts), Tony Parsons também é responsável por uma polêmica coluna publicada no Daily Mirror, onde é possível conferir semanalmente a verve afiada de alguém que descreveu um show de Kylie Minogue da seguinte maneira: “Exibindo-se pelo palco como uma prostituta de porto, Kylie foi apalpada por dançarinos de olhar enviesado, teve sua roupa arrancada e o traseiro examinado minuciosamente por um dos cantores do coro. Mas é preciso dizer que o show também teve momentos ruins“.
O cinema de Lucrecia Martel é desconcertante. Sua câmera exibe closes que intrigam em vez de revelar a psique de seus personagens, da mesma maneira que suas histórias parecem terminar antes que sejam efetivamente concluídas. Mas isso acontece porque Martel sabe que uma interrogação bem elaborada é muito mais poderosa do que um ponto final insatisfatório.
Assim como já havia feito em “O Pântano” (2001), Lucrecia Martel excrutina os segredos de cada um de seus personagens no não menos que impressionante “A Menina Santa” (2004). Não é, por certo, uma obra para todos os gostos. A narrativa de Martel é pausada e envolve os espectadores aos poucos, requerendo certo tempo de depuração até que mergulhemos no universo nunca óbvio de seus filmes. Quem aprecia desafios por certo encontrará no cinema de Martel toda uma plêiade de possíveis interpretações. Porque “A Menina Santa” é pura sinestesia, a começar pela metáfora do theremin, instrumento que produz sons sem que o músico o toque. Analogamente, os personagens do filme não necessitam se relacionar diretamente. Entre mal-entendidos e subentendidos, a trama que gira em torno de um otorrinolaringologista, uma jovem católica que é bolinada por este e sua mãe produz algo raro de se ver nas telas: arte.
Uma faxineira que invade constantemente os ambientes enquadrados dedetizando ambientes, uma mulher que tem problemas para compreender as palavras que ouve, uma adolescente que reluta em perder a virgindade mas permite outros atos a seu namorado, e em meio a tudo uma edição de som primorosa que invade os tímpanos com distorções, barulhos indistinguíveis, sussurros, ruídos ambientais. Cada narrativa paralela é cuidadosamente trabalhada de modo crescente, a fim de descambar em um aparente anticlímax no qual duas moças brincam inocentemente em uma piscina. E no entanto o cinema, assim como a vida, não é feita de respostas. Martel tece em “A Menina Santa” um retrato instigante e perturbador dos embates entre desejo e repressão, silêncio e sons, pecado e redenção.
Há tempos defendo a tese de que as músicas de Zezé di Camargo um dia serão devidamente valorizadas e ganharão o mesmo status cult desfrutado por Roberto Carlos, que há alguns anos era invariavelmente taxado como “brega”, mas hoje possui o merecido reconhecimento artístico. Não à toa citei o trecho de uma canção dele em um conto que escrevi, e ainda hei de escrever uma tese relacionando as letras da dupla sertaneja com os Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes. Mas, por ora, limito-me a viajar menos na maionese e escrever algumas linhas sobre o grande sucesso cinematográfico brasileiro do ano: “2 Filhos de Francisco” (2005).
Nove entre dez resenhas destacam a dicotomia que cercou o lançamento do filme, que seria “popular, mas de qualidade”, como se críticos e espectadores afirmassem, tacitamente, que gostaram do que viram na tela apesar dele narrar a história dos garotos-propaganda das Lojas Marabrás. Oras, me poupem! Cientes da hipocrisia que rege o “bom gosto” dos considerados “formadores de opinião”, os produtores inteligentemente convocaram a carioca Conspiração Filmes, que escalou o premiado diretor de comerciais e videoclipes Breno Silveira para a direção, e Caetano Veloso para compor a trilha sonora. Devidamente envernizado com grifes de “qualidade”, o filme obteve êxito na busca de rompimento de preconceitos, batendo recordes de bilheteria inclusive entre as classes A e B.
E no entanto, o sucesso do filme não se justifica apenas por conta desses cuidados mercadológicos. Para além da interpretação largamente difundida de que a cinebiografia é o retrato fiel de brasileiros que não desistem nunca (vade retro, Duda Mendonça!), a história dos irmãos Mirosmar (Zezé di Camargo), Welson (Luciano) e Emival (Camarguinho) emociona porque o filme não teme incorrer no sentimentalismo. Assistir a cenas como a dos dois irmãos que, sozinhos, aventuram-se na rodoviária a fim de arrecadar alguns trocados para a família que passa fome, ou a descoberta do destino final de Camarguinho, e não ter medo de derramar algumas lágrimas de genuína emoção, é pôr o superego de lado e deixar-se levar pelo arrebatamento que nem todo filme é capaz de gerar. Porque “2 Filhos de Francisco” é popular e sentimental feito uma mãe que vela o sono do filho, um casal de namorados de caminha de mãos dadas ou uma canção de Zezé di Camargo. É até besta escrever isso, mas as obviedades mais claras nem sempre são suficientemente explicitadas: ninguém deve ter vergonha de gostar disso ou daquilo por temer o julgamento dos outros.
Alexandre Inagaki
Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.
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