Morte e vida digital
Por Alexandre Inagaki ≈ quinta-feira, 09 de novembro de 2006
“Memento mori” é uma expressão em latim que ressalta o óbvio nem sempre recordado: “lembre-se de que você vai morrer“. A saudação, longe de ser pessimista, serve para que tomemos consciência de que um dia morreremos, e precisamos investir na vida enquanto ainda estamos por aqui. Não se trata de morbidez: pensar na morte é meditar sobre a vida, é aprender a encará-la com a serena naturalidade de quem sabe que ela faz parte inexorável da nossa existência.
Meu amigo Daniel Barros faleceu em 30 de outubro do ano passado, aos 50 anos. No entanto, segundo sua persona no Orkut, ele já completou 51 anos de idade. Quando vi em minha página inicial o lembrete de seu aniversário, deixei uma mensagem em seu perfil. Assim como eu, vários dos muitos amigos de Daniel também escreveram recados, não se importando com o fato de o aniversariante não estar mais por aqui para respondê-los. Um dos depoimentos deixados fala em torcer para que haja conexão à Web onde quer que ele esteja (“espero que existam cibercafés no céu”).
O perfil de Daniel me fez lembrar de uma comunidade no Orkut intitulada Profiles de Gente Morta, criada pelo analista de sistemas Guilherme Dorta a partir de um tópico da comunidade No Escuro. Nela, milhares de membros postam links para as páginas de usuários do Orkut que já faleceram. Seus participantes são assustadoramente eficientes: mortes que repercutem na mídia, como as do recente acidente com o avião da Gol, ou a de Bruno Ribeiro de Macedo, assassinado pela polícia quando buscava ajuda médica para o seu pai enfartado, logo ganham tópicos nos quais são linkados seus perfis.
Ao navegar por eles, foi inevitável a comparação com as caminhadas silenciosas que faço ao ver os túmulos de um cemitério em dia de Finados. Mais do que isso, fui descobrindo histórias que passariam desapercebidas nos obituários de jornais ou estatísticas governamentais, e me senti como se estivesse assistindo a um documentário de Eduardo Coutinho, especialista em trazer à tela pessoas desconhecidas sobre as quais jamais saberíamos algo se não fosse por suas câmeras.
Reflexo do público majoritário a usar a Internet, os perfis em sua vasta maioria pertencem a jovens que morreram muito antes do que o normalmente esperado. São acidentes automobilísticos, assassinatos, suicídios, doenças fatais que acentuam a dramaticidade dos casos. Os scraps deixados em seus perfis deslindam uma breve fração de suas vidas. Na página de um rapaz de 17 anos, vítima de latrocínio, um amigo escreve: “A gnt ainda se ve, cara. Agora tu é meu anjo da guarda, maninho. Espero nao t dar mt trabalho, hehehe. Não consigo segurar a lagrima do olho. Mas a certeza de q a justiça será feita e d q tenho um anjo da guarda me consola“.
No perfil de uma jovem de 20 anos, que morreu durante uma operação no coração, seu pai desabafa: “Completou-se um ano da sua ausência entre nós, aqui neste mundo minha filha. Fecho os olhos e lembro do seu belo sorriso, da sua gargalhada, do seu olhar sempre buscando em mim mais uma palhaçada para que pudéssemos rir juntos mais uma vez. Sinto muito pelas broncas, pois quando lembro que por algum motivo eu a deixei triste, meu coração se consome“.
No livro de recados de um jornalista morto aos 31 anos em uma tentativa de assalto, um amigo compartilha sua história com os outros visitantes: “Fernandinho, teve uma situação que eu quero registrar aqui para todos aqueles que te amam. Foi quando vc pegou sua carteira de motorista e nós estudávamos juntos no Helio Alonso. Em 20 minutos vc conseguiu perder a habilitação novinha três vezes. Numa delas o documento voou para o meio da rua na Vieira Souto. Quem te conhece sabe que vc é capaz destas proezas. Saudades de quem tem vc como exemplo“. É difícil não se emocionar ao ler o scrap deixado por uma amiga no mesmo perfil: “Aproveito para mandar um recado p/o Marcão (amor da minha vida). Diz que eu mandei um beijão, que eu morro de saudade, que o nosso filho é tudo o que ele sempre imaginou e sonhou e que já tem muito orgulho dele, mesmo sem tê-lo conhecido. Vê se vocês não aprontam muito aí no céu, tá?“.
Nesta “imensa teia de bits“, a Internet mostra sua face mais humana.
Angela Marsiaj, colunista do site Blue Bus, perdeu o marido, o executivo Artur Ribeiro Neto, morto aos 46 anos de idade, vítima de câncer. Poucos dias depois, escreveu um belo relato a respeito de como o mundo digital remodelou a relação que possuímos com a morte. Eis um trecho de seu texto: “Eu era a esposa que em vez de ler a revista Caras enquanto acompanhava o paciente, aproveitava para checar o email, preparava power points. Realmente nos mudamos para o hospital e levamos a casa junto - nossos computadores. De noite, eu nao queria incomodar meu marido e assistia no laptop com fone de ouvido a episódios e mais episódios dos seriados americanos - Família Soprano, Friends, Seinfeld… Acho que o mundo digital contribuiu para nos trazer um pouco mais de conforto e familiaridade numa doença tao difícil“.
Outro exemplo de como a tecnologia mudou nossa relação com a morte é o blog que Túlio Chuff criou após perder a namorada, Marina Ferreira Drumond, vitimada por um acidente de carro em julho de 2004. Na época, Túlio tinha 16, e Marina apenas 15 anos de idade. O primeiro post deste blog, intitulado Túlio & Marina, transcreve a carta de despedida que escreveu para a amada. Seu relato fala do CD que gravou com as músicas que marcaram o namoro e da última conversa que tiveram, por ICQ, pouco antes do acidente. Ao final, lamenta: “Eu queria tanto poder te dar um ultimo abraço, beijo, dar um ultimo tchau. Eu ainda não consiguo me acostumar com a ideia de que nunca mais vou ter você do meu ladinho pra ficar me dizendo aquelas coisas lindas que você me falava quando estavamos a sós, o que me fazia ficar completamente apaixonado por você. Eu daria e faria qualquer coisa para ter você de volta. So de pensar que perdi milhoes de chances de dizer que te amava, eu queria tanto te falar isso pra ver sua reação… Marina eu te amo tanto e jamais vou deixar de te amar, você foi, é e sempre será a menina da minha vida“. Nas entradas subseqüentes, Túlio publica textos de amigas e também do pai de Marina, criando um verdadeiro memorial online para a namorada.
Lamentavelmente, a Internet reflete também a imensa estupidez humana. Não é raro encontrar nos perfis do Orkut mensagens absolutamente imbecis, que variam das perguntas abobadas (“oi, é verdade que você morreu?“) até ofensas da mais grotesca covardia. Nesta matéria do New York Times, traduzida por Claudia Freire para o portal G1, administradores de sites como Legacy e MyDeathSpace.com (focado a participantes do MySpace, é o equivalente norte-americano ao “Profiles de Gente Morta” para os usuários brasileiros do Orkut) comentam o trabalho que têm para filtrar comentários ofensivos deixados nos livros de visitas online dos falecidos. Como bem escreve Isaac Adamson, mediador do Legacy, “a morte revela o que há de melhor e de pior nas pessoas“.
Afirmou Sêneca: “Morremos mil vezes do medo de morrer“. Mais do que a morte, é preciso dissipar em nós o medo de viver. Saber que a vida é um rascunho definitivo é conscientizar-se de que ela não deve ter gosto de obra inacabada. Busquemos o pássaro voando.
Requiescant in pace.
P.S. 1: Duas leituras que recomendo sobre o assunto: “Blogs de Pessoas Mortas” (Alex Castro) e “O Reflexo da Estupidez Humana” (Pedro Doria). E um post relacionado: “Progressiva, degenerativa e irreversível”.
P.S. 2: Quero crer que nem tudo é memória RAM neste mundo digital.
P.S. 3: Dedico este post aos meus avós e a todas as pessoas que passaram pela minha vida, deixando lembranças e momentos que não existem em nenhum lugar mais além do meu coração.
Alexandre Inagaki
Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.
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