De trolls e outros demônios

Por Pedro Burgosquarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Desde que descobri o primeiro fórum de BBS lá no meio dos anos 90, tomei gosto por discutir online. Eu acreditava inclusive que era possível ganhar uma discussão, e por isso imaginava que meu primeiro livro se chamaria Como Vencer uma Discussão de Bar. Este quadrinho do XKCD me definia:

Como diabos eu podia pensar assim?

Agora eu encaro aquele eu de anos atrás – o cara que corria para ser o primeiro a discordar na caixa de comentários – e ofereço alguns conselhos. Espero que eles possam ser úteis a você.

[O trecho a seguir é adaptado do livro Conecte-se ao que Importa]

* * * * *

 

O comportamento mais óbvio, quando não gostamos de algo que lemos ou assistimos online, deveria ser ignorar, fechar a janela – ou não visitar o site de novo. Não para o troll.

Há várias teorias para explicar a origem do termo troll – uma espécie de monstro verde gigante na mitologia nórdica, mas também o tipo de pessoa que gosta de inflamar os outros escrevendo na internet. A teoria mais aceita é que na verdade o troll é a pessoa que faz o trolling, em inglês o ato de puxar a vara de pesca com algo que fisgou. Podemos defini-lo como uma pessoa que propositalmente causa desconforto no interlocutor (ou autor da mensagem) em alguma discussão online. O seu local de atuação favorito parece ser a área de comentários de blogs, portais e vídeos no Youtube. Classificar alguém como troll é totalmente subjetivo, e raramente o monstrinho se entende como tal.

Há gente que gosta de tumultuar qualquer debate, inclusive – ou principalmente – em mesa de bar. Mas o troll legítimo é um produto da internet; sua existência só é possível graças às ferramentas que usamos diariamente. Eles são moldados pela bolha, alimentam-se das pessoas com visão parecida, criando anti-corpos contra quem pensa diferente; se valem, muitas vezes, dos lugares onde o comentário anônimo é tolerado e aproveitam a inconsequência dos seus atos. Ele fala ou escreve sua opinião, porque sabe que poderá roubar por alguns segundos os refletores e a atenção do ofendido.

O comportamento mais óbvio, quando não gostamos de algo que lemos ou assistimos online, deveria ser ignorar, fechar a janela – ou não visitar o site de novo, talvez não recomendar publicamente ou bloquear uma pessoa. Não para o troll. “Online, onde tudo parece ser focado no usuário, personalizado de todas as formas possíveis, algumas pessoas es- tão acostumadas a serem os lordes da internet. Se eles se deparam com algo de que não gostam, preferem queimar tudo do que deixar pra lá. É a internet deles, afinal. A falta de tolerância e empatia é um problema da internet moderna”, escreve Christopher Gonciarz no simpático livrinho U Mad? The Internet’s Guide to Idiots.

Um ensinamento de mais de dez anos (eternidade para a internet) permanece razoavelmente verdadeiro para enfrentar esses seres: “A única maneira de lidar com trolls é limitar a reação deles, lembrando outras pessoas que não devem lhes responder”. Em português, essa advertência de Timothy Campbell ficou conhecida como a máxima “não alimente os trolls”. Ignorar deve ser não responder ou não jogar mais lenha na fogueira – lembre-se que o que eles querem é atenção. Mas Gonciarz sustenta também que é bobagem simplesmente descartar as críticas, por mais mal-educadas que sejam. Adriano Silva, meu chefe durante boa parte à frente do Gizmodo Brasil, me ensinou a responder reclamações agressivas (aquelas com xingamentos) de maneira elegante e polida. Isso cria, idealmente, dois desfechos: ou o troll se sente mal por ser tão deseducado, ou ele segue com os ataques, mas as outras pessoas que observam a briga tendem a não apoiá-lo. É um approach óbvio, olhando em retrospectiva, mas tenho que admitir que demorei alguns “anos” para conseguir colocar isso em prática.

O tempo que fiquei à frente do site, que chegou a ter mais de mil comentários diários (lia a maior parte), me ajudou muito a entender melhor como lidar com pessoas na internet e ver os limites do discurso online. Um caso, especificamente, se destacou: quando Steve Jobs morreu, Richard Stallman, um dos pais da computação moderna, criador do movimento do software livre de hábitos “excêntricos”, disse que estava feliz que o fundador da Apple não estava mais entre nós. Em um post curto em seu blog, ele esclarecia que não estava “feliz” pela morte de alguém, que ninguém merecia morrer, mas que se sentia aliviado que a influência nociva de Jobs não existia mais.

Há muita gente tratando debates online como uma briga entre dois cachorros marcando território e mijando todo o lugar no processo.

Eu particularmente não gosto da postura radical de Stallman em vários assuntos e acho que ele foi, no mínimo, deselegante no evento. Mas quando resolvi escrever um texto a esse respeito no Gizmodo, no calor do acontecimento e diante da necessidade de cumprir a meta de notícias diárias, cometi todo tipo de erro que se pode imaginar. No título, simplifiquei e distorci a posição dele (“este homem está feliz que Jobs morreu”, dizia a manchete), caprichei em ironias, ataques gratuitos e fora de contexto. Acabei mexendo em dois vespeiros: a parte vocal dos leitores do site que odeia a Apple (logo, eles concordavam com Stallman) e os defensores do software livre, que ouviram falar desse artigo na internet e partiram direto para os comentários. Era véspera de um feriado. Passei a madrugada brigando com os leitores, colando links que sustentavam a minha tese, modificando levemente o texto para fazer mais sentido. Mas não havia como consertar – a discussão passou do debate sobre o texto de Stallman para a minha pessoa, ou o que as pessoas que nunca conversaram comigo imaginavam que eu era. De manhã cedo, na fila do check-in do meu vôo, exausto, saquei o celular, apaguei o artigo e toda a discussão. Foi a primeira e – espero – única vez que fiz isso. Mas aprendi um bocado com o episódio.

Eu não tinha razão no argumento inicial, da maneira como o coloquei, mas se estivesse falando exatamente o que escrevi em uma mesa de bar, não haveria grandes problemas, mesmo que não fosse entre amigos. Se alguém ficasse incomodado, poderia fazer uma correção ali, no ato, e a conversa seguiria. Há sempre um “não, veja bem” para calibrar o discurso. O volume da minha voz e o riso no canto da boca denotariam facilmente a ironia. Se alguém discordasse, eu pararia de falar e ouviria a pessoa, ela teria certeza de que um outro ser vivo estaria prestando atenção e poderia dosar as palavras, sem ser agressiva.

Nada disso acontece em debates online, especialmente com pessoas desconhecidas. Algum tempo depois desse incidente do qual não me orgulho, limitei muito o escopo das minhas discussões, especialmente em redes sociais. Decidi, por exemplo, não fazê-las em espaços “públicos”, como nos comentários do Facebook, quando se tratar de algo polêmico ou que desafia fundamentalmente a posição de quem escreveu o “tópico” original. A minha experiência é que quando não temos certeza sobre quem vai receber a mensagem – ou seja, quando postamos em um blog ou falamos para amigos de amigos no Facebook –, corremos um risco muito maior de não sermos compreendidos. Além disso, quando questionamos o raciocínio de uma pessoa na frente de seus amigos, ela pode se tornar violenta para defender o seu status e pode entender as nossas palavras como um ataque ad hominem.

O termo em latim, que descreve quando a crítica deixa de ser à ideia para se dirigir à pessoa, é apenas um dos vícios de debate facilmente identificáveis online. Há o que em inglês se chama de straw man argument, ou argumento do espantalho, quando alguém isola, simplifica e idealiza o que o oponente diz para atacar uma posição facilmente criticável. É quando você mostra, revoltado, o vídeo de um policial sendo agressivo demais com manifestantes e alguém distorce o seu pensamento e diz que você está é defendendo o vandalismo. Há a “falácia da associação”, que é a mais recorrente em debates políticos. Durante a última década, quem criticava o partido do governo, rapidamente poderia ganhar o carimbo de “reacionário”, “direitista” ou, dependendo do humor do seu adversário, de “golpista”. Há muita gente tratando debates online como o que os anglófonos chamam de “pissing matches”, uma briga entre dois cachorros (quase sempre entre homens, o que não impressiona) marcando território e mijando todo o lugar no processo.

O meio que escolhemos para entrar nessas competições idiotas interfere na qualidade do debate, não há dúvidas.

Apesar de achar que as redes sociais podem ser um espaço interessante para ter contato com o contraditório, creio que elas são um lugar que se provou pouco produtivo para grandes debates.

Certa vez voltei de um filme incensado pela crítica e escrevi no Twitter que não gostei dele, dando o link para uma resenha que fazia eco da minha opinião. Um amigo ficou meio indignado e escreveu várias mensagens seguidas discordando, fazendo diversas inferências e me colocando em uma “caixinha” (dos que gostam de Transformers ou que não “entendem filmes cabeça”, algo longe da realidade). Eu disse apenas que ficaria feliz em debater a questão em torno de um bom vinho, em casa. Encerrei com um “este não é o foro adequado” e comecei a repetir esta desculpa desde então. Ali, funcionou: meu amigo foi de fato em casa tomar vinho e conversar sobre a vida, e simplesmente esquecemos a “polêmica”. Nos outros casos, o “não é o foro adequado” funciona como um fim de discussão que não é visto como desligar o telefone na cara. É um “concordamos em discordar”, o que é saudável.

Há coisas que eu simplesmente não debato online, ou limito a cinco “tréplicas” ou menos. Há outros mandamentos no meu guia de estilo. Tento ao máximo deixar clara a minha intenção, evito sarcasmo, ironia, aponto as fontes, tento não ofender ninguém, distribuo uns “eu acho” e “parece” para ter sempre uma saída – opiniões definitivas e radicais são sempre menos defensáveis. Alguém pode chamar isso de covardia ou ficar demasiadamente em cima do muro, mas acredite: estive em discussões o suficiente para entender quão pouco benefício se tira delas.

Apesar de achar que as redes sociais podem ser um espaço interessante para ter contato com o contraditório, creio que elas são um lugar que se provou pouco produtivo para grandes debates. Todos os problemas que listei aqui decorrem em última instância da percepção que a internet é um mundo à parte. Usamos mais ironia que o normal e ofendemos grupos de pessoas porque não vemos a reação emocional dos atingidos, até porque nem sabemos quem eles são – um comportamento que leva, em última instância, ao cyberbullying – e que Louis CK explicita nesse vídeo:

Se queremos discutir a sério um assunto complexo, com pessoas inteligentes, pela internet, a verdade é que vamos gastar horas e horas digitando no teclado. Então há a tentação, para sermos mais eficientes, de transformar o “oponente” em uma pessoa mais rasa, as ideias com menos nuances, para podermos encurtar a conversa e simplificar os argumentos.

Não me parece um caminho saudável. Precisamos enfrentar os trolls que existem em nós mesmos se quisermos deixar o mundo dos debates online com menos monstros e mais ideias interessantes, que nos façam crescer.

Pense Nisso!
Pedro Burgos

Pedro Burgos, 33, é jornalista e escreve sobre tecnologia desde 2004. Já realizou reportagens sobre o assunto em diversas publicações, como Superinteressante, Galileu, Mundo Estranho e Vip. Foi editor-chefe do Gizmodo Brasil entre 2008 e 2012 – quando começou a reavaliar a nossa relação, por vezes obsessiva, com os apetrechos conectados. Atualmente é editor do Oene, revista digital de ensaios. "Conecte-se ao que Importa - uma Manual para a Vida Saudável" é seu primeiro livro.

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Comentários do Blog

  • Homonimo do Anonimo

    Post altamente preconceituoso e reacionário…

  • G.H.M.

    A questão é que algumas pessoas querem ser ouvidas, mesmo quando não se tem nada para falar.

  • Ana Carolina Valle

    Excelente texto, Pedro. Visualizei bem as batalhas diárias que vem sido travadas, nas redes sociais especialmente, em que o discurso político de alguns tem se tornado cada vez mais agressivo em ataque ao posicionamento alheio. rs

Pense Nisso! Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista e consultor de comunicação em mídias digitais. É japaraguaio, cínico cênico. torcedor do Guarani Futebol Clube e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos. Já plantou semente de feijão em algodão, criou um tamagotchi (que acabou morrendo de fome) e mantém este blog. Luta para ser considerado mais do que um rosto bonitinho e não leva a sério pessoas que falam de si mesmas na terceira pessoa.

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