Um desabamento e a notícia de jornal que virou música

Por Alexandre Inagakisexta-feira, 27 de janeiro de 2012

“Linda do Rosário”, obra da artista Adriana Varejão inspirada nas paredes azulejadas do hotel homônimo que desabou em 2002

A vida tem dessas coisas. Você ouve uma música distraído, sem prestar atenção nos seus versos, e ela acaba passando desapercebida em meio a tantas coisas cotidianas capturando a sua atenção. Mas ainda não era o momento, nem o local era o mais apropriado, do mesmo modo que nem todo amor é à primeira vista.

Esse é só o começo do fim da nossa vida/ Deixa chegar o sonho, prepara uma avenida/ Que a gente vai passar”

Quando soube da tragédia recente no Rio de Janeiro, na qual três edifícios antigos do centro desabaram, não pude deixar de lembrar de outro incidente parecido.

Era um prédio de cinco andares, localizado na Rua do Rosário, que caiu na tarde do dia 25 de setembro de 2002. Nesse caso, a tragédia só não foi maior porque foram ouvidos estalos na estrutura cerca de 20 minutos antes do desabamento, possibilitando que os hóspedes e empregados do Hotel Linda do Rosário, que funcionava no local, fugissem a tempo. Tudo isso aconteceu devido a uma reforma mal executada em um restaurante no térreo, que abalou a estrutura do prédio, construído há quatro décadas.

No entanto, nem todos escaparam a tempo.

O porteiro do Linda Rosário, Raimundo Barbosa de Melo, de 37 anos, estava com a mulher na recepção do hotel e, ao som do primeiro estampido, avisou aos demais funcionários que saíssem do prédio imediatamente. No momento em que descia a escada, lembrou das duas pessoas que ocupavam um quarto. ‘Interfonei e cheguei a bater na porta, mas não responderam’, contou.

Dois dias depois, os bombeiros encontraram dois corpos em meio aos escombros. Ele, professor, tinha 71 anos. Ela, bancária, tinha 47. Seus corpos foram reconhecidos por suas respectivas famílias no dia seguinte.

Deixa o moço bater que eu cansei da nossa fuga/ Já não vejo motivos pra um amor de tantas rugas/ Não ter o seu lugar”

O filho do professor não quis que o nome do seu pai fosse divulgado, segundo matéria do Terra, “em virtude das circunstâncias que envolveram sua morte, que poderiam denegrir sua imagem”. Uma reportagem publicada no jornal O Dia revelou o motivo desse pedido: a bancária e o professor estariam vivendo um romance secreto, que acabou sendo revelado por causa do desabamento do hotel Linda do Rosário. Seus corpos foram encontrados nus e abraçados sobre os restos de uma cama.

As circunstâncias dessa relação inspiraram Marcelo Camelo a compor “Conversa de Botas Batidas”, faixa 11 do álbum Ventura, do Los Hermanos. Em declaração dada à revista Zero, Camelo descreveu a canção com estas palavras:

Uma divagação sobre uma situação real. Um senhor e uma senhora morreram num desabamento aqui no Rio, e eles eram amantes. A música é como se fosse uma conversa deles antes de o prédio desabar.

O único álbum do Los Hermanos que tenho é o primeiro, que tem “Anna Júlia” e “Primavera”. Meu interesse pela banda diminuiu com os álbuns seguintes, e acabei não acompanhando suas gravações posteriores. Mas, depois que soube do contexto que inspirou os versos dessa canção, passei a ouvi-la de modo totalmente diferente, compreendendo a sensibilidade com que Marcelo Camelo preencheu as lacunas deixadas pelas reportagens da época. Ouça “Conversas de Botas Batidas” depois de conhecer a história do professor e da bancária, e me responda: esta canção não soa mais bonita após entender o contexto de sua letra?

Além da canção do Los Hermanos, o casal do Hotel Linda do Rosário inspirou a obra da artista plástica Adriana Varejão que ilustra este post. Encontrei no Google ainda um blog sobre um filme de Adolfo Lachtermacher, intitulado “Linda do Rosário”, que seria produzido a partir dessa história. Mas o blog é de 2007, e o filme ainda não veio à tona. De qualquer modo, penso que “Conversas de Botas Batidas” é uma bela música cinematográfica, daquelas que ficam na mente para não sair mais.

Diz quem é maior que o amor?/ Me abraça forte agora, que é chegada a nossa hora/ Vem, vamos além.

Pense Nisso!
Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.

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Comentários do Blog

  • Paloma

    Gostei muito, musica boa, e u,a historia interessante e muito bem contada.

  • Pingback: Sexta Musical: Bandas formadas na faculdade | Geek Vox

  • fernando pina

    LINDA POESIA DO MARCELO CAMELO; SÓ POETAS DE VEIA CONSEGUEM ISSO; RETRATAR (sem mostrar) A TRAGÉDIA E A SUBLMAÇÃO DO AMOR; 
    fernando pina

  • Pingback: Linda versão de Conversas de botas batidas com declamação de Carlos Drummond de Andrade | Baú de Carmélia

  • Carmélia

    Amo essa música. Lindíssima a versão dela na coletânea Re-Tratos”,
    com versões de artistas diversos de músicas da banda Los Hermanos.

    Vou citar o texto no meu blog.

    • Carmelia

      Complementando…. gostei muito do texto.

  • Observadora de Pensamentos

     Eu lembro do dia dessa tragédia, trabalhava próximo…
    E mesmo sendo ilustres desconhecidos, a morte desse casal sempre me impressionou.
    Agora, depois de esclarecido como tudo ocorreu e a música, tudo faz muito sentido.
    Bendito Marcelo Camelo que souber traduzir esse sentimento que tanto me impressionava.

  • Neima Toscano

    Sou suspeita sobre as letras do Los hermanos…é algo que me emociona muito .

  • Brunasolivamello

    realmente marcelo camelo se superou, nossa escuto e canto essa musica quase tds os dias e nao enjoo. é incrivel como mesmo sendo uma tragedia é uma linda e inesquecivel historia de amor incalculável. se tds amasemos assim o mundo seria mt melhor e as pessoas teriam menos preconceito!
    mt obg camelo por falar tão alto aos nossos corações…

  • Joaquim Alves

    Que interessante, não tinha conhecimento da relação da música com a está tragédia. Depois de saber a música tornou-se bem mais interessante.

  • SandroDias

     Agora a música faz sentido como nunca e só posso dizer que o Camelo foi genial em retratar com versos tão bonitos uma tragédia!

  • http://www.facebook.com/richardplacido Richard Plácido

    Como um bom fã de Los Hermanos eu já havia interpretado esta linda canção, mas eu não tinha evidências históricas sobre… 

    Agora ela ficou ainda mais real e ainda mais bela.

    Abraços, mestre!

  • Neo Charles

    Que ideia a dele hein! Só um artista para transformar essa circunstância em música!

    • http://www.pensarenlouquece.com/ Alexandre Inagaki

      Lembrei daquele poema que o Manuel Bandeira escreveu, Poema Tirado de uma Notícia de Jornal: http://antoniocicero.blogspot.com/2009/04/manuel-bandeira-poema-tirado-de-uma.html

      • Neo Charles

        Escrevi um texto em meu blog com o título da canção. Não que eu tenha me baseado nela, mas como eu sabia que a canção era de duas pessoas (que eu achava) que estavam mortas, imaginei que a conversa não daria em lugar nenhum. Por isso meu texto, que é um diálogo, fala sobre uma conversa que não dá em lugar nenhum… texto experimental, não ficou tão bom. Mas com essa nova ótica da inspiração do Camelo ele soa totalmente deslocado em um contexto com a música… já era deslocado, agora está ainda mais.

        Segue o link do texto:
        http://neoquiproquo.wordpress.com/2011/07/20/conversa-de-botas-batidas/

    • Observadora de Pensamentos

       Do jeito que há prédios desabando no Rio de Janeiro, haja inspiração para traduzir tanta tragédia…

      Só os artistas nos consolam…

  • MARIZETE M . DA ROCHA

    FICO TRISTE AQUI EM RELEMBRAR A MEMÓRIA DE MINHA QUERIDA  IRMÃ, SOTERRADA NAQUELE HOTEL QUE DESABOU NO DIA 25 DE SETEMBRO DE 2002, A MALDIÇÃO DO 25 E DA QUARTA FEIRA. E ALEGRE POR TER OUVIDO ESTA CANÇÃO. 

    • http://www.pensarenlouquece.com/ Alexandre Inagaki

      Puxa, meus pêsames. :(

  • Lay

    Com contexto a muita fica muito mais bonita! É um retrato desolador, mas, ainda assim, muito bonito! Descobri poesia na tristeza, é arte, né?! :)
    Valeu por compartilhar! o/

    • http://www.pensarenlouquece.com/ Alexandre Inagaki

      Pois é, Lay. É a vida sendo transformada em versos, catarse e redenção. Um abraço!

  • luciana shirakawa

    Nossa, e com esse contexto a música faz bem mais sentido… :)

    • http://www.pensarenlouquece.com/ Alexandre Inagaki

      Né? Os versos ganharam muito mais sentido depois que soube dessa história.

  • http://twitter.com/oir4d Dada Maravilha

    DUCARAI!

  • Convidado

    Sensacional ,
    Sensacional !!!!! Muito bom… Valeu por compartir…

  • http://twitter.com/claudiorubio Cláudio Rúbio

    a obra, o amor, às escondidas, revelados sob escombros, ainda quentes, como fósseis que não tiveram tempo de esfriar, num avesso de arqueologia. só mesmo a poesia consegue entender.

    • http://www.pensarenlouquece.com/ Alexandre Inagaki

      Exato, Cláudio! Só mesmo a poesia para explicar certas linhas tortas da vida.

  • http://twitter.com/reox reox

    Eike triste… :(

  • http://twitter.com/reox reox

    ai, que triste… :(

    • http://www.pensarenlouquece.com/ Alexandre Inagaki

      Triste demais. E nem comentei no post que o professor e a bancária foram enterrados em cemitérios diferentes. :(

  • http://pt-br.facebook.com/angelochaves Angelo Balduino Chaves

    Caramba! Essa música soará definitivamente diferente.

    • http://www.pensarenlouquece.com/ Alexandre Inagaki

      Pois é, Angelo. Incrível como tomar conhecimento dos fatos que inspiraram a composição do Marcelo Camelo deu à música uma outra dimensão, não?

Pense Nisso! Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista e consultor de comunicação em mídias digitais. É japaraguaio, cínico cênico. torcedor do Guarani Futebol Clube e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos. Já plantou semente de feijão em algodão, criou um tamagotchi (que acabou morrendo de fome) e mantém este blog. Luta para ser considerado mais do que um rosto bonitinho e não leva a sério pessoas que falam de si mesmas na terceira pessoa.

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