TV Pirata
Por Alexandre Inagaki ≈ sábado, 18 de dezembro de 2004
Foi numa terça-feira de março de 1988 a estréia de um dos melhores humorísticos produzidos pela TV brasileira em todos os tempos: TV Pirata. Às vésperas do anunciado lançamento em DVD e das reprises programadas a partir de janeiro no canal por assinatura Multishow, como parte das celebrações de 40 anos da Rede Globo a serem completados em 2005, aproveito a ocasião para relembrar algumas reminiscências do humorístico notabilizado por personagens como Zeca Bordoada, Índio Cleverson (“engraçado praaa caramba”), Super Safo, Cabocla Jupira, Adelaide Catarina (repórter de voz monocórdica que mexia os braços feito um boneco Playmobil), Agronopoulos, Maria Inspiração, Olga (militante do PCCPC: Partido Comunista, Comunista Pra Caramba), Darciley (centroavante do Bom Sucesso que, mesmo com uma perna-de-pau, conseguiu fazer 29 gols em cima do Milan), Barbooooooosa, etc etc.
Originalmente a TV Pirata surgiu para cobrir, na grade de programação da Globo, a lacuna deixada pelo “Viva o Gordo”, humorístico estrelado por Jô Soares, que saíra da emissora carioca para apresentar um talk show no SBT. Para comandar sua equipe de criação, a Globo escalou o pernambucano Guel Arraes. Diretor (ao lado de Jorge Fernando) de novelas bem-sucedidas como “Guerra dos Sexos” (1983) e “Vereda Tropical” (1984), destacou-se como inovador da linguagem televisiva ao comandar “Armação Ilimitada” (1985 a 1988), seriado voltado ao público jovem que trouxe à TV brasileira a linguagem dos quadrinhos e videoclipes.
Ao lado de Guel, o outro grande (ir)responsável pelo “TV Pirata” foi seu redator-final, Cláudio Paiva. Cartunista do mítico jornal alternativo “Pasquim” nos anos 70, Cláudio foi um dos fundadores do tablóide de humor “Planeta Diário” (ao lado de Hubert e Reinaldo), que anos depois se fundiria à revista “Casseta Popular” para a criação da “joint venture” Casseta & Planeta. A primeira experiência de Paiva na TV foi em 1987, quando criou junto com seus colegas de “Planeta Diário” e “Casseta Popular” um programa exibido como um dos especiais de final de ano da TV Bandeirantes: o “Vandergleison Show”, protagonizado por Luiz Fernando Guimarães e Pedro Cardoso. No ano seguinte a trupe apresentou um projeto para a Rede Globo, e logo foram cooptados para o novo humorístico em gestação.
Guel e Cláudio chamaram diversos núcleos de criação para a “TV Pirata”, cooptando para a Globo os roteiristas de Casseta & Planeta, remanescentes do grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone, quadrinistas paulistas (Glauco e Laerte Coutinho), dramaturgos do teatro besteirol carioca (Mauro Rasi e Vicente Pereira) e o escritor Luis Fernando Veríssimo. Para o elenco, foram chamados cinco atrizes (Cláudia Raia, Regina Casé, Cristina Pereira, Débora Bloch e Louise Cardoso) e cinco atores (Marco Nanini, Guilherme Karan, Diogo Vilela, Luiz Fernando Guimarães e Ney Latorraca).
A abertura original da “TV Pirata” sintetizava a proposta do humorístico: um bando de corsários invadia os estúdios da TV Globo, anarquizando as produções e invadindo a ilha de edição a fim de inserir uma fita VHS com a programação de uma anti-televisão que esculhambava novelas, filmes e comerciais exibidos na época. Assumidamente influenciada por programas como o americano “Saturday Night Live”, o inglês “Monty Python Flying Circus” e o tupinambá “O Mundo no Ar” (na verdade um quadro que satirizava os telejornais, produzido em 1986 pela Olhar Eletrônico, dirigido por Marcelo Tas e Fernando Meirelles, e exibido dentro do programa “Aventura” da finada Rede Manchete), a “TV Pirata” apresentava dezenas de esquetes por noite, que transitavam de piadas nonsense a quadros fixos que se renovavam a cada temporada.
Alguns dos quadros mais recordados pelos fãs: Combate (sátira a seriados de guerra, destaque do primeiro programa), Black Notícias, Morro do Macaco Molhado (este era o seu tema musical: “Malandro é malandro mesmo/ Não dá bola pra mané/ Mané não lambuza o torresmo/ E não sabe como é“), A Coisa, Sabrina - Os Diamantes Não São Para Comer, As Presidiárias (quadro estrelado por Tonhão, “meliante” masculinizada cuja intérprete, Cláudia Raia, fez questão de assumir o papel a fim de tentar se desvencilhar da imagem de mero símbolo sexual) Piada em Debate, Casal Telejornal (sátira ao casal Eliakim Araújo & Leila Cordeiro, que apresentava na época o “Jornal da Globo”), Esporte Esportivo (é antológica a esquete em que um português narra uma partida de futebol: “lá vai, lá vai, lá vai… lá vem, lá vem, lá vem… e é gol!”), O Segredo de Darcy, TV Macho (sátira do programa feminino “TV Mulher” apresentada por Guilherme Karan, que na pele do personagem Zeca Bordoada fez um trabalho tão bem-sucedido a ponto de ser contratado para estrelar um comercial das panelas Tramontina).
Porém, o grande destaque do primeiro ano de “TV Pirata” foi Fogo no Rabo, quadro cuja abertura parodiava “Roda de Fogo”, novela escrita por Lauro César Muniz. Luiz Fernando Guimarães interpretava Reginaldo, empresário inescrupuloso que dizia que só existiam três coisas importantes na vida: dinheiro, cheque e cartão de crédito. Reginaldo formava um triângulo amoroso com a sedutora Penélope (Cláudia Raia) e a suburbana Natália (Débora Bloch). Um dos coadjuvantes dessa novela era Barbosa (ou “Barbooooooooosa”), pai de Natália e constante vítima das armações feitas por Agronopoulos (Guilherme Karan), capanga de Reginaldo. Interpretado por Ney Latorraca, o personagem fez tanto sucesso que chegou a ganhar quadro próprio na TV Pirata (Barbosa Nove e Meia, sátira ao talk show apresentado por Jô Soares no SBT).
Apesar de certas controvérsias entre o “novo” e o “velho” humor na televisão, a “TV Pirata” conseguiu fazer sucesso de crítica e também de público, chegando a receber o Troféu Imprensa de melhor programa humorístico de 1988. No ano seguinte a abertura do programa mudou, passando a ser estrelada pelos atores do elenco, que surgiam em montagens feitas com chroma key, contracenando com personagens clássicos das novelas globais. Dentre outras trucagens, a abertura exibia Guilherme Karan aos prantos, de arma em riste após atirar em Odete Roitman (Beatriz Segall), enquanto Cláudia Raia aparecia tomando um banho de espuma dentro da cova do cemitério da Sucupira de Odorico Paraguassu (Paulo Gracindo). O elenco também mudou: Marco Nanini desligou-se do programa, dando lugar a Pedro Paulo Rangel. Seria a primeira de diversas mudanças; nos anos seguintes o casting de “TV Pirata” contaria ainda com as presenças de Denise Fraga, Maria Zilda Bethlem, Antônio Calloni, Marisa Orth e Otávio Augusto.
Ainda em 1989 a novelinha Fogo no Rabo foi substituída por Rala Rala, estrelada por Índio Cleverson, Daniele Aparecida, Cabocla Jupira, Delegado Ivanhoé e Prefeita Nonata Raimunda. Mas a principal inovação da nova temporada foi a produção de especiais temáticos mensais, como Janela Indiscreta (baseado no filme de Alfred Hitchcock) e Milionário Esperança (o programa em que a moeda brasileira passou de cruzeiros para cruzados, depois merrecas e narjaras turettas). Merece ainda citação o antológico especial musical, do qual destaco o quadro estrelado por Elesbão, corcunda mentalmente prejudicado interpretado por Diogo Vilela. Elesbão tinha um sério problema: não tinha amigos. No número musical, Maria Zilda protagonizou “Xoxa”, que ao lado das “Elesbitas” cantou a seguinte sátira à música das Paquitas:
É tão bão
Bão, bão, bão
Elesbão
Bão, bão, bão
Vem brincar comigo que eu sou seu amigo…
Ao ouvir a canção, Elesbão invadiu o cenário atropelando tudo, enquanto berrava alucinado:
- Amigo??! ELESBÃO NÃO TEM AMIGO!!! Elesbão não tem amigo…
Em 1990 a “TV Pirata”, que ingressou em seu terceiro ano de produção, ressentiu-se de desgastes criativos, refletidos na queda de audiência do programa. A abertura mudou novamente: uma maquete do planeta Terra girava enquanto a câmera dava zooms que exibiam situações pretensamente cômicas em diferentes locais do mundo. Muitos ainda se lembram do tema musical dessa abertura, que soa como uma sobra dos discos gravados pelo Casseta & Planeta: “Ô lôco/ Nêgo tá latindo pra economizar cachorro/ Vendendo a própria mãe sem discutir o preço/ O mundo vai acabar/ E isso é só o começo/ É fim de festa/ Se você não quer dar, empresta/ Solta a franga/ Senta que o leão é manso/ Já que o pato não vem/ O lance é afogar o ganso/ Tá pagando mico?/ Manda tudo pro espaço/ Melhor armar o circo/ Pra descabeçar o palhaço“.
O “TV Pirata” deixou de ser produzido em 1991, cedendo lugar a outros programas criados por membros da equipe que concebera o humorístico, como “Dóris para Maiores” (escrito e estrelado pelos membros do grupo Casseta & Planeta) e “Programa Legal” (dirigido por Guel Arraes e apresentado pela dupla Regina Casé e Luiz Fernando Guimarães). Voltaria ao ar, porém, no ano seguinte, em nova periodicidade - em vez de semanal, passou a ser exibido mensalmente. Foi uma temporada melancólica, que tentou resgatar o brilho criativo da primeira temporada sem muito sucesso, a não ser por um especial: Quem Matou Barbosa?, sátira aos mistérios dos assassinatos de personagens da teledramaturgia como Salomão Ayala, Odete Roitman e Laura Palmer, e estrelada por aquele que talvez tenha sido o personagem de maior sucesso de toda a história do programa. Diga-se de passagem, não foi a última vez que Ney Latorraca resgatou Barbosa: em 2004 o ator reviveu sua antológica criação na novela das sete “Da Cor do Pecado”.
Em 1992 a “TV Pirata” saiu, definitivamente, do ar. Na época eu (e muitos da minha geração) ficamos com a sólida impressão de que jamais existiu um outro humorístico tão bom. Recentemente, ao rever alguns quadros no Globo Media Center, confesso que fiquei decepcionado, apesar da atenuante de saber que a maior parte dos quadros disponibilizados pelo portal foi produzida no último e mais fraco ano do programa. Mas agora, com o futuro lançamento do DVD (que terá oito horas de esquetes selecionadas por Guel Arraes e Cláudio Paiva) e as reprises no Multishow, poderei rever a fase áurea da “TV Pirata” e esclarecer enfim a dúvida: o programa foi ou não supervalorizado pela tendência que temos de idealizar as reminiscências do passado?
Alexandre Inagaki
Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.
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