Prediletas da casa: “Lama”, de Clara Nunes

Por Alexandre Inagakiquarta-feira, 05 de janeiro de 2011

Nem só de Twitter vivem as indiretas. Que o diga um samba composto por Mauro Duarte e consagrado pela interpretação de Clara Nunes: “Lama”. Um clássico da MPB gravado naquele que considero ser o melhor álbum desta excepcional cantora: Canto das Três Raças, de 1976. Seus versos são uma aula de como esculachar publicamente uma pessoa com garbo e elegância, e merecem a transcrição aqui.

Pelo curto tempo que você sumiu
Nota-se aparentemente que você subiu
Mas o que eu soube a seu respeito
Me entristeceu, ouvi dizer
Que pra subir você desceu
Você desceu

Todo mundo quer subir
A concepção da vida admite
Ainda mais quando a subida
Tem o céu como limite

Por isso não adianta estar
No mais alto degrau da fama
Com a moral toda enterrada na lama

Um dos grandes mistérios da MPB: a quem estes versos teriam sido dirigidos? Muito se especulou, pouco se sabe a respeito. Porém, um fato é inequívoco: esta composição de Mauro Duarte é uma daquelas canções que a gente canta com vigor catártico, por saber que sempre há alguma carapuça que caberá feito luva na letra sagazmente afiada deste samba.

Vale citar aqui o comentário que Paulo César Pinheiro escreveu no encarte do LP de Clara sobre “Lama”: “Há muitos anos o Mauro cruzou com o Ataulfo Alves num botequim de Botafogo e mostrou esse samba ao mestre a fim de uma gravação sua. Ataulfo botou aquela mão enorme que ele tinha no ombro do malandro e disse: - Ô mulato, o samba é grande. Mas vou te ser honesto. Se eu gravar, vão dizer que é meu. E ninguém vai falar de você. Mas garanto que um dia você grava. Ninguém vai desperdiçar uma maravilha dessa”.

Mauro seguiu o conselho do mestre Ataulfo anos após a gravação inesquecível de Clara Nunes, quando em 1985 lançou um LP independente na companhia de Cristina Buarque, registrando enfim com a sua voz seu sucesso “Lama”. Ele faleceu quatro anos depois, tenho legado à MPB diversas outras composições que foram gravadas por intérpretes do naipe de Elizete Cardoso, Paulinho da Viola e João Nogueira.

Quanto a Clara Nunes, lamento que ela tenha sido relativamente esquecida, 27 anos após a sua morte. Justamente ela, uma intérprete ligada às tradições afro-brasileiras que, oriunda de uma família de classe operária, conheceria o sucesso e romperia tabus ao tornar-se a primeira cantora do país a vender mais de 100 mil exemplares de um álbum (com seu disco de 1971). Sua ascensão abriu espaço para que as gravadoras investissem na contratação de outras sambistas como Alcione e Beth Carvalho. Luiz Garcia, que produziu em 2008 o DVD “Clara Nunes - Os Musicais do Fantástico das Décadas de 70/80”, recorda que, graças à popularidade daquela cantora bonita, talentosa e ligada ao candomblé, sua presença na TV era sinônimo de sucesso: “Quando a Globo queria elevar o Ibope trazia Clara à frente da tela”.

É uma pena que Clara Nunes morreu precocemente: aos 40 anos, vítima de um choque anafilático sofrido em meio a uma cirurgia malsucedida. Ainda assim, teve tempo de deixar como legado sucessos como “Você Passa Eu Acho Graça”, “Morena de Angola” (composta por Chico Buarque especialmente para Clara), “Conto de Areia” e “O Mar Serenou”. Além de álbuns como o supracitado Canto das Três Raças, que em 1976 vendeu a expressionante marca de 1,2 milhão de cópias.

Recordo aqui, por fim, alguns versos da canção “Um Ser de Luz”, que Paulo César Pinheiro, João Nogueira e Mauro Duarte compuseram três dias após a morte de Clara Nunes: “Mas aconteceu um dia/ Foi que o menino Deus chamou/ E ela se foi pra cantar/ Para além do luar/ Onde moram as estrelas/ E a gente fica a lembrar/ Vendo o céu clarear/ Na esperança de vê-la, sabiá”.

Pense Nisso!
Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.

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  • Clara Nunes foi uma das grandes cantoras brasileiras que me parece ser menosprezada por tudo que trouxe de qualidade e novidade para a música brasileira.
    Assim como temos o caso do Wilson Simonal, uma pena.

  • Lembro ainda dos LPs que rolavam aqui em casa, minha mãe só de ouvir ao dar play no video, já lamentou essa grande perda.
    Parabéns pelo texto Inagaki, muito bem escrito, não só esse, continuar passeando por aqui!
    Uma ótima noite!

  • tejo

    É minha cantora favorita. Ótima lembrança da saudosa Clara.

  • Parabéns por sua postagem, pois é muito instrutiva, gostei muito, embora não seja amante deste gênero, isso não quer dizer que não possamos avaliar como positiva, um grande abraço e parabéns!!!

  • Eu tenho esse vinil da Clara Nunes. Escutava sem parar quando tinha toca-discos. A capa de Elifas Andreato é um primor de belezura!
    o Brasil tem grandes cantoras, mas apenas três são imortais: Elis Regina, Maria Betânia e Clara Nunes.
    Bateu uma saudade boa agora!
    Valeu, Inagaki!

  • André

    Inagakin, também sou fascinado pela Clara Nunes e me entristece que seja uma intérprete tão esquecida… Deixo aqui o link de Amor Perfeito (http://www.youtube.com/watch?v=KBqFo-Wg9fc), uma das mais lindas canções de amor. Abração meu velho.

  • Ministério da Saúde

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  • ê, saudade!

Pense Nisso! Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista e consultor de comunicação em mídias digitais. É japaraguaio, cínico cênico. torcedor do Guarani Futebol Clube e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos. Já plantou semente de feijão em algodão, criou um tamagotchi (que acabou morrendo de fome) e mantém este blog. Luta para ser considerado mais do que um rosto bonitinho e não leva a sério pessoas que falam de si mesmas na terceira pessoa.

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