Para-choques de caminhão, filosofias de vida
Por Alexandre Inagaki ≈ terça-feira, 17 de agosto de 2010
Muito antes do surgimento do Twitter ou daquelas frases de status do MSN, os para-choques de caminhão me chamavam a atenção pelos insights instantâneos: mensagens que, em poucas palavras, sintetizam as lições que este mundo, implacável e irremediável, nos ensina mundo afora. Afinal de contas, “na escola da vida não se tira férias”.
Não à toa, o nome deste blog (“pensar enlouquece, pense nisso”) foi extraído de uma foto de para-choque que encontrei numa antiga seção da revista Quatro Rodas, que todo mês compilava as melhores contribuições enviadas por seus leitores.
Ao longo dos anos, ainda durante minha infância, fui anotando em um caderno as frases mais lapidares que encontrava por aí. Algumas, dignas dos aforismos cunhados pelos filósofos mais renomados. Outras, desabafos que se aplicam perfeitamente a certas situações da vida. “Não há melhor momento do que hoje para deixar para amanhã o que você não vai fazer nunca.” “O futuro do homem está escrito no seu passado.” “Dinheiro é coisa do diabo; mas, se quiser ver o diabo, é só andar sem ele.” E por aí vai.
Relendo algumas das frases que colecionei ao longo dos anos, percebo que a maior parte delas não esconde um quê de melancolia:
- “Se você é capaz de sorrir quando tudo dá errado, é porque já sabe em quem colocar a culpa.”
- “Hoje encontrei chorando quem no passado riu de mim.”
- “Antes eu sonhava, hoje eu não durmo.”
Ok, é certo que o humor é sempre do contra, que as frases mais ranzinzas geralmente são as mais engraçadas, e que felicidade não rende manchete de jornais nem posts mais retuitados. Mas às vezes fico matutando se essa é uma faceta de minha personalidade que eu deveria levar para um divã um dia desses. Mas tergiverso, tergiverso.
Recentemente a Quatro Rodas disponibilizou todas as edições em versão digitalizada. Desde o número 1, publicado em agosto de 1960. Trata-se de um acervo digital imperdível, seja para jornalistas, seja para amantes de carros. As fotos de para-choques estão lá, desde a primeira edição. Eis a observação certeira que a Quatro Rodas fez ao descrever a seção: “Motorista de caminhão tem senso de humor, ironia, espírito à beça, simples, sem acrobacias cerebrais e, por isso mesmo, imediato e eficaz.”
Os “para-choques do mês” estiveram presentes na Quatro Rodas até a edição 348, publicada em julho de 1989, quando a carta ao leitor escrita por Luiz Roberto Clauset anunciou o fim dessa seção. A justificativa: as filosofias de para-choques haviam sido massificadas, perdendo sua criatividade. Em matéria publicada na mesma edição, o pesquisador de folclore Inácio Loiola usou a crise econômica que o Brasil enfrentava como um dos motivos da tal entressafra criativa: “A vida do caminhoneiro está tão difícil que ele já não tem ânimo para criar frases novas.”
Outra razão especulada pela matéria para a tal “crise criativa” foi, vejam só, os avanços tecnológicos. As pinturas, que antes eram feitas com pincéis, passaram a ser realizadas a revólver. Ao invés das filosofadas de antes, os caminhoneiros preferiam decorar seus para-choques com desenhos de paisagens, fazendo com que as frases fossem substituídas por mensagens mais sintéticas, como “Jesus”.
Depois do diagnóstico dado pela Quatro Rodas, de que o “gênero” estava em crise, os anos se passaram e o espírito daquelas frases de caminhoneiros ganhou novas plataformas. Você certamente já leu variantes dos para-choques citados neste post em adesivos de carro, mensagens de status no Messenger, ímãs de geladeira ou, claro, as frases em até 140 caracteres publicadas no Twitter. Outro exemplo clássico da Lei de Lavoisier aplicada à internet: nada se cria, tudo se transforma.
Santos Coloda, autor do livro A Sabedoria dos Para-Choques, afirma que os para-choques clássicos jamais morreriam, dizendo: “O para-choques é o espaço que o motorista tinha para dizer ao mundo o que pensa.” Assino embaixo, em cima e dos lados destas palavras. Novos meios de expressão surgem a todo momento, mas a perplexidade humana diante dos desconcertos com a Vida, o Universo e Tudo Mais é, essencialmente, a mesma.
P.S. 1: Reforma ortográfica deveria facilitar a vida da gente e tornar o ensino do português algo mais simples, não? No entanto, tive de consultar várias fontes a fim de saber se “para-choques” ainda tinha hífen e acento. Ê lerê.
P.S. 2: Publiquei outras fotos de para-choques de caminhão em meu Flickr.
Alexandre Inagaki
Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.
Pingback: 11 anos (e alguns dias) de blog | Pensar Enlouquece, Pense NissoPensar Enlouquece, Pense Nisso