Palavras que deveriam existir
Por Alexandre Inagaki ≈ sábado, 14 de abril de 2007
Reza a lenda que os colonizadores ingleses, ao chegarem à Austrália, ficaram espantados em encontrar um estranho animal com uma bolsa na barriga que se locomovia dando largos pulos. O Capitão Cook mandou chamar um nativo e perguntou-lhe, usando gestos, qual era o nome daquele bicho. O aborígene respondeu: - Khan ghu ru, khan gu ru! Anos mais tarde, outros exploradores teriam descoberto o verdadeiro significado daquelas palavras. O índio, ao ver os sinais que lhe faziam os ingleses, responderam: - Não estou entendendo (ou seja, “khan ghu ru” no dialeto local).
Não é por nada não, mas esta história é engraçada demais para ser verídica, e me soa a lenda urbana. De qualquer modo, serve para ilustrar um assunto que sempre me interessou: etimologia, a ciência que estuda a origem das palavras. Por que chamamos o hipopótamo de “hipopótamo”? De onde cargas d’água surgiram vernáculos como “capicua”, “ornitorrinco” e “vernáculo”?
Shakespeare, no ato 2 da peça Romeu & Julieta, tergiversa sobre o assunto: “O que há em um nome?/ Pois aquilo que chamamos de rosa/ Por qualquer outro nome/ Exalaria o mesmo doce perfume“. Quem já estudou lingüística sabe que palavras não passam de signos lingüísticos previamente convencionados por um sistema de sinais. Ou seja, partem de uma relação semelhante à dos sinais de trânsito, cuja lógica arbitrária faz com que vermelho signifique “pare”, e verde, “prossiga” (a não ser que você seja daltônico).
Contudo, cada palavra que utilizamos no dia-a-dia tem a sua história e reflete as evoluções culturais sofridas pela sociedade em que vivemos atualmente. Há quinze anos, quem imaginaria que palavras como “popozuda”, “mouse” e “escanear” existiriam? Do mesmo modo, fico pensando se daqui a quinze anos meus sobrinhos conhecerão o significado de substantivos como “vitrola” ou expressões como “futebol-arte”.
Idiomas são organismos vivos, que refletem as mudanças do mundo ao seu redor. Necessitam, pois, incorporar diariamente novos jargões, neologismos e estrangeirismos ao seu repertório, a fim de que possam sobreviver. Caso contrário, murcham e morrem, feito o latim e milhares de outras línguas e dialetos soterrados nestes séculos de civilização. Faz muito bem, pois, a última flor do Lácio, ao adaptar com ginga os anglicismos que vão sendo incorporados por seus poucos e fiéis seguidores, nesta verdadeira bacanal lingüística: é assim que “whisky” virou uísque, e “Whoop! There It Is” (refrão de uma música do grupo americano Tag Team) metamorfoseou-se no hino de todas as torcidas “uh tererê!”.
Há um ótimo texto de Sérgio Augusto, publicado no Digestivo Cultural, que aborda este assunto. Em seu artigo “Para tudo existe uma palavra“, Sérgio cita algumas palavras que gostaria que fossem adotadas pela língua portuguesa. Por exemplo: Razbliuto, palavra russa que significa o sentimento carinhoso que nutrimos por uma pessoa que um dia amamos. Ou Mamihlapinatapei, vocábulo genial que pertence a um idioma indígena da Terra do Fogo. E que quer dizer, simplesmente, o “ato de olhar nos olhos do outro, na esperança de que o outro inicie o que ambos desejam mas nenhum tem coragem de começar“. Depois dessa, só posso dizer uma coisa: uau!
Se bem que nós, poucos mas fiéis usuários deste quase-dialeto que é a língua portuguesa, podemos nos ufanar da síntese contida dentro desta pequena e maravilhosa palavra: saudade.
Palavras são misteriosas, palavras são esquivas. Principalmente aquelas que não existem, mas deveriam. Nunca sei o que dizer, por exemplo, a um amigo que sofreu a perda de uma pessoa querida: “sinto muito” me soa muito distante e vago. E o que dizer sobre aquele frio na barriga que surge na primeira vez em que vemos uma pessoa que entorpece nossa língua, tolda nossos sentidos, faz nossos ouvidos zumbirem e os olhos se boquiabrirem?
Há palavras e expressões que perderam o sentido de tanto serem repetidas. Um exemplo: existe frase mais banalizada do que “eu te amo”, balbuciada por paqueras de micaretas com a mesma facilidade com que Pedro Bial chamava os participantes de um reality show como o Big Brother Brasil de “heróis”? Sábios eram os gregos, que possuíam quatro verbos para falar em amar: erao, ligado estritamente ao amor erótico; filéo, o amor de amizade, de querer bem ao outro, de gostar; agapao, o amor ligado à satisfação de um desejo; e, finalmente, stergo, o amor cujo impulso básico é a proteção do outro. Um amor como a dos pais por seus filhos; galinha protegendo pintinhos sob suas asas.
Recomendo fortemente a leitura de “O Desejo“, obra que compila diversas conferências sobre o assunto do título, organizada pelo filósofo Adauto Novaes e publicada pela Companhia das Letras. Todos os textos são fascinantes, mas há um em especial que me marcou desde a primeira leitura, e que gerou em mim o interesse pela etimologia. Trata-se de “Os Caminhos do Desejo“, escrito pelo filólogo Flavio Di Giorgi; um artigo delicioso e muitíssimo bem-humorado, no qual ele relata as origens etimológicas da palavra “desejo”. Que é proveniente do verbo latino desiderare, que por sua vez descende da palavra sidus, “estrela”. Segundo a explicação de Di Giorgi, desiderare vem da linguagem dos adivinhos que tentavam interpretar o futuro em Roma, observando os astros em busca de pistas sobre o que haveria de acontecer. O ato de contemplar os astros chamava-se considerare, palavra que deu origem ao português “considerar” (ou seja, observar as estrelas e a partir delas extrair uma conclusão sobre os eventos futuros).
No entanto, e pra quem está desesperado de tudo, feito eu depois que vejo meu extrato bancário? Aí os romanos recomendavam ao pobre coitado vislumbrar as estrelas em busca de algum alento. Mas o sujeito, desanimado da vida, dizia: “não adianta, estou perdido“. Isso era desiderare: “desistir dos astros”. Provém daí a significação do verbo “desejar”: ter a certeza da ausência. Não tenho o que quero ou preciso, e por isso desisto de especular sobre o futuro. Tenho a consciência de que não possuo o que quero, e passo a tomar a atitude que me resta: desejar, porque passo a ter a certeza da ausência daquilo que não tenho. Reconheço a ausência, desencano de ficar mirando os astros, e sonho com a busca daquilo que me falta. Orbito, portanto, sob a esfera do desejo.
Fala sério: depois de uma explicação tão bonita, dá ou não vontade de passar a vida inteira estudando etimologia em busca de respostas como essas?
P.S. 1: Dois ótimos textos foram indicados nos comentários deste post. O primeiro, “Significado Das Coisas“, é uma relação de neologismos cunhados por Alexandre Nix, inspirada no livro “The Meaning of Liff“, da dupla Douglas Adams (sim, é ele mesmo!) e John Lloyd. Segundo a dupla Adams & Lloyd, tal livro surgiu devido ao fato de que existem centenas de experiências em comum, sentimentos e situações que todos nós somos capazes de reconhecer, mas para as quais não existem ainda palavras que as descrevam.
Pois bem, Nix inspirou-se em “The Meaning of Liff” e cunhou alguns termos novos para a língua portuguesa. Dois ótimos exemplos:
ANEDOMAR (verbo) - Lembrar que conhece a piada que está sendo contada, não interromper o orador e fingir achar ainda graça.
PRESENGO (substantivo) - Presente que você quer jogar fora, vender, dar ou trocar, mas não pode porque é presente de alguém especial, que se magoaria com o ato.
Nix aceita mais contribuições. Eu também.
P.S. 2: A outra indicação deixada nos comentários foi deixada pelo meu leitor Junior, que recomenda o post “Aprendendo com o silêncio de Bashô“, do meu camarada e professor de culinária Gustavo Weber. Nele, Weber faz uma citação do filósofo taoísta Chuang Tse, que afirmou: “A rede de peixe existe por causa do peixe; uma vez que pegar o peixe, esqueça a rede. A armadilha para coelhos existe para pegar o coelho; uma vez que o pegá-lo, esqueça a armadilha. As palavras existem pelo sentido; uma vez que conseguir o sentido, esqueça a palavra. Onde posso encontrar um homem que esqueceu as palavras, para que possa trocar uma palavra com ele?”
P.S. 3: A respeito da origem etimológica da palavra “canguru”, a leitora Marcia M lembra que o dicionário Aurélio afirma que ela teria surgido a partir de uma expressão que efetivamente significaria “não sei”. Porém, segundo a Wikipedia, o vernáculo “canguru” é oriunda da palavra gangurru, falada em um dialeto aborígene australiano, Guugu Yimidhirr, utilizada para se referir a uma espécie cinza de canguru. Sobre o tema, recomendo ainda a leitura do artigo “Canguru - Falsas Etimologias“, de Cláudio Moreno.
P.S. 4: A convite da Luiza Voll, tive a honra de ser o primeiro convidado de uma seção nova do Favoritos falando de um de meus sites prediletos. Valeu, Luiza! ;)
Alexandre Inagaki
Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.
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