Ler faz crescer (publieditorial)
Por Alexandre Inagaki ≈ quinta-feira, 28 de outubro de 2010
Os primeiros livros que devorei com gosto durante minha infância nunca foram publicados. Tratam-se dos diários que meu pai escrevia, de forma sistemática, durante a juventude. Neles, seu Shiguehiko relatava a época em que morava em Mogi das Cruzes junto com meus avós e seus seis irmãos. Meu avô paterno, seu Fumio Inagaki, fazia carvão e depois o vendia, de porta em porta. Nas horas vagas, escrevia hai-kais; e eu, seu neto japaraguaio e analfabeto de ideogramas, infelizmente até hoje desconheço sua obra. Minha avó, hoje octagenária, desconhece o paradeiro de seus versos.
As narrativas do jovem Shiguehiko, naquela época com 19 anos de idade, eram sóbrias e objetivas: a que horas havia acordado, o que tinha comido no café da manhã, como havia sido o trajeto de trem até a faculdade de engenharia que meu avô, à base de muita labuta, ajudava a custear. Por intermédio daquelas memórias escritas a caneta em cadernos amarelados, soube da época em que meu pai morou em uma pensão das mais simples, dividindo quarto com estranhos e comendo refeições à base de arroz, feijão e bananas. Meu pai não recorria a firulas metafóricas ou figuras de linguagem; eram diários na essência da palavra, objetivos e meramente descritivos. Ainda assim, atraíam todo o meu interesse. Pudera: meu pai, que havia conseguido sair daquela vida sem luxos graças aos muitos esforços, dele e dos meus avós (que se privaram de muitas coisas a fim de poder proporcionar ensino superior a todos os sete filhos que tiveram), era o meu Indiana Jones, o meu Batman, o meu herói maior do que quaisquer protagonistas de gibis.
Eu devia ter uns oito ou nove anos de idade. Eram sete horas da noite, e a luz havia caído. Minha mãe acendeu as três velas que encontrou num armário da cozinha. Jantamos no escuro: eu, meus pais e meus dois irmãos. Ainda estava razoavelmente cedo para ir dormir. Para distrair seus filhos inquietos, seu Shiguehiko relembrou alguns causos da juventude dele, ao melhor estilo dos contadores de histórias que reuniam ouvintes ao redor de uma fogueira. Uma delas, que relembro agora, ocorreu quando meu pai ainda tinha vinte e poucos anos. Sim, reconheci imediatamente aquele causo; mas, ao vê-la sendo narrada com uma riqueza inédita de detalhes omitidos pelo estilo seco de seus diários, a história tornou-se ainda mais atraente e inesquecível para mim.
O jovem e aventureiro Shiguehiko resolveu se cadastrar em um programa que o Governo Federal havia acabado de criar: o Projeto Rondon, que levava estudantes universitários dispostos a trabalhar, durante suas férias, de forma voluntária, em comunidades carentes no interior do Brasil. O governo custeava passagens e hospedagem (em alojamentos do Exército ou barracas), fazendo com que jovens se engajassem em atividades de assistência social, atendimento de saúde e ações de cidadania. E foi assim que meu pai viajou pela primeira vez para o interior de Minas Gerais. Entretidos ao ouvi-lo descrever como foi a viagem de trem, a pobreza das cidades que conheceu e a descoberta de uma outra realidade, todos nós demos risadas gostosas com a história de como meu pai e outros estudantes cavaram uma fossa sanitária no meio do sertão de Minas e, com pomposidade e galhardia, comemoraram o término da obra inaugurando-a com uma placa: “esta é mais uma obra do Governo Federal”.
Um dia meu pai jogou seus diários de juventude no lixo. Ao ver minha inconformidade com aquele descaso com suas próprias memórias, seu Shiguehiko disse, sereno: “não preciso de papéis para recordar as lembranças que realmente interessam”. Não contesto a sabedoria de meu pai; ao mesmo tempo, lamento. Aqueles diários por certo tinham muito mais valor sentimental do que literário. Mas foram leituras fundamentais para que eu aprendesse a dar todo o devido valor à minha família e a cada nova conquista pessoal que obtenho, na batalha diária que enfrentamos a cada nova manhã.
Este relato familiar foi originado por uma ação bacana encampada pelo Banco Itaú, que está distribuindo nada menos que 8 milhões de livros infantis, de forma gratuita, para todos que preencherem o formulário deste site, até que dure o estoque da Coleção Itaú de Livros Infantis, destinada para crianças de até 6 anos. Em outra ocasião já relembrei aqui no blog o primeiro livro que li na vida, e por isso achei mais apropriado resgatar as leituras que, de fato, foram mais influentes minha formação: os diários que não existem mais do meu pai.
É por saber do valor que certas leituras possuem em minha vida que eu, mesmo não tendo filhos, fiz questão de entrar no site do Itaú e solicitar alguns exemplares desses livros infantis, que estão sendo entregues em todo o território brasileiro, sem qualquer custo, em até 20 dias. Porque eu conheço crianças geniais que precisam adquirir o gosto pelos livros, e merecem ganhar um presente tão bacana como esse. Eu sei, muito bem, como uma leitura permanece inspirando os atos da gente. E transcende folhas amarfanhadas e páginas amareladas, mesmo sem ter sido imortalizada em capa dura e impressão de luxo. Porque fica guardada, até o fim de nossos dias, na biblioteca perene das lembranças que realmente nos interessam. É como definiu muito bem Drummond no poema cujos versos são a epígrafe de um filme sobre o qual escreverei amanhã: “as coisas findas/ muito mais que lindas,/ essas ficarão”.
P.S.: Para quem ficou curioso com o Projeto Rondon, o site do Ministério da Defesa dá orientações a quem quiser seguir o exemplo de meu pai e se engajar em trabalhos voluntários no interior do país.
Alexandre Inagaki
Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.
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