Grandes começos de livros

Por Alexandre Inagakiquinta-feira, 06 de janeiro de 2011

O passado é um país estrangeiro; lá, eles fazem as coisas de modo diferente.” - L. P. Hartley, O Mensageiro (1953).

Quanto mais vou sabendo de ti, mais gostaria que ainda estivesses viva. Só dois ou três minutos: o suficiente para te matar. Merecias uma morte violenta. Se eu soubesse, não te tinha deixado suicidar com aquelas mariquices todas. Aposto que não sentiste quase nada. Não está certo. Eu não morri e sofri mais do que tu. Devias ter sofrido. Porque eras má. Eu pensava que não. Enganaste-me. Alguma vez pensaste no que isso representou na minha vida miserável? Agora apetece-me assassinar-te de verdade. É indecente que já estejas morta.” - Miguel Esteves Cardoso, O Amor é Fodido (1994).

Minha querida Lucy, comecei a escrever esta história para você, sem lembrar-me de que as meninas crescem mais depressa do que os livros. Resultado: agora você está muito grande para ler contos de fadas; quando o livro estiver impresso e encadernado, mais crescida estará. Mas um dia virá em que, muito mais velha, você voltará a ler histórias de fadas. Irá buscar este livro em alguma prateleira distante e sacudir-lhe o pó. Aí me dará sua opinião. É provável que, a essa altura, eu já esteja surdo demais para poder ouvi-la, ou velho demais para compreender o que você disser. Mas ainda serei o seu padrinho, muito amigo.” - C. S. Lewis, O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa (1950).

Encontraria a Maga? Tantas vezes bastara-me chegar, vindo pela Rue de Seine, ao arco que dá para o Quai de Conti, e mal a luz cinza e esverdeada que flutua sobre o rio me deixava entrever as formas, já sua delgada silhueta se inscrevia no Pont des Arts, por vezes andando de um lado para o outro da ponte, outras vezes imóvel, debruçada sobre o parapeito de ferro, olhando a água. E era muito natural eu atravessar a rua, subir as escadas da ponte, dar mais alguns passos e aproximar-me da Maga, que sorria sempre, sem surpresa, convencida, como eu, de que um encontro casual era o menos casual em nossas vidas e de que as pessoas que marcam encontros exatos são as mesmas que precisam de papel pautado para escrever ou que começam a apertar pela parte de baixo o tubo de pasta dentrifícia.” - Julio Cortázar, Jogo da Amarelinha (1963).

Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta.” - Vladimir Nabokov, Lolita (1955).

Eu nasci duas vezes: primeiro como uma menininha, num dia excepcionalmente despoluído de Detroit, em janeiro de 1960; e depois outra vez como um rapaz adolescente, num ambulatório de emergência perto de Petoskey, Michigan, em agosto de 1974. Os leitores especializados talvez tenham esbarrado comigo no estudo do Dr. Peter Luce, ‘Identidade Sexual em Pseudo-Herma­froditas com 5-Alfa-Redutase’, publicado no Journal of Pediatric Endocrinology em 1975. Ou talvez tenham visto a minha fotografia no capítulo 16 do hoje tristemente ultrapassado Genetics and He­redity. Sou eu lá na página 578, sem roupa, diante de um gráfico que indica minha altura, com uma tarja preta sobre os olhos.“. - Jeffrey Eugenides, Middlesex (2002).

D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou. Já se murmura na corte, dentro e fora do palácio, que a rainha, provavelmente, tem a madre seca, insinuação muito resguardada de orelhas e bocas delatoras e que só entre íntimos se confia. Que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres sim, por isso são repudiadas tantas vezes, e segundo, material prova, se necessária ela fosse, porque abundam no reino bastardos da real semente e ainda agora a procissão vai na praça.” - José Saramago, Memorial do Convento (1982).

Mamãe e papai não passavam de duas crianças quando se casaram. Ele tinha dezoito anos, ela dezesseis e eu, três.” - Billie Holiday, Lady Sings the Blues (1956).

Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, Se um Viajante numa Noite de Inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido. É melhor fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor ligado. Diga logo aos outros: ‘Não, não quero ver televisão!’. Se não ouvirem, levante a voz: ‘Estou lendo! Não quero ser perturbado!’. Com todo aquele barulho, talvez ainda não o tenham ouvido; fale mais alto, grite: ‘Estou começando a ler o novo romance de Italo Calvino!’. Se preferir, não diga nada; tomara que o deixem em paz.” - Italo Calvino, Se um Viajante numa Noite de Inverno (1979).

Me chame de Ismael e eu não atenderei. Meu nome é Estevão, ou coisa parecida. Como todos os homens, sou oitenta por cento água salgada, mas já desisti de puxar destas profundezas qualquer grande besta simbólica. Como a própria baleia, vivo de pequenos peixes da superfície, que pouco significam mas alimentam.” - Luís Fernando Veríssimo, O Jardim do Diabo (1987).

Escolha viver. Escolha um emprego. Escolha uma carreira, uma família. Escolha uma puta duma televisão. Escolha lavadoras, carros, CD players e abridores de latas elétricos. Escolha saúde, colesterol baixo e plano dentário. Escolha uma hipoteca a juros fixos. Escolha sua primeira casa. Escolha seus amigos. Escolha roupas esporte e malas combinando. Escolha um terno numa variedade de tecidos em uma merda de fábrica. Escolha fazer consertos em casa e pensar na vida domingo de manhã. Escolha sentar-se no sofá e ficar vendo game shows chatos na TV, enfiando comidas em sua boca. Escolha apodrecer no final, beber num lar que envergonha os filhos egoístas que pôs no mundo para substituí-lo. Escolha o seu futuro. Escolha viver.” - Irvine Welsh, Trainspotting (1993).

Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos a dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris. Deixei crescer a barba em pensamento, comprei um par de óculos para míope, e passava as noites espiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos. Chamava-me então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo, que é como me chamo ainda hoje, quando me chamo.” - Campos de Carvalho, A Lua Vem da Ásia (1956).

Ao despertar após uma noite de sonhos agitados, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama transformado em um monstruoso inseto.” - Franz Kafka, A Metamorfose (1915).

Eu não quis saber, mas soube que uma das meninas, quando já não era menina e não fazia muito voltara de sua viagem de lua-de-mel, entrou no banheiro, pôs-se diante do espelho, abriu a blusa, tirou o sutiã e procurou o coração com a ponta da pistola do próprio pai, que estava na sala de almoço com parte da família e três convidados. Quando se ouviu a detonação, uns cinco minutos depois da menina ter abandonado a mesa, o pai não se levantou de imediato, mas ficou alguns segundos paralisado com a boca cheia, sem se atrever a mastigar nem a engolir nem, menos ainda, a devolver o bocado ao prato; quando por fim se levantou e correu para o banheiro, os que o seguiram viram como, enquanto descobria o corpo ensanguentado da filha e levava as mãos à cabeça, ia passando o bocado de carne de um lado ao outro da boca, sem saber ainda o que fazer com ele.” - Javier Marías, Coração Tão Branco (1992).

Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma questão fundamental de filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. São apenas jogos; primeiro é necessário responder. E, se é verdade, tal como Nietzsche o quer, que um filósofo, para ser estimável, deve dar o exemplo, avalia-se a importância desta resposta, visto que ela vai preceder o gesto definitivo.” - Albert Camus, O Mito de Sísifo (1942).

Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da descrença, foi a estação da Luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto para o Paraíso, íamos todos direto no sentido contrário“. - Charles Dickens, Um Conto de Duas Cidades (1859).

Pense Nisso!
Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.

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Comentários do Blog

  • Pingback: Fotos e vídeos que provam que teve muita Copa sim - Pensar Enlouquece, Pense Nisso

  • http://cronicasurbanas.wordpress.com Mônica

    Não vem exatamente de um clássico, mas a frase de abertura de ‘A Judgement in Stone’, da Ruth Rendell, me fisgou imediatamente:
    “Eunice Parchman matou a família Coverdale porque não sabia ler nem escrever.”

  • http://www.bigformat.com.br Prof. Breno Aguiar

    Grandes primeiras frases também daria um bom post!
    Do próprio Camus, o Estrangeiro: “Hoje mamãe morreu” !!!
    Moby Dick, de Melville: “Meu nome é Ismael.”
    Esses só pra citar os mais curtos!

  • http://www.grafinortedesign.com Reinaldo Palhares

    Favor informar como enviar uma carta de apresentação da minha empresa ao setor de marketing?
    Att
    Reinaldo Palhares

  • Fatima

    Adoro livros, são meus amigos, eles de fato existem com personalidade. Adorei as citações.
    Abraços

  • paulo

    Muito bem Alexandre. Só achei a do Veríssimo uma porcaria (brincar com Moby Dick é pisar em ovos). O Mito de Sísifo é uma delícia e devo criar vergonha e ler o Memorial do Convento.

  • http://www.mytho.com.pt Mytho

    Em 2002 escrevi um texto baseado n’O Amor É Fodido”
    Livro dark, depressivo, porém com um otimismo marcante.
    O texto está em http://www.mytho.com.pt/blog/2007/08/20/acontecimentos-espontaneos-repost/
    Abraço

  • bianca

    Pessoal tb to divulgando um blog…não posso falar mto se não vcs vão dizer que esotu corujando..kk
    è do meu sobrinho…Olhem e tirem suas conclusoes.
    Besos e besos.
    http://canecasobreamesa.blogspot.com/

  • http://vcortez.wordpress.com Vinícius Cortez

    Opa! Ótimo post!
    Definitivamente saiu da mesmice de listar (ainda com um pouco de razão) clássicos como Kafka.
    Mas todas essas leituras são recomendadas? Já li alguns deles; de outros nunca ouvi falar. Livros bons costumam começar bem, mas o contrário poucas vezes é verdade!

  • http://index.opsblog.org/ Daniel

    Rara! Esse livro do Campos de Carvalho é uma graça da primeira à última frase.
    :-)

  • Natan

    Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas” - Machadão de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas

  • http://quimeraufana.blogspot.com André Lasak

    Muito bom!
    Adorei os inícios e as boas indicações de novas leituras.
    Abração!

  • Teo

    Belíssimo post, Alexandre. ^^
    Minha contribuição:
    “Devo à conjunção de um espelho com uma enciclopédia a descoberta de Uqbar.” - Jorge Luis Borges, Tlön, Uqbar, Orbis Tertius (1940).

  • http://anlenedmadrid.blogspot.com/ anlene

    Há uma boa lista do Sérgio Rodrigues aqui:
    http://veja.abril.com.br/blog/todoprosa/secao/comecos-inesqueciveis/
    Que saudades do NoMínimo!
    “Desde os primeiros tempos do Todoprosa, que estreou há mais de quatro anos no extinto site “NoMínimo”, a seção “Começos inesquecíveis” foi sua marca mais forte. Não é difícil imaginar por quê. Em primeiro lugar, lembrar os grandes inícios da história do romance é uma forma de sugerir leituras do modo mais saboroso que existe, isto é, oferecendo pequenas provas. Se o começo agradou, por que não tentar o livro inteiro? Aberturas lapidares, afinal, são concebidas precisamente com este fim principal, manter o leitor lendo.”

  • http://www.meucerebrodoi.org/ Pauo Torres

    “Estamos no ano 50 antes de Cristo. Toda a Gália foi ocupada pelos romanos. Toda? Não! Uma aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resiste ao invasor.” Até hoje me fascino com quanta coisa está sintetizada nessa pequena introdução…

  • http://www.twitter.com/ThayG12 Thay

    É incrível como (bons) livros têm a capacidade de nos levar a outros lugares, viver outras vidas enxergando o mundo através de outros olhos… Morro sem ter lido tudo que quero, mas vou feliz sabendo que li o bastante para dizer que ‘valeu a pena, já que a alma não era pequena’ hahaha
    Continue escrevendo, que quando der, mesmo que seja assim nas primeiras horas da primeira sexta do ano, nós encontraremos um tempinho para ler!
    BjOxx,
    Thay

  • Loraine Andrade

    Adorei o post!
    Eu gosto do início de Anna Karenina tb (só tenho a versão em inglês):
    Happy families are all alike; every unhappy family is unhappy in its own way.

  • http://www.sete-faces.blogspot.com Deise Luz

    Uma super introdução super clássica, que eu amo, é a de Orgulho e Preconceito…

  • Vinícius Cordeiro

    Deixando aflorar meu lado nerd, acrescentaria mais uma a esta seleta coleção:
    Numa toca no chão vivia um hobbit“. - J.R.R. Tolkien, O Hobbit(1937).

  • http://oestafermo.blogspot.com Carol

    “Papai sempre dizia que uma pessoa precisa ter um excelente motivo para escrever suas Memórias e esperar que alguém as leia. ‘A menos que o seu nome seja do calibre de um Mozart, Matisse, Churchill, Che Guevara ou Bond - James Bond -, é melhor passar o seu tempo livre fazendo pintura a dedo ou jogando bocha, pois ninguém, a não ser sua mãe de braços flácidos, cabelo duro e olhar de purê de batata, vai querer ouvir os pormenores de sua existência lastimável, que sem dúvida vai terminar como começou - num suspiro de agonia’” - Marisha Pessl, Tópicos Especiais em Física das Calamidades (uma feliz surpresa por R$9,90 no Submarino)

Pense Nisso! Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista e consultor de comunicação em mídias digitais. É japaraguaio, cínico cênico. torcedor do Guarani Futebol Clube e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos. Já plantou semente de feijão em algodão, criou um tamagotchi (que acabou morrendo de fome) e mantém este blog. Luta para ser considerado mais do que um rosto bonitinho e não leva a sério pessoas que falam de si mesmas na terceira pessoa.

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