Estrela brasileira em céus turbulentos
Por Alexandre Inagaki ≈ quinta-feira, 29 de junho de 2006
Certas canções possuem o poder de marcarem nossas lembranças de tal modo que um simples assobio é capaz de resgatar de nossa memória rostos, cheiros, gostos, sensações que há tempos não sentíamos. Provém daí, da força que a música possui de moldar a nossa memória afetiva, a carga emocional que faz com que certos jingles ainda sejam recordados e perdurem no inconsciente coletivo por muito mais tempo do que as próprias empresas que os encomendaram. Exemplo clássico é o tema que Edison Borges de Abrantes, o “Passarinho”, compôs para um comercial de Natal que o finado Banco Nacional encomendou em 1975. Mesmo crianças que nasceram depois da falência do Nacional já ouviram em algum lugar este jingle e sabem cantarolar os versos “Quero ver/ Você não chorar/ Não olhar pra trás/ Nem se arrepender do que faz“.
Quem acompanha as notícias quase diárias sobre a crise da Varig sabe que a empresa aérea, criada em 1927, está em iminente processo de seguir os rumos de outras empresas como Haspa, Mappin, Mesbla, Arapuã, Gurgel, Sears, Trol, Pan-Am, Vasp, Transbrasil e Panair. Eu, que viajei de avião pela primeira vez a bordo de uma aeronave da Varig, bem sei que a empresa mergulhou no caos financeiro devido a fatores como anos de gestões incompetentes, custos administrativos elevados, defasagem de tarifas aéreas desde os planos econômicos dos governos Sarney e Collor e a crise deflagrada no setor pelos atentados de setembro de 2001, e que se ela falir será um fato normalíssimo em meio às engrenagens que movem o livre mercado. Porém, ao ouvir alguns dos jingles que marcaram seus 79 anos de existência, não posso deixar o sentimentalismo de lado ao tecer um lamento pelo destino da Empresa de Viação Aérea Rio-Grandense.
O mais famoso de todos os jingles da Varig foi composto em 1960 pelo músico paulistano Caetano Zamma. Zamma, que foi um dos integrantes do grupo paulista da Bossa Nova (integrado por nomes como Johnny Alf, Agostinho dos Santos e Maysa) e participou do lendário show no Carnegie Hall em 1962, compôs cerca de 150 músicas em toda a sua carreira, mas indubitavelmente a mais conhecida delas é esta canção natalina, gravada originalmente por Clélia Simone:
Estrela das Américas no céu azul
Iluminando de Norte a Sul
Mensagem de amor e paz
Nasceu Jesus, chegou o Natal
Papai Noel voando a jato pelo céu
Trazendo um Natal de felicidade
E um Ano Novo cheio de prosperidade
Ao longo dos anos, esta composição recebeu diversas regravações (nas quais o verso “estrela das Américas” foi mudado para “estrela brasileira”), muitas delas disponíveis no excelente site Clube do Jingle. Sua mais recente versão, produzida pela agência de publicidade NBS, foi ao ar no final de 2005, com Jorge Benjor nos vocais.
A fim de promover as diversas rotas nacionais e internacionais de seus vôos, a Varig veiculou propagandas com jingles entoando lôas a praticamente todos os estados do Brasil. Mas as campanhas mais marcantes foram dedicadas a duas linhas internacionais: Portugal e Japão. Em ambas as propagandas, os jingles ficaram a cargo do mesmo autor: Archimedes Messina. Que é, decididamente, um dos compositores mais injustamente desconhecidos do Brasil. Você sabia, por exemplo, que Messina é o autor de “Silvio Santos Vem Aí” (“Agora é hora de alegria/ Vamos sorrir e cantar/ Do mundo não se leva nada/ Vamos sorrir e cantar“)? Que ele compôs o tema de abertura do Bambalalão (“Olha o trenzinho que carrega a alegria/ E me leva todo dia pro mundo da fantasia/ Bambalalão é um lugar de encantamento/ Com arte a todo o momento/ Aprender é divertimento“)? Que foi parceiro de Adoniran Barbosa? E autor do jingle do Café Seleto (“Depois de um sono bom/ A gente levanta/ Toma aquele banho/ Escova o dentinho“) e de tantos outros para marcas como Antarctica, Pullman e Volkswagen?
“Seu Cabral”, o clássico comercial em animação dedicado à “laboriosa comunidade luso-brasileira“, pode ser visto neste precioso link do Centro Cultural São Paulo. Seu jingle foi gravado pela cantora portuguesa de fados Ilda de Castro. E, como relata a matéria de Laura Mattos para a Folha de S. Paulo, fez tanto sucesso na época que chegou a ganhar versão de marchinha carnavalesca e foi vendido como disco compacto.
Para mim, no entanto, a criação mais marcante de Archimedes Messina é definitivamente seu jingle em homenagem ao Japão. Composto em 1968, por ocasião do primeiro vôo da Varig para o Japão, é uma propaganda que marcou minha infância. Mais especificamente, por causa das manhãs de sábado que passava na casa de meus avós, que eram telespectadores fiéis do programa “Imagens do Japão”, apresentado por Rosa Miyake. Ela, inclusive, é a intérprete deste jingle inesquecível, inspirado em uma antiga lenda japonesa :
Urashima Taro
Um pobre pescador
Salvou uma tartaruga
E ela como prêmio ao Brasil o levou
Pelo reino encantado
Ele se apaixonou e por aqui ficou
Passaram muitos anos
De repente a saudade chegou
E uma arca misteriosa de presente ele ganhou
Ao abri-la, quanta alegria
quebrou seu coração
Encontrou uma passagem da Varig
E vôou, feliz para o Japão!
O mais recente comercial a marcar época, cuja trilha foi composta por Emilio Carreira, foi criado para divulgar os vôos sem escalas da Varig, e pode ser conferido neste vídeo do YouTube: “560 km, 560 km, pára um pouquinho, descansa um pouquinho, 550 km…”
Por toda essa história, não posso deixar de lamentar o fato de que a “estrela brasileira” deixou de navegar em céus azuis e passou a enveredar por climas bem mais turbulentos.
P.S. 1: Clique aqui para conferir o belo vídeo que Anderson Roberto de Souza fez em homenagem aos funcionários da Varig, Vasp e Transbrasil.
P.S. 2: Morreu ontem, de infarto em um quarto de hotel em São Paulo, Fabián Bielinsky, diretor e roterista responsável por um dos primeiros filmes que fizeram os cinéfilos brasileiros prestarem atenção à excelente safra recente do cinema argentino: “Nove Rainhas”. Aos 47 anos, dirigiu apenas dois longas-metragens em sua carreira (o segundo, “El Aura”, foi exibido na última Mostra de SP). Bielinsky é mais uma perda dolorosamente precoce deste ano de 2006.
P.S. 3: Outros posts que escrevi sobre a tal alma do negócio: Jingles inesquecíveis: bala de leite Kid’s e “Quer pagar quanto?”.
P.S. 4: Estou, orgulhosamente, na edição número 1 do Todoprosa, caderno de literatura em PDF lançado pelo site Cracatoa Simplesmente Sumiu.
P.S. 5: Para reflexão, eis o excerto de um dos últimos anúncios impressos da Varig, veiculado em 2005: “Vamos mudar para renovar sua confiança. Para continuar sendo a sua escolha. A sua companhia aérea. Não pela nossa história, pelo saudosismo. Mas pelo compromisso de continuar sendo uma das melhores empresas de aviação do mundo. E, se por acaso você hoje está voando com outras companhias aéreas, pode ter certeza: a Varig vai trazer você de volta“.
Alexandre Inagaki
Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.
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