“Detalhes”, a obra-prima de Roberto Carlos
Por Alexandre Inagaki ≈ terça-feira, 30 de outubro de 2007
Músicas não diferem muito de filmes: elas também vendem ilusões. O melhor exemplo do que afirmo é uma canção composta por Roberto e Erasmo Carlos em 1971 e gravada em um álbum considerado pela revista Rolling Stone o vigésimo oitavo melhor disco da MPB de todos os tempos. Lembrança mais do que justa para um álbum que reúne grandes canções como “Todos Estão Surdos” (soul de primeira, regravada posteriormente por Chico Science & Nação Zumbi), “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos” (a famosa homenagem a Caetano Veloso, que na época estava exilado em Londres), “Como Dois e Dois” (confira aqui o Rei cantando esta baita canção ao lado de Caetano, seu compositor), “De Tanto Amor” (balada capaz de fazer pedras se emocionarem) e a faixa inicial, música predileta de Roberto Carlos e de seus fãs: “Detalhes”.
Estamos falando aqui da música definitiva sobre dores de cotovelo. Pois “Detalhes” narra em primeira pessoa a história de um homem que, apesar de ainda mostrar inconformidade pelo fato de ter sido trocado por outro amante (“Eu sei que um outro deve estar falando ao seu ouvido/ Palavras de amor como eu falei/ Mas eu duvido”), não se deixa abater. Muito pelo contrário, alimenta a convicção de que jamais será esquecido, imaginando que será constantemente evocado pela ex-amante (“Se alguém tocar seu corpo como eu não diga nada/ Não vá dizer meu nome sem querer à pessoa errada”). Estamos, pois, diante de um homem que exorciza o fim de um relacionamento fomentando a certeza de que seu amor do passado jamais encontrará alguém tão marcante quanto ele. É um paradoxo interessante: ao mesmo tempo em que parece rogar uma praga (“Desesperada você tenta até o fim/ E até nesse momento você vai lembrar de mim”), o eu lírico da canção recorda um grande amor com toda a ternura que alguém que levou um pé na bunda é capaz de nutrir.
Na biografia que foi lamentavelmente embargada pela Justiça, Paulo Cesar de Araújo relata a gênese de “Detalhes”. Em uma noite de março de 1971, Roberto Carlos teve uma inspiração, pegou o violão, dedilhou alguns acordes e registrou-os em um gravador. No dia seguinte, ao ouvir a fita, considerou os primeiros versos que havia composto tão ruins que chegou a pensar que havia bebido quando os concebeu. Passou a trabalhar naquela promissora composição e recriou os primeiros versos, desta vez em caráter definitivo: “Não adianta nem tentar me esquecer/ Durante muito tempo em sua vida eu vou viver…”. Mais tarde Roberto ligou para seu parceiro Erasmo Carlos, em caráter de quase-emergência: “Meu irmão, vem pra cá porque pintou uma música que eu acho que não poderemos deixar pra depois”. Erasmo viajou imediatamente do Rio para São Paulo, e a dupla passou uma tarde inteira trabalhando na canção até que ela ganhasse contornos definitivos.
Sobre a gravação registrada no disco de 1971, Roberto comenta: “Nesta composição, consegui dizer tudo o que queria e da forma que queria dizer”. Não à toa, tornou-se a música predileta do Rei. Méritos também devem ser compartilhados com o produtor do álbum, Evandro Ribeiro, e o arranjador e criador da antológica introdução instrumental, o maestro norte-americano Jimmy Wisner.
O fato é que ninguém se torna o único artista sul-americano a vender mais de 100 milhões de discos vendidos em todo o mundo à toa. E, por mais que pessoas com preconceitos estéticos digam que Roberto Carlos é um artista “brega” ou “cafona”, o fato é que o Rei tornou-se majestade porque possui a capacidade rara de compor músicas que dão a impressão catártica de que foram feitas especialmente para a gente.
Oneide DeeDieRich, do grupo Pelebrói Não Sei, descreveu com precisão o alcance desta obra-prima da música popular brasileira ao dizer que “Detalhes” é a “música que me deixa sempre louco, quando estou de acordo com aquilo que sou, e quando não consigo ser o que esperam que eu seja”. E arremata: “Foi ali que ele disse tudo, tudo o que não se quer ouvir e tudo que não precisava ser dito”.
Tal como Bentinho, o personagem de Machado de Assis, fez em Dom Casmurro, “Detalhes” é um auto de defesa narrado em primeira pessoa por um homem que relembra um amor do passado. Porém, não encontraremos na canção de Roberto Carlos nenhum ódio ou ressentimento. É uma música dociamarga, o desabafo de um macho sensível que, ferido em seu orgulho, expia sua dor ao mesmo que busca disfarçá-la com certo ar de desdém. E faz isso com maestria, através da agudeza de versos que, ao final de cada estrofe, entoam o mantra dos amantes que nutrem o sentimento de que, por mais lábios que seus amores do passado venham a beijar, permanecerão incólumes em um canto intocado da memória sentimental do coração: “você vai lembrar de mim”.
* * * * *
P.S. 1: A melhor compilação de vídeos do Rei no YouTube está no blog Roberto Carlos Internacional.
P.S. 2: A respeito da proibição do livro Roberto Carlos em Detalhes, de Paulo Cesar de Araújo, meus colegas de InterNey Blogs Marcos Donizetti e Ricardo Schott já escreveram bem sobre o assunto, e Idelber Avelar fez uma entrevista exclusiva com Paulo Cesar que deve ser lida. Mas vale a pena também ouvir a palavra do próprio Rei, em uma matéria do Fantástico que foi devidamente “youtubada”.
P.S. 3: Posts relacionados: Quem é Rei nunca perde a majestade e Top 5 músicas do Roberto Carlos.
Alexandre Inagaki
Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.
Pingback: Top 5 músicas do Roberto Carlos | Pensar Enlouquece, Pense NissoPensar Enlouquece, Pense Nisso