8 ou 80
Por Alexandre Inagaki ≈ segunda-feira, 15 de março de 2004
Acendo teu cigarro na estrela desta madrugada insone, enquanto pensamentos redemoinham melodias redivivas na pista de minha memória. Abra as persianas de minhas reminiscências, mocinha.
A verborragia nervosa na mesa de jantar, as citações ricocheteadas de Bergman e Woolf, a taça de vinho tremeluzendo em minhas mãos titubeantes. De repente, não mais que de repente, me vi tonto (ainda mais do que o habitual) em um mundo repentinamente grávido de possibilidades que sorriam. Como um quadro que salta pra fora da moldura. Como as reticências sugestivas no decote das nuvens ocultando a manhã. Como um big bang eclodido dentro de mim, ao toque de lábios descobrindo-se pela primeira vez.
Diante do teu sorriso sempre retrocederei ao adolescente que tropeça nas próprias palavras. Meus cadarços se transformam em serpentes que se desamarram sozinhas e sobem rebeldes, em busca de estrelas esquivas. Ah, tantas vezes quis te matar, tantas vezes ainda morrerei entre tuas pernas. Alguém já viu um teto branco se encher de cores, assim como um escritor cobre de palavras o silêncio de uma madrugada? Maybe. Mas as piadas não têm mais graça, a música neste jukebox é sempre a mesma, e os insultos doídos que vociferamos brandem dentes nervosos na algazarra da noite.
O que fazer quando não sei mais o que fazer com teus olhos? Meus neurônios jogam amarelinha oscilando entre o céu e o inferno; pendurado entre o 8 e o 80, desisto de buscar o 44. Interrogações penduram-se no alabastro do meu cérebro, como guarda-chuvas antecipando a proeminente tempestade. Na gangorra da insônia, sou a mão sem linhas na palma.
Nossa história acabará no clichê amarfanhado do “viveram felizes para sempre”? Espero que não. Porque, oras, quem deseja o tédio imortal da felicidade perene?
Alexandre Inagaki
Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.