Versos incompreendidos da MPB: “Controlo o calendário sem utilizar as mãos”
Por Alexandre Inagaki ≈ quarta-feira, 21 de setembro de 2005
Cláudio Rodrigues e Claucirlei Jovêncio de Souza, dois amigos desde os tempos em que eram vizinhos na comunidade do Salgueiro, talvez representem o caso de dupla mais injustiçada de toda a MPB. Melhor reconhecidos pela alcunha de Claudinho & Buchecha, gravaram seis álbuns entre 1996 e 2002, ano em que Claudinho morreu vitimado por um acidente automobilístico. Tempo suficiente, porém, para que cunhassem alguns dos melhores chicletes de ouvido dos últimos tempos, como “Nosso Sonho” (verdadeiro compêndio da geografia suburbana carioca), “Fico Assim Sem Você” (sucesso recente na voz de Adriana Calcanhoto, conhecido pelos proféticos versos “Amor sem beijinho/ Buchecha sem Claudinho/ Sou eu assim sem você”) e “Conquista” (o hit do “tchurururu”).
Além da inegável veia pop, com influências de funk e soul, é preciso destacar as letras escritas por Buchecha. Ex-auxiliar de pedreiro e office-boy, não chegou sequer a completar o primeiro grau. Em compensação, tornou-se contumaz leitor de dicionários, sendo que cada palavra que chamava sua atenção era anotada em um caderno para posterior aproveitamento em suas músicas. Provém daí a inspiração para versos como “se o destino adjudicar esse amor poderá ser capaz, gatinha” ou “nem sei se era eu próprio, mas me machuquei ao perquirir, notei o seu opróbio”. Atualmente em carreira-solo, Mc Buchecha mantém o vigor de suas composições. Vide, por exemplo, “Laços”, música com samplers de “Pocket Calculator” do Kraftwerk e uma letra de romantismo comoventemente naïf: “Os casais se encontravam na pracinha/ Se abraçavam e se beijavam em puro mel/ Hoje ninguém mais namora e o tapinha/ É o convite mais ativo pro motel”.
Sua obra-prima, porém, foi gravada em 1998: “Só Love“, sucesso impecavelmente produzido pelo DJ Memê, com direito a samplers de “Da Da Da” (hit de 1982 do grupo alemão Trio, regravado no Brasil por Nahim) e um arranjo com direito a um sensacional riff de teclado no refrão. De quebra, possui em sua letra um dos mais intrigantes versos de toda a história da MPB: “controlo o calendário sem utilizar as mãos”.
Já li inúmeras interpretações equivocadas. Houve quem dissesse que tratava-se de uma metáfora do controle do tempo por parte do protagonista, uma vez que o grau de sua paixão faria com que ele esquecesse das horas; que era uma menção aos calendários Seicho-No-Iê, e que o amor seria capaz de conceder ao apaixonado poderes telecinéticos; que o tal “calendário” seria uma menção ao período fértil das mulheres, e por aí vai. Tamanhas viagens maionésicas eram desnecessárias: “controlo o calendário sem utilizar as mãos” nada mais é do que a bela declaração de amor de um cara tão apaixonado por sua garota que simplesmente se recusa a desperdiçar seu, hmm, “prazer” por intermédio de atividades masturbatórias. O calendário da letra se refere, pois, aos clássicos exemplares de parede ornamentados com fotos de musas desnudas, frequentemente utilizados na decoração de borracharias e quartos de adolescentes.
A fim de corroborar minha tese, analisemos os demais versos da canção (confira aqui a letra completa de “Só Love”):
- “Quero de novo com você/ Me atracar com gosto, corpo, alma e coração” (os eufemismos sinestésicos dos versos não deixam dúvida: o narrador da música mal pode esperar pela próxima trepada com sua musa);
- “Venero demais o meu prazer” (carece de explicações);
- “Amor vou esperar pra ter o seu prazer” (ele gosta de gozar juntinho);
- “Eu vivo a sonhar pensando em você” (aqui é possível vislumbrar uma alusão a poluções noturnas oriundas da longa espera do narrador);
- “Delírio de jogar futebol” (no auge da fissura o protagonista da canção embarca em delírios ludopédicos, afinal de contas “pra amar tem que ser com vocêêêêêêê”…).
Ao contrário dos versos onanísticos de “No Mundo da Lua”, sucesso do álbum de estréia do Biquíni Cavadão (“Não quero mais ouvir/ A minha mãe reclamar/ Quando eu entrar no banheiro/ Ligar o chuveiro, mas não me molhar”), as alusões à justiça com as próprias mãos em “Só Love” foram elaboradas de maneira metaforicamente cifrada, exigindo do ouvinte um nível de atenção maior do que o habitual. Enfim, trata-se de uma obra-prima da MPB, c.q.d.
* * *
P.S.: Já conhecem o Motel Só Love?
Alexandre Inagaki
Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.
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