SpamZine_________________
093
10 de novembro de 2003
são paulo  rio de janeiro  curitiba  león  salvador  são josé dos campos
 
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n e s t a  e d i ç ã o:
 
questões de timing - minicontos do andré - festa da mexerica & o cabotino - ohlepse o reflexo no banheiro - 5 fatos sobre reencarnação - em cima da chuva - susis & barbies - o filósofo e o kickboxer - sexo normal - deus dá, deus toma - sem remo, sem rumo
  
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editorial
alexandre inagaki  [email protected]
   
Jamais esquecerei da história de Milene Modesto, 28, estudante de pós-graduação da USP.

Às 23h40 do dia 22 de outubro de 1999, Milene acabara de sair do trabalho, na Avenida Paulista, quando foi atingida por um carrinho de transporte de cargas que despencou do 25º andar de um edifício em obras. Um acidente infame, inaceitável, absurdo.

Se Milene tivesse parado em uma banca de jornais para comprar um Hall's, teria escapado do acidente. Se sua mãe tivesse telefonado e pedido para a filha comprar pães antes de voltar para casa, teria escapado do acidente. Se os passos de Milene fossem mais apressados, ou mais pausados, ela poderia estar viva hoje, quiçá escrevendo um blog.

Tudo na vida pode ser uma questão de timing. Do alimento um dia fora de prazo de validade ao reencontro de velhos amigos em um elevador que quase fecha suas portas; do milésimo de segundo que decide um campeonato de atletismo ao roqueiro avant la lettre cujas músicas foram esquecidas; do site que seria um sucesso financeiro caso tivesse surgido antes do estouro da bolha aos quadros que Van Gogh não vendeu em vida.
 
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Acordei hoje, às seis e quinze da madruga, com o rádio-relógio berrando em meus ouvidos. Enquanto tomava café, tive uma idéia genial para um texto. Contudo, precisava sair para o trabalho. Seis horas de expediente no banco depois, com os neurônios devidamente anestesiados, sobre o que mesmo iria escrever?
 
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A primeira coisa que noto no garoto postado à frente dos carros é a ausência de sapatos em seus pés. Depois, as indefectíveis bolas de tênis em suas mãos. Pergunto-me: quem terá sido o primeiro pedinte a fazer malabarismos com bolas em uma esquina? Ah, se ele pudesse cobrar royalties pela idéia que criou. Mas enfim, tergiverso.

Percebe-se de cara que o garoto ainda peca pela inexperiência. De tão concentrado em jogar as bolas no espaço, esquece de coletar suas moedas. O som de uma buzina o arremete de volta ao planeta Terra: sinal verde, nenhuma esmola recebida. É o custo do aprendizado.
 
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Quando vi Monica Vitti entrando em cena no filme A Noite, de Michelangelo Antonioni, meu coração passou a bater em ritmo de Olodum. Que mulher! Sua presença magnética mesmerizou meus sentidos.

Mas o filme é de 1961, e eu sou apenas um pobre cinéfilo latino-americano. Que pena, Ms. Vitti! Ok, talvez nós tivéssemos alguns problemas de comunicação. Afinal de contas, do italiano só sei balbuciar algumas parcas frases como "tutti buona gente", "porca puttana" e "dá-me um Cornetto". Enfim, nada que a boa e velha linguagem corporal não resolvesse. Pena, no entanto, que acabamos nos desencontrando de gerações. Pelo mesmo motivo meus promissores relacionamentos com Louise Brooks e Hilda Hilst não deram certo...
   
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Simples assim: André se apaixonou por Dulce, e vice-versa. Mas Dulce era noiva de Marcos, e relutou em abandonar uma relação segura por conta de um impulso que poderia ser passageiro. Ficaram juntos duas, três vezes. Depois, pararam de se encontrar a pedido de Dulce, que não se sentia bem em trair seu noivo. André amargou alguns meses ouvindo Billie Holiday na penumbra de seu quarto, mas superou o baque.

Um ano depois, Dulce telefonou para André. O noivado havia sido rompido, ela não conseguiu esquecê-lo durante esse tempo todo, etc etc. André também não esquecera de Dulce, mas aprendera a conviver com sua ausência. Tanto que encontrou uma namorada, Bárbara, com quem vivia uma relação estável e feliz. Dulce quis marcar um encontro no Conjunto Nacional, lugar onde trocaram tantas palavras de paixão não-consumada. Por um instante André hesitou, perambulando na corda bamba da nostalgia. Mas acabou declinando do convite: não valia a pena buscar o pássaro voando.

Não era pra ser.
 
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Após os atrasos de praxe (afinal, edição do Spam Zine que não atrasa é como paixão racional ou estupidez limitada: não existe), cá está o SZ 093, com colaborações de: André Machado (em mais quatro pérolas da série "minicontos do desconforto"), Marcelo Barbão (já visitaram http://gardenal.org/barbao?), Javier Tornadijo Arce (espanhol que participa com um Top Five que sampleei de seu finado site, o estupendo El Hombre que Comía Diccionarios), Ernesto Diniz (estudante de Letras, vítima constante de minhas procrastinações com e-mails e uma das cabeças por trás da excelente revista eletrônica Crivo Generoso - http://www.crivogeneroso.com.br/index.asp), Tatiana Bianconcini (multimedia designer, uma das debutante de SZ desta edição), Fábio Fernandes (por onde anda Mr. FF?), Eliana Pougy (uma das organizadoras de um interessante blog coletivo dedicado à literatura: http://blogautores.blogger.com.br), Sara Fazib (que, após longa ausência nos bytes deste e-zine, retorna em grande estilo), Ricardo Alfaya (jornalista carioca e participante de inúmeras antologias de prosa e verso em 23 anos de militância literária) e cumpadi Orlando Tosetto Júnior.
 
Chamo a atenção também para dois lançamentos literários divulgados nesta edição: os livros de Índigo Girl e Paulo Polzonoff Jr. Maiores detalhes alguns scrolls abaixo, na seção Agenda Literária.
 
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Escreveu T. S. Eliot:
 
"This is the way the world ends
This is the way the world ends
This is the way the world ends
Not with a bang but a whimper
".
 
Sim, tudo na vida pode ser uma questão de timing. Despeço-me, nesta edição, do Spam Zine (e passo a bola para Mr. Sabbag encerrar nossas atividades no próximo número). Os incautos que porventura quiserem continuar acompanhando minhas letras agora devem se dirigir ao meu blog pessoal, em http://inagaki.blogger.com.br.
 
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minicontos do desconforto
 
- 31 -

Fizeram amor devagar. No fim, acendeu o cigarro e ficou fazendo argolas de fumaça no ar. Ela dormiu -- e de repente, no meio de um sonho, sussurrou o nome de outro. "Tom..." 
 
Ele passou o dia inteiro agoniado no trabalho, já imaginando uma cena nelsonrodrigueana na volta para casa.
 
Não deu outra. Ao abrir a porta, ela sorriu (e como era poderoso seu sorriso), dizendo que queria lhe apresentar o Tom.
 
Aimeudeus aimeudeus aimeudeus, era só o que passava pela cabeça dele, enquanto a fúria subia das gônadas para o pescoço.

Entrou.
 
-- Este é o Tom. Eu quis lhe fazer uma surpresa...
  
O gatinho preto e branco ficou olhando de lado aquele bípede maluco que gargalhava num frenesi à sua frente.
 
- 32 -

Acordou na calçada, as gotas da garoa descendo em sua boca. Apalpou o bolso. A carteira estava lá. Perscrutou o peito: o coração tinha sido roubado.
 
- 33 -
 
Banhistas a trouxeram, semidesmaiada, até ele, depois de a tirarem das ondas. Colou sua boca na dela e começou a aplicar a respiração. Quando os olhos azuis acordaram, estavam estranhamente despidos de sentido. E ele tremia e chorava sem entender: havia puxado a alma dela pelos pulmões.
   
- 34 -
 
Amou-a desde o primeiro aperto de mão, que lhe deu um choque. Mas não conseguiu dizer-lhe isso na primeira noite. Costurou palavras com fio de ouro, que lhe enviou durante meses. Então ela se apaixonou por outro, e ele se desesperou. 
 
Uma tarde encontrou-a sozinha no parque. Respirou fundo, sentou-se e entregou o que lhe ia na alma. Os dois choraram juntos e ele pensou que ela enfim derrubaria o firewall invisível que os continha. Mas pousou por ali um pássaro de plumagem estranha, que atraiu a atenção dela. Depois, o momento foi embora sem se despedir e ela recompôs-se, sumindo rápido da cena.
 
No dia seguinte ele levou seu gato até o parque e o observou caçando os pássaros. Foi então que nasceu seu sorriso de sarcasmo, de que os amigos tiveram medo até o fim de seus dias. 
      
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sem sujeito
marcelo barbão  http://www.marcelobarbao.kit.net

O corredor escuro parecia mais longo do que o normal. Caminhava por ele, dando passos um pouco trêmulos, a cabeça girava. Andava até o final do corredor e voltava, como se esperasse um filho nascer numa madrugada gelada. O nariz escorria, demonstrando a existência do frio ou talvez uma vontade presa de chorar.

Na mão, uma xícara de chá, bebia esporadicamente. Estava esperando que o líquido quente entrasse pelo estômago limpando a sujeira acumulada. O espelho revelava um rosto diferente, passava pela frente do espelho e não olhava, era olhado. Dentro do espelho, brilhava no meio da escuridão.

Em nenhum momento, pensara em sair daquele corredor escuro. Se tivesse pensado, teria visto a impossibilidade de passar por dentro do espelho e olhar tudo ao revés, como se tivesse dado uma volta brusca e desnecessária.

.sednarg seralucelom seõçaretni moc e aditnocni amrof ed sazerupmi saus sad adías a airartsom ohlepse o E

Se tivesse corrido para o banheiro preservaria o chão assoalhado que havia encerado com tanto trabalho durante os poucos momentos em que a luz solar entrava naquele pedaço do corredor escuro.

Naquele momento, tomava o chá que se derramou pelo piso. Talvez tenha derrubado a caneca que não quebrou apenas correu como se estivesse viva para baixo de uma poltrona empoeirada que mantinha num rincão inabitado daquela sala iluminada pela noite que se obscurecia com aquelas convulsões no estômago no caminho desesperado pelo interior daquele corredor.

Se tivesse acendido as luzes, perceberia o chá derramado pelo piso, mas não veria a caneca, a não ser que seguisse o caminhar amedrontado de um gato.

Um gato, com certeza, um gato que examinava. Fora acordado pelo barulho da xícara que correra pelo chão, debaixo da poltrona esquecida. Se tivesse acendido as luzes, com a xícara ainda na mão, veria que o chá misturava-se com o sangue que saia num escorrer fino e contínuo de dentro do espelho.

E passaria na frente do espelho, veria uma imagem de nada, choraria pela mistura de sangue e chá. Arrotando as sujeiras acumuladas poderia apagar a imagem do gato cheirando uma xícara vazia que rolava pelo meio do corredor em direção a uma poltrona macia e confortável comprada para ser colocada na sala escura.

Acenda a luz no banheiro para ver uma banheira povoada de vômitos das coisas ruins que apenas limpariam todos os maus pensamentos e más vontades. Quando deitar na cama, junto com um gato amedrontado e uma xícara meio vazia, uma mancha de luz no teto mostrará com sarcasticidade que, saiba ou não, o espelho ainda refletirá o mundo ao revés.

E correria para o banheiro encontrando uma banheira onde a água poderá limpar o vômito que escorre pelas privadas que estão espalhadas estrategicamente pelo corredor escuro. Quando olhar para baixo, veria o sangue misturado com chá entrando nas feridas dos pés incapazes de discernir o espaço vazio das privadas pintadas de negro para combinar com o
resto do corredor.

No fundo do corredor, poderia ver a sinalização aeroportuária que se repete infinitamente no espelho, existam ou não os aviões. Teria visto também os vômitos voltando ao estômago, passando pela boca e pelas privadas, numa tentativa de voltar ao abrigo e aconchego do útero materno.

O teto marcado pelos arrotos que como grandes brados de guerra mostrariam à humanidade o ímpeto de raiva e violência que havia tomado conta deste estômago. Estaria pior se a poltrona de couro empoeirada, onde dorme um gato amedrontado e com frio, não tivesse se tornado um lugar mais confortável sem o qual passaria a noite cheia de luzes naquele corredor iluminado pelas dezenas de portas semi-fechadas, onde privadas semi-entupidas contrastavam com um chão molhado com a cera que iria passar e cujos deslizamentos seriam inevitáveis e terminasse num espelho coberto com o pano negro que impedia que o mundo voltasse para trás. Nessa poltrona, com a xícara cheia de chá amargo, os dedos do pé machucados, com um gato entre as pernas, amedrontado pelo piso que havia se transformado em um oceano de vômito, sangue e chá, iluminado somente pelos reflexos que iam e vinha do espelho luminoso, esperaria a noite passar.

O dia seria ainda pior.
     
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l i s t a s   a b o b r o l
 
cinco cosas que debes saber si piensas reencarnarte
 
1. Antes de volver a la Tierra - en el caso de que quieras repetir en este planeta-, asegúrate de que has rellenado correctamente los formularios Af-002 y Am-003. Ambos han de estar sellados y firmados. Recuerda: la hoja rosa es para Administración.
 
2. Tampoco olvides incluir en tu solicitud tres fotos de tamaño carnet - no lo dejes para el último momento, fuera de este universo es complicado obtenerlas-.
 
3. Si tu destino es otro Universo, deberás abonar los gastos de transporte hasta el agujero negro más cercano (para una lista actual de precios, consulta la guía Orión en la Dirección General de Migraciones). El coste del viaje se puede reducir en un 33% si tu alma es de tipo delta o menor, o si tienes menos de 18 años (años terrestres).
 
4. Durante el viaje está prohibido el uso de teléfonos móviles y otros aparatos eléctricos, así como comunicarse con los vivos y mascar chicle.
 
5. Si tienes alguna duda antes, durante o después del viaje, consulta con tu Agente Local (excepto en los universos de la clase 43874392019 - catálogo Halkcrof-, donde uno mismo es su propio Agente Local o una sardina).
 
Extraído del libro: "Seis Cosas Que Debes Saber Si Piensas Reencarnarte".
 
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a g e n d a   l i t e r á r i a
 
Festa da Mexerica - Editora Hedra
 
Em Campinas, cidade onde nasci, a expressão "Festa da Mexerica" equivale à "Festa do Caqui" dos paulistanos. Assim, esse meu livro reúne contos que tratam de temas como visitas alienígenas, fadas urbanas, gnomos, o fim dos tempos no reveillon de 2000, namorados que se transformam em maridos, homens que se transformam em flor e outras histórias curiosas do dia-a-dia.

Na orelha, Laerte escreveu que "a literatura de Índigo possui um estranho pan-etarismo, onde o modo de ver do adulto e da criança se confundem e se superpõem". Com esta definição ele resolveu um dilema essencial para mim: a classificação etária do que escrevo.

A safra de contos cobre um período de 1997 a 2003. Mas como eu não os datei, vocês jamais saberão se melhorei ou piorei com o decorrer do tempo.

As ilustrações são de Garota de Botas, que também faz meu site. A capa é de Daniela Nogueira e Emerson Lehmann. Ela me lembra uma embalagem de bala de chocolate com recheio de morango.

Classifiquei os contos em "picantes" e "agridoces" a fim de ter um conjunto balanceado. Na categoria picantes vale mencionar "Amor Carnal" que tem como protagonista um açougueiro do Carrefour. Um bom exemplar do tipo agridoce é "E se...", uma brincadeira de especulações entre dois meninos.

Enfim, o livro está aí. À venda nas melhores livrarias e eu recomendo. Diversão garantida ou seu tempo de volta!
 
NOTA DO EDITOR: visite http://www.jhendrix.net/indigo, encomende imediatamente seu exemplar de "Festa da Mexerica" (que contém alguns contos publicados aqui mesmo no Spam Zine, como a pequena obra-prima "E Se...") e aproveite para saber mais a respeito dos outros dois livros de Índigo, "Saga Animal" e "Caixinha de Madeira".
 
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O Cabotino – Editora Candide
paulo polzonoff jr.  http://www.polzonoff.com.br
 
Polêmico, engraçado, instrutivo e arrasador. O crítico literário Paulo Polzonoff Jr. mostra em O Cabotino com quantos neurônios se faz um literato. Não que sejam necessários muitos.
 
Com sua experiência no suplemento literário Rascunho, Polzonoff percebeu que a literatura quase sempre é feita por gente que não quer outra coisa senão uma noite de autógrafos. E, por incrível que pareça, é esta gente que acaba subindo os degraus da “arte” e chegando ao posto de “escritor”, sem jamais o ser.
 
Foi pensando nestes homens cheios de vaidade, mas com talentos discutíveis, que o autor compôs o personagem que serve de interlocutor para suas digressões sobre literatura. Mas que o leitor não espere nada muito pesado nem nada acadêmico: Polzonoff tem verdadeira ojeriza daquilo que não pode ser comunicado ao grande público.
 
É ainda com espírito galhofeiro que Polzonoff escreve o que escreve, derrubando um a um os equívocos que movem literatos ao exercício do beletrismo. Neste sentido, o autor não poderia ser mais fiel a Machado de Assis. Até porque o complemento da galhofa segundo o Bruxo do Cosme Velho, a melancolia, também está presente em O Cabotino, principalmente no ensaio final, no qual o autor mostra sua desilusão precoce para com aquilo que sempre amou: os livros e seus autores.
 
O Cabotino é uma aposta da editora Candide no debate de que tanto precisa a literatura brasileira. Neste sentido, o texto de Paulo Polzonoff Jr. acerta em cheio. Porque traz para o leitor comum questões importantes da criação literária, geralmente restritas ao meio acadêmico. Que faça isso com humor e acidez, tanto melhor.
 
NOTA DO EDITOR: Aos que ainda não conhecem a verve literária de Mr. Polzonoff, recomendo uma visita a http://www.polzonoff.com.br/cronicas. Confiram ainda o site da editora, em http://www.candideeditora.com.br, e fiquem atentos à agenda de lançamentos.
  
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conversões, digressões, diversões e a força de três
ernesto diniz 
http://torin.blogger.com.br
 
Descobri em cima da chuva um segredo -- pensava --, um segredo partido em estrelas grossas, sérias e brilhantes, como um sinal: como um beijo. A chuva não chegou mais por aqui porque não estamos nesses tempos de chover, só entendi o segredo e mais nada, mesmo seco e sem gotas largas, românticas e desesperadas. No final entendi o que pretendia e senti muita coisa, como sempre sinto e aprendo os segredos. Não conte a ninguém. Não conte. Quando estamos assim libertos do ideário comum, quando compartilhamos os nossos feitiços e nossas lunações, o mundo logo toma um ritmo vagaroso e quase em tédio -- pensava alto --, mas tinha que descobrir. Exatamente em cima das chuvas ou no ombro, ou então nos lábios cerrados ou num cheiro gostoso, amadeirado. Meu. Não era bem a chuva que guardava o segredo, talvez o segredo não fosse exatamente um segredo. Felicidade. Então inventei esse de estar em cima da chuva. A parte das estrelas é verdade, ainda que a lua também faça parte do cenário. Os beijos então contam bastante e quase tudo deflagra uma nudez de alma, nos toques e nas vontades. Alguém não consegue esconder-se nos gestos e logo derrama-se, transborda-se sem querer. Transbordar ou mudar de direção. Amar.
 
Porque o outro lá do outro lado do balcão já sapecava um sorriso maroto, num espírito de vassalo, servindo e despachando, não só os livros da biblioteca e os olhares, mas os seios dela eram maravilhosos e vistosos, bons de ver, melhores de tocar. Verdade. Uma tentação dos diabos. O outro ainda concordava com um monte de coisas que ninguém concordaria. Ficava um monte de cabeças brigando entre si. Nenhum veredicto. Então fazia, ela, do jeito que dava e queria, tentava e se escondia nos vãos largos, entre as prateleiras de livros. Até que certa vez, talvez de forma mais dramática, os apelos surtiram efeito contrário a tudo que realmente desejava e foi assim que o velho peso do martelo religioso sobrepujou qualquer tentativa de gozo ou tentativa de, na melhor das hipóteses. O bem da verdade. Conversão direta e impiedosa, sem anestesia. E ainda tinha outra história.
 
Foram anos até conquistarem um pedaço de terra próprio. Nunca se sentiram realmente seguros e isso se arrastaria até o final dos tempos, essa insegurança. Não é totalmente verdade. A cada passo que davam, caía uma pena das asas e ninguém sabe se isso é bom ou ruim. O negócio é que a maturidade e as conquistas são relativamente novas e sempre retornam ecos ricos sobre cada uma das almas. E diferentes. Para não desencadear mais brigas de cabeças, de vez em quando, é bom quebrar pau, discutir, cerrar as garras e lapidar tudo de novo. Nada é perdido. A digressão dos caminhos aumenta as possibilidades e enriquece: é difícil pensar assim. Nem entre as prateleiras de livros fica fácil pensar assim. Mas pensa.
 
Além de todas essas pequenas e referenciais histórias, suspiros, descobri, em cima da chuva -- pensava --, um segredo ainda mais valioso, quase como um sinal: como um farol. Amor incondicional. Torno-me então a afugentar qualquer papel amassado de minha memória e sei do peso que dou às coisas. Agora mais reais. Agora bem diferentes. Relaxo sobre a cama, com a barriga cheia depois do almoço, converso, faço um afago sem medo e rio. Os rios que correm por cima das chuvas, que trazem um tanto de segredos em gotas largas e românticas e desesperadas, mascaradas. Cada um vai inventando o mundo como pode. Eu me ocupo da chuva que nela resido temporariamente, uma vez água, uma vez na terra com as raízes fundas e subo com o fogo aos céus novamente e deixo-me ser soprado pelos ventos que trazem sempre novos feitiços. Atrás do balcão também estou olhando os seios dela, mas ainda não me converti, também já tenho meu pedaço de chão que se não for material -- melhor ainda --, quero chão de espírito, espaço para crescer. Estou em quase todos os lugares, travestido de gente, meus pedaços andam soltos pelo mundo, em outras pessoas. Em cima da chuva estão minha alma e meu amor. Três, três, três, que se multiplicam.
   
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n a v e g a r   i m p r e c i s o
 
dicionário alternativo de português-inglês
Depois do "the book is on the table", que tal aprender a falar expressões mais interessantes como "dar um tapa na aranha", "queres que te chupe" ou "vamos fazer uma sacanagem" em inglês?
 
animações a la escher
Makoto Nakamura é um ilustrador japonês especialista em criar grafismos e ilusões óticas ao melhor estilo M.C Escher. A não perder: seus gifs animados.
 
literatura à beira-mar
Capitaneado por Augusto Sales (do Falaê!) e Jaime Gonçalves Filho, surge um site literário dedicado a promover a interatividade entre novos escritores com livros recém-publicados ou autores ainda inéditos e garimpados em blogs, revistas literárias e zines. Leia, divulgue, participe!
 
spam zine na fita!
O Concurso de Narrativas Breves Haroldo Maranhão foi o primeiro concurso literário voltado para a comunidade blogueira, promovido pela professora de filosofia e literata Maria Elisa Guimarães, a Meg. Bacana foi constatar que os dois contos classificados em primeiro e segundo lugar, de Jules Rimet e André Machado, já haviam sido publicados anteriormente no Spam Zine. Além disso, outros colaboradores nossos, como o Marco Aurélio Brasil Lima e o Fábio Danesi Rossi, também ganharam menções honrosas. É nóis na fita!
  
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entre a susi e a barbie...
tatiana bianconcini  
http://cybercubes.sites.uol.com.br

No Brasil, quem foi menina nos anos 60 e início dos 70 teve, com certeza, pelo menos uma boneca Susi. Meu pai costuma dizer que contou até a número 25, depois desistiu... cedia e me presenteava em qualquer data do ano mesmo, resignado com a mania da filha. Mas a mania não era só minha não! Toda uma geração de pais e filhos, impulsionada ainda mais com a vinda de um tal de "milagre econômico" que se divulgava então, aderiu pela primeira vez na história do nosso país ao consumismo infantil.
 
A Susi era o reflexo de tudo o que nós, futuras mulheres emancipadas e independentes que seríamos, éramos levadas a sonhar em ser. A Susi era bonita, tinha o corpo perfeito, vestia-se sempre na última moda... e ainda mudava o corte e a cor do cabelo a cada novo modelo! Lembro que eu cheguei a ter até uma tal de Susi bronzeada - a pele na cor típica do, igualmente típico, rayto de sol - e as madeixas, claro, louro-oxigenadas. Mas a Susi era muito mais que um simples modelo! Fantasia mutante, com suas longas botas ou seus sapatinhos baixos, a Susi encarnava - num passe de mágica - qualquer personagem feminino que se desejasse ser. Símbolo da projeção que as meninas da geração sanduíche da modernidade faziam de si no futuro, o modelo top de vendas ainda era a Susi noiva.

Muitas evoluções aconteceram antes que a Susi atingisse a forma física ideal a que chegou no fim de sua carreira. As primeiras que tive não dobravam a cintura e tinham umas mãozinhas gordas e espalmadas, como as de quem rói as unhas, uns olhos meio estrábicos... Quando ela começou a se articular mais, eu enlouqueci! Outro ícone dessa época é o hoje tão condenado "polichinelo", que então era o verdadeiro sinônimo da ginástica e da boa forma. A cada nova Susi articulada, eu a observava melhorar em alongamento e (assim... para dar uma "forcinha"...) a fazia treinar uns polichinelos rápidos. Coitadinha... Mesmo sendo ainda jovem, a coluna da boneca era mais frágil que a de muita
cinqüentona - e... Spac! Mais uma Susi se partia ao meio! Não que isto revelasse tendências sádicas, e a prova era o choro em que eu caía a cada vez que acontecia. Era apenas uma tentativa incansável de estar sempre superando novos limites. Na verdade quem não se cansava de se superar era meu pai que certa vez teve a capacidade de fazer furinhos nas duas metades da boneca partida e amarrá-los com araminhos invisíveis torcidos! Sim, pasmem! Ainda não se usava superbonder.

Foi mais ou menos por essa época, calculo 1972, que eu ganhei uma Barbie de uma tia que viera de Nova York. A boneca era para ser daqueles presentes de arrasar quarteirão. Havia sido escolhida já com base na minha mania por Susis e trazia qualidades extras que fariam qualquer adulto supô-la infinitamente superior à prima cucaracha. Além do plástico mais macio, do olho mais expressivo, do cabelo cacheado que não embaraçava, das articulações perfeitas que não enferrujavam nem causavam manchas roxas nos joelhos e cotovelos, and much more (como tudo o que vem da América)... A minha Barbie falava!

Na nuca da mocinha tinha uma pequena argola - bastava  utilizá-la para puxar uma cordinha e a danada disparava a falar frases aleatórias. O primeiro choque cultural surgiu aí. Foi até educativo, eu diria. Descobri com esse brinquedo - aos dois ou três anos de idade - que em outros países se falava outras línguas. Isso é que dá ser de uma geração que não nasceu globalizada! Mas tudo bem, o que no começo me pareceu um sério defeito, pouco a pouco se explicava, aqueles grunhidos ininteligíveis eram o resultado da nacionalidade da coitadinha... Aí, pouco a pouco também, os adultos começaram a traduzir as falas da 'americaninha' para mim: "O senhor aceita um café?", "Quer a conta, madame?", "Seu lanche está bom, senhor?"!!! Aí, eu juro, foi mais difícil de entender do que a questão, digamos: lingüística!

Como a tradução do sonho de toda menina americana que a Barbie era, ela procurava ser fiel até aos sonhos mais banais que essa menina pudesse ter. Assim como a Susi era aos da menina brasileira. Se esta ainda sonhava com um vestido de noiva igualzinho ao de uma princesa, ou simplesmente queria passar muito bronzeador argentino e 'torrar' sob um sol de 40º, a Susi realizava essas fantasias para a menina. O que nenhuma brasileirinha, nem mesmo com muita criatividade conseguiria sonhar era em ser garçonete quando crescesse. MacDonalds... ainda não tinha chegado por aqui, ao menos não na minha cidade. No bar da esquina, onde a gente comprava o pãozinho (que era um pão e grande)... geralmente só tinha homem. Para não dizer que eu nunca tinha visto uma garçonete na minha vida, tenho que me lembrar da  "lanchonete" das Lojas Americanas!
 
Era justamente às Lojas Americanas, ou simplesmente "mericana" - como eu dizia pedindo para a minha mãe, que íamos para escolher as minhas novas Susis! Sempre que eu me comportava bem, por mais subjetivo que isto seja para uma criança, depois de escolher um brinquedo, a gente entrava na lanchonete (e na cultura americana) e tomava um sundae, às vezes até um banana split. Para mim era tão moderno quanto foi comer sushi na década de 80! Por frequentes até que fossem, essas minhas breves incursões ao american way of life não foram suficientes para que eu enxergasse naquelas moças baixinhas e suadas, com suas redes no cabelo, nem sombra da boneca que eu tinha em casa.

O tempo foi passando, novas Susis foram surgindo, cada vez mais modernas... Teve até a Susi ciclista com sua bicicleta a pilha, que depois quebrava e a gente ficava com uma boneca de perna mole nas mãos! Para tudo a criatividade agia, a Susi ciclista depois de se quebrar a bicicleta, virava a irmãzinha paralítica da mais bonita! Aquela de quem você tinha subtraído as madeixas num rompante, virava o Ricky, e acabava ficando até parecida com Elvis Presley! Podia ainda ser a governanta Assunta, má como a da novela! Minha fantasia pré-globalização total ia moldando, referência a referência, uns ou outros enredos, divertidos ou trágicos... puro brinquedo!

Até que um dia, ela - a rejeitada de todas as histórias - com suas maria-chiquinhas de cachos louros, com seu short jeans azul-claro, sua camisa xadrez amarrada à cintura, quis entrar na brincadeira!... Olhei bem dentro daqueles olhos estatelados de felicidade que ela tinha e perguntei ferozmente, como a vovozinha ao lobo... "Pra quê esses peitos tão grandes? Pra quê essas pernas tão finas, Barbie, me responda! Por que você é tão feia???" Arranquei a cabeça dela e voltei às velhas Susis...
 
NOTA DO EDITOR: recadinho enviado pela Tatiana:
 
"Como eu a-m-o concursos literários, participo de todos que vejo e já ganhei, participando deles, de mochila a perfume, de rímel a coleção de Susis, decidi inventar um também! A idéia é me contarem o que a Susi estava fazendo enquanto tomava uma água.pop naquele sábado à tarde. Pretendo publicar todas as respostas recebidas até uma data-limite ainda não decidida, talvez 30 de Novembro. E a história que mais me surpreender irá ganhar um duo de gravuras água.pop!".
 
Em tempo: maiores detalhes sobre o mini-concurso literário promovido pela Tati estão aqui, em http://cybercubes.sites.uol.com.br/webgravuras/lovesusi-msg.htm, incluindo reproduções das belas gravuras oferecidas por ela. :)
 
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dois microcontos
  
I
Nada no mundo podia separá-los.
E então veio o asteróide.

II
- Não se resolve nada com violência - disse o filósofo ao kickboxer, segundos antes de apertar o gatilho.
- Eu sei - respondeu o kickboxer ao se desvencilhar do revólver e quebrar a espinha do filósofo em dois lugares.
  
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from the future
 
Ele saiu do avião um pouco tonto. Essa dor de cabeça ainda iria estourar seus miolos. Tinha uma reunião dali a umas duas horas, mais ou menos. Foi procurar a sala de reuniões do aeroporto para ver se estava tudo certo. Era uma sala pequena com uma mesa no centro e, em cima dela, um monitor de 40 polegadas. Ele preparou o vídeo para ser dividido em oito imagens. Sim, eram oito os participantes da reunião. Gente do mundo todo, ao mesmo tempo, ali, na sua frente, cada um em um aeroporto diferente.

Essa vida de executivo era realmente estressante. Não só pelas decisões que tinha que tomar mas pelo fato de viver de aeroporto em aeroporto. Sempre a caminho. Sempre indo. Um ser em trânsito. Tomou um remédio para dor de cabeça. Agora sim, podia relaxar um pouco. Saiu da sala.

É, as pessoas desse lugar eram bonitas, sem dúvida. Onde era mesmo que ele estava? Nem se lembrava mais. Olhou para fora da janela: uma paisagem belíssima. Parou e ficou observando a camada de poluição que pairava no horizonte. Era uma pena não poder sair lá fora. Uma pena. Continuou sua caminhada.

De repente, seu celular emitiu um som característico. Era uma mensagem que conhecia muito bem. Era um homem atraente, não era difícil arranjar boa companhia. Olhou em volta e logo descobriu de onde vinha a mensagem. Voltou os olhos para a tela de seu celular:

- Nickname - Vida
- 30 anos
- saúde perfeita
- olhos verdes
- cabelos loiros
- tipo de sexo: normal

Ele apertou o botão send. Concordou em fazer sexo com ela. Estava mesmo precisando. Ele a seguiu. Foram para uma pequena sala, com uma cama. O local era simples e elegante. Clean. Esse estilo nunca sairá de moda mesmo, pensou ele. Os dois tomaram suas pílulas de prazer. Ela levantou a saia e tirou a calcinha. Virou de costas para ele. Ele já estava pronto para copular. Penetrou-a com delicadeza. Sexo normal era assim: de pé, de costas. Fechou os olhos. O movimento do sexo era bom. Ela gemia baixinho, discretamente. Então, uma vertigem tomou conta dele.

- Desculpe, preciso me sentar um pouco.
- Sem problemas, disse ela.

Ao abaixar-se, sem querer esfregou seu rosto nos seios dela. Sentiu uma sensação diferente. Perdeu o equilíbrio e acabou por puxá-la para a cama. Seus olhos se encontraram. Daí em diante, ele se descontrolou. Suas mãos descobriram lugares do corpo dela que ele nunca tinha percebido em uma mulher. Sua língua descobriu sabores diferentes, doces, femininos. Sentiu perfumes e aromas que jamais sairiam de sua pele. Quase perdeu os sentidos. Ou, descobriu outros, esquecidos. Ela sentiu o peso dele. Sentiu sua própria fragilidade. Perdeu-se. Gritou, até. Desnudaram-se. Renderam-se. Até cansar.

Quando ele acordou, vestiu as roupas rapidamente. Ela continuou dormindo com um leve sorriso no rosto. O que tinha acontecido afinal? Ele estava doente, não tinha dúvida. Essas dores de cabeça, esse mal-estar. Ninguém poderia saber o que tinha acontecido, jamais. Fugiu. Perdeu a hora da reunião e precisou correr para não perder o avião, que já ia partir. Voou com uma sensação esquisita. Uma dor no peito, um peso no alto da cabeça. Suspirou uma, duas, diversas vezes. Estava sentindo uma ausência, uma falta, um tipo de nostalgia. É, era isso. Nostalgia. Mas não sabia bem do quê.
  
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liberté
  
Na sexta
ela disse
Deus dá
Deus toma.
Citou Jó
os salmos
o Vale das Sombras.
Lembrou o calvário
do outro
e de outros iguais.
Eu não ouvi.

No sábado
calada
cobriu a cabeça
de cinzas
vestiu saco
e jejuou.
Tomou a minha sina
para si.
Eu andava
ela andava.
Eu caía
ela caía por cima.
Ficamos ébrias
sujas
rotas.
Vendemos o corpo
as lágrimas
a roupa.
Então nos guardamos
nos quartos mais recônditos
e nos purgamos
até a última gota.

No domingo
levantou-se
banhou-se.
Abriu a janela
e ordenou
venha até aqui.
Eu hesitei
ela disse não tema.
Eu me aproximei
ela me empurrou.
Eu voei.
       
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pescado nas águas de rio
 
A vida não é exatamente qual rio
Embora vá prosseguindo em frente
nem sempre segue reta para o mar
Na maioria das vezes vagueia tonta
tão sem remo sem rumo e sem rota
 
Se desconhece leme na terra à vista
que dê remédio à tortura e a aprume
que arrume a seta do vago navegar
Para quem o mal deplora, o consolo:
Não existe nau que para sempre dure
 
(OBS.: o poema acima é parte integrante de Rios, coletânea de poemas de cinco autores: Ricardo Alfaya, Elaine Pauvolid, Márcio Catunda, Tanussi Cardoso e Thereza Christina Rocque da Motta. Para tanto, basta escrever para [email protected] ou entrar em contato com o autor: Caixa Postal 18032 - CEP 20720-970 - Rio de Janeiro - RJ.)
 
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r á p i d a s   r a s t e i r a s
 
"Policial é espancado até a morte e agora vegeta numa cama de hospital".
(Chamada do "Repórter Cidadão, edificante programa apresentado por MARCELO REZENDE na Rede TV.)
 
"Sonhos são como arco-íris. Somente idiotas os perseguem".
(Mais uma das frases "desedificantes" de http://www.despair.com, site talhado para todos aqueles que têm empregos modorrentos, ganham mal, são sacaneados pelos colegas de serviço, desprezados por aquela estagiária gostosa e ainda têm de conviver com reuniões preconizando "atitudes pró-ativas" e a "união da equipe".)
 
"É muito difícil ficar nua na frente dos outros porque sou muito tímida".
(DEBORAH SECCO, atriz que já posou duas vezes para a Playboy e fez um topless na atual novela das oito, embaralhando minha percepção sobre o que é timidez.)
    
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inda que tarde
orlando tosetto júnior  [email protected]
 
O camarada bate na porta do vizinho.
 
- Pois não?
- Queria conversar com você.
- Estou ouvindo.
- Você hoje pulou o muro do meu quintal.
- Ah, sim, pulei.
- E plantou um pé de café no meu jardim.
- Plantei.
- Por que você fez isso?
- Porque você precisa muito de um pé de café no seu jardim.
- Eu preciso?
- Obviamente. Não havia lá nenhum pé de café!
- Claro que não havia. Eu nunca plantei.
- Foi o que eu percebi. Por isso plantei um.
- E pra que diabo eu ia querer um pé de café no meu jardim?
- Por que é muito necessário.
- Muito necessário? Por quê?
 
O outro ri.
 
- Veja só: o simples fato de ter feito essa pergunta mostra que você não está preparado para compreender a necessidade de se ter um pé de café no jardim.
- De fato, não compreendo.
- Exatamente. Agora veja: eu compreendo claramente essa necessidade. Minha visão dessas coisas é penetrante; estudei muito, li muito mais do que você, sei muitas coisas, e principalmente vivenciei muito mais coisas que você. Por isso vejo e compreendo coisas que você não consegue ver ou compreender. Isso faz com que eu saiba o que é melhor para você, o que me traz, é claro, uma tremenda responsabilidade.
- Como assim?!
- Bom, sendo eu sabedor da sua necessidade, e sendo eu um homem corajoso o suficiente para não fugir dessa minha responsabilidade, era minha obrigação pular o muro de sua casa e plantar um pé de café no seu jardim. Eu simplesmente não podia me sentar e esperar, sem fazer nada, o dia em que você mesmo compreendesse essa necessidade - se é que esse dia chegará.
- De fato não compreendo, e não quero aquele pé de café por lá.
- Suas palavras só fazem me dar razão. Veja como é impossível argumentar com você; note como você resiste histericamente a aceitar que tem necessidade de um pé de café. Você se esforça para não ver. Diante disso, como é que eu poderia perder meu tempo tentando retirá-lo do seu ceticismo, da sua ignorância? A única atitude sensata é a que tomei: plantar o pé de café sem consultá-lo. Acredite, estou lhe fazendo um favor.
- Não vejo que favor pode ser esse. É só um pé de café. Talvez até me faça mal. Talvez junte bichos, sei lá.
- Essa é uma visão muito preconceituosa...
- Talvez. O fato é que eu não quero o pé de café, e o jardim é meu.
- Que recalcado você, hein?
- Recalcado? Por quê?
- Pela maneira como resiste, pela sua obstinação em não tentar sequer entender. Você pensa: "vivi a vida inteira sem um pé de café no meu jardim, e vivi bem; quem é esse idiota que vem me dizer que estou errado?". Essa possibilidade o aterroriza, você reage contra ela; não está acostumado a que apontem seus erros, que baguncem seu mundinho de certezas prontas e de conformismo burro.
- Certamente você bagunçou o meu jardim.
- E você não usa esse fato para aprender nada. Não tira dele nenhuma lição, nem evolui no rumo de um conhecimento que lhe falta. Você é um medíocre.
- Tudo bem: sou. Sou tudo o que você disse: recalcado, ressentido, ignorante e cego aos benefícios dos pés de café. Sou tudo isso e mais uma coisa: sou dono daquele maldito jardim, e não quero nenhum pé de café por lá!
- Se você não percebeu, o fato de ser o dono de um jardim não o torna um cidadão especial. Inda mais um jardinzinho feio que nem aquele, todo desbeiçado, precisando de água, de adubo...
- Não importa se está bem ou mal cuidado, se cheira bem ou fede: ele é meu. Nele se planta o que eu quiser, quando eu quiser, do jeito que eu quiser...
- Quanta arrogância.
- ...e por quem eu quiser. E eu não quero que você plante nada nele, ainda mais desse jeito, pulando o muro, invadindo a minha casa!
- Sua casa não: seu jardim.
- Que faz parte da minha casa. Você entrou sem convite. Pulou o muro. Invadiu.
- Admito que fiz isso. Mas não peço desculpas. Em vez de se concentrar na minha invasão, que é, afinal, meramente formal, você devia prestar atenção no pé de café - que é conteudístico. O pé de café, por assim dizer, é o cerne do meu argumento, ao passo que a invasão é a mera formatação do meu discurso. Entendido isso, é claro que a invasão em si não tem nenhuma importância; ao lhe atribuir valor, você o faz simplesmente para se esquivar do que realmente interessa, que é a necessidade do pé de café. É uma fuga. Ou seja: além de tudo, você é covarde.
- Lamento muito, mas não adianta tentar metaforizar a invasão: ela aconteceu, e ela é ilegal.
- Ora, ilegal. Você, pelo que estou vendo, tem vocação de capacho. Aceita tudo o que lhe dizem para aceitar! Então não vê o absurdo que representa um sistema legal que não teve a sua anuência? Você, por acaso, votou em alguma dessas leis que estão pela aí tentando enfiar pela sua goela abaixo? Posso lhe dizer categoricamente que não aceito e nem cumpro leis que não tenham passado pelo meu crivo pessoal, leis que eu não admita como boas.
- Ou seja: você só segue as leis que quer.
- Que é o que devem fazer todas as pessoas auto-conscientes. E se nossa consciência exige leis que não existem, então devemos decretá-las e promulgá-las nós mesmos, para nosso próprio uso.
- Isso é absurdo.
- Não. É uma prerrogativa dos auto-conscientes. E só deles.
- Pois mesmo que você não as aceite, existem leis que dizem minha casa é inviolável, e quem quiser entrar tem que ter a minha permissão. Vou à polícia, procuro um advogado e lhe taco um processo.
- Que adianta? Nego tudo.
- Não importa. O pé de café é uma encheção pra mim, o tribunal será uma encheção para você. Amor com amor se paga.
- Pois muito bem: então você não quer mesmo o pé de café?
- Já disse mil vezes que não.
- E também não está disposto a aceitar o fato - óbvio e cristalino, como já demonstrei - de que tem absoluta necessidade desse pé de café?
- Também já disse que não.
- E não aceita nem mesmo considerar a possibilidade de que essa recusa seja uma prova das limitações do seu intelecto e da sua sensibilidade, pra não falar da sua moral?
- Claro que não!
- Por fim, não está nem mesmo disposto a manter o pé de café a título de experiência, para ver se a proximidade dele desperta sua consciência para o fato de que ele é necessário?
- Nem mesmo isso eu quero.
- Então arranque-o, ora.
- Pois é justamente isso que vim lhe falar: que você deve ir lá arrancá-lo.
- Eu?!
- Claro. Foi você quem o plantou.
- Sua incoerência é espantosa. Não acabou de ameaçar me processar por eu ter entrado no seu jardim sem sua autorização?
- Sim, mas eu o autorizo a entrar para arrancá-lo.
- Claro. Quando lhe é conveniente, você me autoriza. Cômodo, isso, né?
- Não, pelo contrário, é um incômodo. O pé de café me incomoda, a sua conversa me incomoda, o tempo perdido me incomoda. Você plantou o pé de café, você o arranca.
- Quer saber? Não arranco, não.
- Como?
- Não arranco. Pedido negado. Se não quer aceitar meu favor, se não quer melhorar, se quer fechar os olhos para a Verdade e assumir seus recalques e ressentimentos, se não quer buscar nem compartilhar valores mais altos, é problema seu. Mas se vire sozinho com isso. Arranque-o você. Querer minha cumplicidade para a sua ignorância é o fim da picada. Querer minha contribuição para silenciar a Verdade é impossível. Por fim, querer que eu me comporte segundo as suas idéias de civilidade é ofensivo.
- Puta que me pariu. Vou quebrar a sua cara.
- Finalmente! O último argumento dos sem razão: a violência! Não falta mais nada para caracterizar a besta quadrada que você é!
 
O camarada desiste. Não dá a porrada nem argumenta mais. Vai saindo, disposto a arrancar ele mesmo o pé de café e acabar com aquela conversa enlouquecedora. Antes que dê dois passos, porém, o outro fala:
 
- E fique sabendo de mais uma coisa: não pense que vou me calar, entendeu? Não pense que vou me intimidar. Não pense que vou transigir com a sua estupidez, com suas idéias e vidinha de vaquinha de presépio. O que eu achar necessário fazer, farei. Se eu entender que devo plantar de novo um pé de café no seu jardim, plantarei. Não é um ignorante, um recalcado e um conformado como você que vai me impedir de agir como acho que devo, e de dizer o que penso!
 
O outro se retira. Enquanto abre o portão de sua casa, ainda ouve os gritos:
 
- LIBERDADE! LIBERDADE!!!!
      
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f a l a   q u e   e u   t e   e s c u t o
Envie suas coroas de flores e sugestões de lápide para [email protected]: prometemos um final menos decepcionante que o de Matrix Revolutions.
 
----- Original Message -----
From: "João Verde" <[email protected]>
Subject: Spamdown

"Lamento a fase descendente da Spamzine.

Porém, chamo a atenção que pode ser apenas isso, uma fase de um fenómeno cíclico. Tanto quanto algumas coisas dos anos 80 estão de novo na moda...

Seguramente não é fácil manter uma zine por e-mail. Porque exige um esforço considerável para seleccionar textos quando existem, ou ficar a torcer para que haja mais, quando não há contribuições.

E, bem certo, o fenómeno - que ainda não me convenceu inteiramente - dos blogs é um concorrente de peso. Para quê escrever para a spam se posso escrever no meu próprio site, perguntarão muitas pessoas, estou certo disso.

Penso que a Spam não precisa despedir-se. Pode apenas desvanecer em periodicidade, mas sempre ir surgindo de vez em quando.

Cumprimentos pelo bom trabalho e vamo-nos vendo sempre em linha.

jcv ::
www.origamis.net"
 
inagaki responde: caríssimo João, felizmente contribuições nunca nos faltaram. Aliás, a caixa postal do Spam Zine possui material para inúmeras edições mais. O problema, como sempre, é a falta de tempo para ler, editar, formatar textos e entrar em contato com tanta gente. Atividades não-profissionais padecem disso: ficam sempre em segundo plano. O tal "fenômeno" dos blogs estourou, dentre outros motivos, devido à quantidade represada de textos que mantiveram-se inéditos até hoje devido à falta de canais que os publiquem. Outro ponto: por mais que me digam o contrário, considero que todo editor é uma espécie de ditador que acaba por impor o que merece ou não ser publicado. E, como em toda atividade subjetiva, está sujeita a erros crassos: lembro de Fernando Pessoa tendo a sua "Mensagem" classificada em segundo lugar no concurso literário promovido pelo Secretariado de Propaganda Nacional de Portugal, ou de Guimarães Rosa vendo o seu volume de contos "Sagarana" derrotado em um concurso literário que contava com jurados do porte de um Graciliano Ramos, e penso nas injustiças que todo editor certamente comete. Mas enfim: tergiverso, tergiverso. Caro João, aproveito a ocasião para agradecer-lhe pelas excelentes contribuições que você enviou ao Spam Zine, e também por ter sido nosso "correspondente especial" em Lisboa. Um forte amplexo, e até o próximo projeto na Web!
 
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----- Original Message -----
From: "Paola Achê" <[email protected]>
Subject: Re: [S p a m Z i n e] - edição 092 (quem é vivo sempre desaparece)

"Meus caros do Spam Zine: esse papo de blog X zine já está demais. Não é possível uma convivência cordial entre os dois? Público tem pra tudo! Acho mesmo é que vcs estão querendo um confete, ou melhor, devem ter arrumado alguma coisa melhor pra fazer e vem com essa conversa pra boi dormir. Só uma coisa: me poupem!!! Estarei aguardando o próximo Spam Zine, que não será o último (senão arrebento vcs!).

Beijão pra todos que fazem esse belo trabalho
Paola
"
 
inagaki responde: menos mal que este é o penúltimo Spam Zine, escapei de ser arrebentado desta vez. Quanto à parte de querer confete, isso não é verdade. Mas, se você trocar "confete" por "depósitos em minha conta", aí sim chegaremos a um consenso. :) Beijão procê também, Paola!
 
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----- Original Message -----
From: Mini Estúdio <[email protected]>
Subject: Jingle - Quero ver você não chorar

"Salve!...

Depois de tanta gente já ter usado este Jingle de final de ano, agora um cliente nosso tá a fim, e quer porque quer usa-lo também em sua campanha publicitária. Só que para isso tem que se pagar os direitos autorais. Pergunto: PRA QUEM ?... Por acaso, os amigos sabem do paradeiro do autor deste material ?... Ou quem detém os direitos desta obra ?

Se usarmos este jingle sem que os direitos sejam pagos, dá um processo fenomenal. E é o que queremos evitar.

Agradeço se puderem me dar qualquer informação.

Esdras A. Felício -
www.miniestudio.com.br"
 
inagaki não responde e pede ajuda aos universitários: ahn... alguém aí?
  
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c r é d i t o s   f i n a i s

directed by:
Alexandre Inagaki > http://inagaki.blogger.com.br
Ricardo Sabbag > http://caluniasocial.blogger.com.br
Orlando Tosetto Junior > http://consumointerno.blogger.com.br
José Vicente > http://www.exquisite.com.br
Suzi Hong > http://suzihong.blogger.com.br
Ione Yoshida de Moraes > http://www.didentro.he.com.br
 
cast (in alphabetic order):
André Machado > http://andremachado.blogspot.com
Eliana Pougy > [email protected]
Ernesto Diniz > [email protected]
Fábio Fernandes > http://zero-absoluto.blogspot.com
Javier Tornadijo Arce > [email protected]
Marcelo Barbão > [email protected]
Ricardo Alfaya > [email protected]
Sara Fazib > [email protected]
Tatiana Bianconcini > [email protected]
 
special guests:
Índigo Girl > [email protected]
Paulo Polzonoff Jr. > [email protected]
      
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Spam Zine - fanzine por e-mail
 
conheça, leia, assine:
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declarações de amor, ódio e/ou indiferença passional:
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p. s.
 
orlando: à guisa de explicação: não explico mais nada.
 
inagaki: uma das coisas que mais sentirei falta quando o SZ subir no telhado é ver os e-mails com pedidos de assinaturas e encontrar no campo "como conheceu o Spam Zine" respostas como:
 
- Pesquisa no Google com as palavras cheiro & livros.
- Digitei Belle and sebastian no Cadê e apareceu SpamZine na busca... Estranho, né?!
- Do "Pão com manteiga na chapa" cheguei até o "Vai trabalhar vagabundo", de lá cheguei até o "Genérico incolor", de lá vim parar aqui.
- Fui intimado pela minha namorada.
- Pelo gostoso do Mateus.
- Fuçando em algum lugar. Não consigo parar de ler - Nicole Lima me angustia e Ian Black me diverte...
- Recebi um texto de uma amiga que me deixou puto.
- Eu estava procurando informações sobre spams, e olhem só o que eu achei!
- Através do ócio. Estava eu no weblog do Samurai do Amor e cliquei num link que me trouxe aqui. Puro ócio.
- Uma amiga me mandou um e-mail daqueles de recomendação, bem chatos por sinal, eu vim aqui. E como estou de férias e não tenho nada de mais interessante pra fazer da vida, resolvi assinar.
- Estava procurando materiais sobre bonecas de pano (coppélia), entrei num blog que tinha um link para o SZ.
- Numa visão.
 
inagaki: se você está recebendo este Spam Zine no domingo, dia 16, saiba que esta edição circulou originalmente na semana passada, mas devido a problemas com meu "querido" provedor só agora consegui despachar o SZ ao restante dos assinantes (dois terços deles, para ser exato) que ficaram sem seu número. É duro, mas não é mole não...