O camarada bate na porta
do vizinho.
- Pois não?
- Queria conversar com
você.
- Estou ouvindo.
- Você hoje pulou o
muro do meu quintal.
- Ah, sim, pulei.
- E plantou um pé de
café no meu jardim.
- Plantei.
- Por que você fez isso?
- Porque você precisa
muito de um pé de café no seu jardim.
- Eu preciso?
- Obviamente. Não havia
lá nenhum pé de café!
- Claro que não havia.
Eu nunca plantei.
- Foi o que eu percebi.
Por isso plantei um.
- E pra que diabo eu
ia querer um pé de café no meu jardim?
- Por que é muito necessário.
- Muito necessário?
Por quê?
O outro ri.
- Veja só: o simples
fato de ter feito essa pergunta mostra que você não está preparado para compreender
a necessidade de se ter um pé de café no jardim.
- De fato, não compreendo.
- Exatamente. Agora
veja: eu compreendo claramente essa necessidade. Minha visão dessas
coisas é penetrante; estudei muito, li muito mais do que você, sei muitas
coisas, e principalmente vivenciei muito mais coisas que você. Por
isso vejo e compreendo coisas que você não consegue ver ou compreender. Isso
faz com que eu saiba o que é melhor para você, o que me traz, é claro, uma
tremenda responsabilidade.
- Como assim?!
- Bom, sendo eu sabedor
da sua necessidade, e sendo eu um homem corajoso o suficiente para não fugir
dessa minha responsabilidade, era minha obrigação pular o muro de sua casa
e plantar um pé de café no seu jardim. Eu simplesmente não podia me sentar
e esperar, sem fazer nada, o dia em que você mesmo compreendesse essa necessidade
- se é que esse dia chegará.
- De fato não compreendo,
e não quero aquele pé de café por lá.
- Suas palavras só fazem
me dar razão. Veja como é impossível argumentar com você; note como você resiste
histericamente a aceitar que tem necessidade de um pé de café. Você se esforça
para não ver. Diante disso, como é que eu poderia perder meu tempo tentando
retirá-lo do seu ceticismo, da sua ignorância? A única atitude sensata é a
que tomei: plantar o pé de café sem consultá-lo. Acredite, estou lhe fazendo
um favor.
- Não vejo que favor
pode ser esse. É só um pé de café. Talvez até me faça mal. Talvez junte bichos,
sei lá.
- Essa é uma visão muito
preconceituosa...
- Talvez. O fato é que
eu não quero o pé de café, e o jardim é meu.
- Que recalcado você,
hein?
- Recalcado? Por quê?
- Pela maneira como
resiste, pela sua obstinação em não tentar sequer entender. Você pensa: "vivi
a vida inteira sem um pé de café no meu jardim, e vivi bem; quem é esse idiota
que vem me dizer que estou errado?". Essa possibilidade o aterroriza, você
reage contra ela; não está acostumado a que apontem seus erros, que baguncem
seu mundinho de certezas prontas e de conformismo burro.
- Certamente você bagunçou
o meu jardim.
- E você não usa esse
fato para aprender nada. Não tira dele nenhuma lição, nem evolui no rumo de
um conhecimento que lhe falta. Você é um medíocre.
- Tudo bem: sou. Sou
tudo o que você disse: recalcado, ressentido, ignorante e cego aos benefícios
dos pés de café. Sou tudo isso e mais uma coisa: sou dono daquele maldito
jardim, e não quero nenhum pé de café por lá!
- Se você não percebeu,
o fato de ser o dono de um jardim não o torna um cidadão especial. Inda mais
um jardinzinho feio que nem aquele, todo desbeiçado, precisando de água, de
adubo...
- Não importa se está
bem ou mal cuidado, se cheira bem ou fede: ele é meu. Nele se planta o que
eu quiser, quando eu quiser, do jeito que eu quiser...
- Quanta arrogância.
- ...e por quem eu quiser.
E eu não quero que você plante nada nele, ainda mais desse jeito, pulando
o muro, invadindo a minha casa!
- Sua casa não: seu
jardim.
- Que faz parte da minha
casa. Você entrou sem convite. Pulou o muro. Invadiu.
- Admito que fiz isso.
Mas não peço desculpas. Em vez de se concentrar na minha invasão, que é, afinal,
meramente formal, você devia prestar atenção no pé de café - que é conteudístico.
O pé de café, por assim dizer, é o cerne do meu argumento, ao passo que a
invasão é a mera formatação do meu discurso. Entendido isso, é claro que a
invasão em si não tem nenhuma importância; ao lhe atribuir valor, você o faz
simplesmente para se esquivar do que realmente interessa, que é a necessidade
do pé de café. É uma fuga. Ou seja: além de tudo, você é covarde.
- Lamento muito, mas
não adianta tentar metaforizar a invasão: ela aconteceu, e ela é ilegal.
- Ora, ilegal. Você,
pelo que estou vendo, tem vocação de capacho. Aceita tudo o que lhe dizem
para aceitar! Então não vê o absurdo que representa um sistema legal que não
teve a sua anuência? Você, por acaso, votou em alguma dessas leis que estão
pela aí tentando enfiar pela sua goela abaixo? Posso lhe dizer categoricamente
que não aceito e nem cumpro leis que não tenham passado pelo meu crivo
pessoal, leis que eu não admita como boas.
- Ou seja: você só segue
as leis que quer.
- Que é o que devem
fazer todas as pessoas auto-conscientes. E se nossa consciência exige leis
que não existem, então devemos decretá-las e promulgá-las nós mesmos, para
nosso próprio uso.
- Isso é absurdo.
- Não. É uma prerrogativa
dos auto-conscientes. E só deles.
- Pois mesmo que você
não as aceite, existem leis que dizem minha casa é inviolável, e quem quiser
entrar tem que ter a minha permissão. Vou à polícia, procuro um advogado e
lhe taco um processo.
- Que adianta? Nego
tudo.
- Não importa. O pé
de café é uma encheção pra mim, o tribunal será uma encheção para você. Amor
com amor se paga.
- Pois muito bem: então
você não quer mesmo o pé de café?
- Já disse mil vezes
que não.
- E também não está
disposto a aceitar o fato - óbvio e cristalino, como já demonstrei - de que
tem absoluta necessidade desse pé de café?
- Também já disse que
não.
- E não aceita nem mesmo
considerar a possibilidade de que essa recusa seja uma prova das limitações
do seu intelecto e da sua sensibilidade, pra não falar da sua moral?
- Claro que não!
- Por fim, não está
nem mesmo disposto a manter o pé de café a título de experiência, para ver
se a proximidade dele desperta sua consciência para o fato de que ele é necessário?
- Nem mesmo isso eu
quero.
- Então arranque-o,
ora.
- Pois é justamente
isso que vim lhe falar: que você deve ir lá arrancá-lo.
- Eu?!
- Claro. Foi você quem
o plantou.
- Sua incoerência é
espantosa. Não acabou de ameaçar me processar por eu ter entrado no seu jardim
sem sua autorização?
- Sim, mas eu o autorizo
a entrar para arrancá-lo.
- Claro. Quando lhe
é conveniente, você me autoriza. Cômodo, isso, né?
- Não, pelo contrário,
é um incômodo. O pé de café me incomoda, a sua conversa me incomoda, o tempo
perdido me incomoda. Você plantou o pé de café, você o arranca.
- Quer saber? Não arranco,
não.
- Como?
- Não arranco. Pedido
negado. Se não quer aceitar meu favor, se não quer melhorar, se quer fechar
os olhos para a Verdade e assumir seus recalques e ressentimentos, se não
quer buscar nem compartilhar valores mais altos, é problema seu. Mas se vire
sozinho com isso. Arranque-o você. Querer minha cumplicidade para a sua ignorância
é o fim da picada. Querer minha contribuição para silenciar a Verdade é impossível.
Por fim, querer que eu me comporte segundo as suas idéias de civilidade é
ofensivo.
- Puta que me pariu.
Vou quebrar a sua cara.
- Finalmente! O último
argumento dos sem razão: a violência! Não falta mais nada para caracterizar
a besta quadrada que você é!
O camarada desiste.
Não dá a porrada nem argumenta mais. Vai saindo, disposto a arrancar ele mesmo
o pé de café e acabar com aquela conversa enlouquecedora. Antes que dê dois
passos, porém, o outro fala:
- E fique sabendo de
mais uma coisa: não pense que vou me calar, entendeu? Não pense que vou me
intimidar. Não pense que vou transigir com a sua estupidez, com suas idéias
e vidinha de vaquinha de presépio. O que eu achar necessário fazer, farei.
Se eu entender que devo plantar de novo um pé de café no seu jardim, plantarei.
Não é um ignorante, um recalcado e um conformado como você que vai me impedir
de agir como acho que devo, e de dizer o que penso!
O outro se retira. Enquanto
abre o portão de sua casa, ainda ouve os gritos:
- LIBERDADE! LIBERDADE!!!!