A
senhora está se sentindo bem? Está se sentindo bem?
Ai meu Deus, ai meu Deus.
Quer vomitar mais?
Não, chega. Eu bebi muito, moço. Estou vendo tudo torto.
Quer que chame um médico? Se quiser, eu ligo lá do balcão.
Não precisa. Eu só quero uma água mineral e a conta.
Tudo bem.
Senta aí um pouco, eu tenho que desabafar.
?
Senta aí, por favor. Conversa comigo.
Eu sou só o garçom. Estou de serviço.
Só acontece coisa ruim comigo, meu Deus do céu. Mas vai dar tudo certo,
eu sei que dessa vez vai.
Vai dar sim.
Eu acabo de vir do hospital, eu sou enfermeira. Não sei por onde começar,
senta.
Não posso, não posso.
Se quiser sentar, senta, não tem ninguém aqui, não vão te chamar para
atender, eu sei que o movimento tá parado, por isso entrei aqui para
encher a cara e deu nisso... Ai meu Deus, eu quero morrer mas é tanta
coisa, tanta coisa que não dá tempo, bastou aparecer aquela pin-up
e mudou minha vida toda.
Pin-up?
É, ela chegou no hospital que eu trabalho, que atende presidiário
e gente enrolada com a polícia, tinha entrado embaixo de uma carreta
com o namorado, fugindo de uma viatura com uma mala cheia de pedra
de crack e três defuntos dentro de sacos plásticos no porta-mala.
Ela e o rapaz se esfolaram inteiros, principalmente ela que ferrou
com as pernas porque ficou presa na lataria e foi parar na enfermaria
que eu tomava conta. Estava aplicando uma injeção nela quando me contou
do acidente e que seu namorado estava na delegacia aguardando a audiência
que decidia se ia para um manicômio judiciário ou se ia para o xadrez
mesmo, o cara era meio doido, ela chamava ele de porralouca, disse
que alucinava com tudo que é de química que tem por aí, credo. Me
arrepia só de lembrar, olha só meu braço. E daí ela passou uma semana
me infernizando quando eu passava lá no seu leito para que fosse visitá-lo,
levar um bilhete para ele na cadeia, esperando a lei funcionar. Ela
era tão bonitinha, tinha um cabelo lindo, enorme e escorrido, que
dividia no meio e fazia uma trança de cada lado, bem magrinha, e estava
com as pernas cheias de ferro, toda esfolada, teve fratura exposta,
perda de musculatura, nunca mais ia andar direito, só com muleta e
prótese, num tinha fisioterapia no mundo que desse jeito, já vi muito
caso assim até pior, com homem feito e ela era só uma menina que quando
saísse de lá ia para reformatório de menores. E ficou me amolando
para levar o bilhete, que o amava, que queria saber como ele estava,
daí eu fiquei com dó, puxa vida, se fosse comigo eu também ficaria
desesperada e ela era uma boa pessoa apesar de ser desajustada e fui
lá na delegacia levar.
Sei.
Daí toda semana ela começou a pedir para eu levar para ele um bilhete
e eu ia, depois começou a pedir para eu passar lá mais de uma vez
por semana e eu continuava indo. Depois de bem uns dois meses com
ela aleijada na enfermaria, transferiram o rapaz para um manicômio
dizendo que ele era um psicopata, sociopata e mais um monte de termos
psiquiátricos, e ela achou melhor do que se ele fosse para o xilindró
mesmo, porque pelo menos corria menos risco de se lascar, mas a barra
em hospício não é menos carregada não que eu sei, fui trabalhar lá
também depois de um tempo. E ela sempre mandava bilhetinho para ele,
falando de amor, que iam fugir juntos, que ela estava se esforçando
para melhorar das pernas e que ia ficar com um monte de pino de metal
mas que ficariam
juntos até o fim, e a besta aqui de cúmplice, eu sou idiota, idiota.
Minha mãe vivia dizendo que eu era besta e amolecia por qualquer coisa
e que eu falo demais também, que devia fechar a boca mas é mentira,
eu só converso o necessário, abertamente como eu estou fazendo aqui
agora com o senhor, moço. E teve um dia, um bom tempo depois dele
ter ido para o hospício, que eu fui levar os remédios dela e ela estava
chorando, gritou comigo, virou a bandeja na minha cara e me chutou
com aqueles ferros, me chamando de piranha, mentirosa, você é uma
vaca safada, desse jeito, vieram me dizer hoje que ele tentou fugir
semana passada, levou tiro e está na CTI dessa porra desse hospital,
que história é essa, eu disse fica calma, deixa eu te contar, fica
calma, e ela se deitou chorando, ficava o tempo todo vestida com aqueles
shortinhos que deixam a polpa da bunda de fora, pouco acima dos ferros
das pernas, e com uma camiseta regata minúscula com a capa de um disco
dos Beatles, acho que é Sgt. Peppers alguma coisa, que nem uma pin-up,
por isso que eu chamo ela de pin-up, parecia uma.
Certo.
Quando
ela tomou o remédio e parou de soluçar, abri logo o jogo e disse desde
que fui aquele dia na delegacia estou apaixonada pelo teu namorado,
perdidamente apaixonada, isso só aconteceu comigo uma vez, mas faz
tempo e ele me deixou e num sinto mais nada por aquele safado, eu
amo teu namorado, falei na cara dela, que arregalou os olhos e ficou
calada, com uma olheiras de anemia horrorosa. Aqueles teus bilhetinhos
tão tudo guardado lá em casa, não entreguei nem um, nem o primeiro,
pois fiquei gamada logo de cara e mudei os planos. Ele nem queria
conversa, mas depois de me ver umas cinco vezes, começou a mudar de
idéia e eu deixei ele pegar nos meus peitos e não resistiu, falei
para ele se fazer de doido que ia para o manicômio e eu dava um jeito
de ir trabalhar lá, também. Ela continuou calada, parada feito morta,
se tivesse de olho fechado eu ia jurar que tinha morrido, Deus me
livre. Continuei, foi difícil conseguir transferência para o hospício
mas eu dei um jeito, sou capaz de tudo, de tudo, assim que ele foi
para lá, eu já estava trabalhando nas enfermarias, limpando cocô de
doido e dando papa para velho gagá, eu odiava esse serviço mas faria
aquilo só por causa dele. Quando veio, ficou no quarto com mais sete
e era o único que tinha sanidade, ele não era nem doido nem psicopata
coisa nenhuma, só era meio esquentado, e sempre que eu ia lá no quarto
dele a gente se tocava e às vezes a noite quando eu conseguia trocar
o plantão a gente fodia a noite toda, no escuro no meio dos doidos.
Ela começou a fechar a cara e a encher os olhos de lágrimas, quase
fiquei com dó porque ela era uma lascada aleijada, puxa vida. Ia andar
de muleta o resto da vida, se arrastando com aquelas próteses medonhas
de plástico, com ferro furando a perna torta e desmantelada. E depois,
desgraçada, ela gritava, e essa estória de que ele fugiu, me fala,
vai falando, eu olhei para a cara dela, bem no olho, falo na cara
mesmo, ele não queria esquecer de você e disse para mim uma noite
depois da gente transar que ia tentar fugir para ter notícias suas,
que estava estranhando, mas também falou que estava gostando de mim
mas que tinha que se resolver com você primeiro. Fiquei desconfiada
e comecei a aplicar amplictil nele, segurei na cama assim por umas
duas semanas, mesmo que estivesse dopado, mas pelo menos num fugia
ou fazia besteira. Quando parei de aplicar, ele brigou comigo, me
xingou de sacana escrota, e disse que ia fugir aquela noite e que
nunca mais queria ver minha cara, chorei o resto do dia e quando ele
foi fugir, se preparando para pular o muro com arame farpado, chamei
os guardas, desceram bala nele, enquanto eu gritava, pelo amor de
Deus, num pode morrer se não eu vou junto, nossa Senhora.
E aí?
E aí que levou quatro tiros de trinta e oito, dois nas costas, um
no pescoço e outro na barriga, mas era macho mesmo, não morreu não.
Foi para o hospital onde ela estava, quase batendo as botas, fizeram
uma laparotomia, nefrectomia e colostomia nele, foi para a CTI em
estado crítico, mas Deus é forte que eu sei, vai sair daquela.
Não entendi nada do que a senhora disse.
Como não entendeu? Ah, laparotomia é uma cirurgia que abre a barriga
da gente, um corte que vai de abaixo do esterno até a virilha, para
ver o estrago e reparar, tinha alça de intestino perfurada, fígado
rompido, coágulos, ia fazer abscesso e infecção. Nefrectomia é que
ele perdeu o rim direito por causa dos tiros nas costas e a colostomia
foi por causa das balas também, abriram o intestino dele direto com
a parede do abdome, daí ele fica fazendo cocô por uma bolsa de plástico
pregada de lado. Sofrendo muito, mas ele é forte. Quando falei para
ela do estado dele, se levantou, pulou em cima de mim com ferro e
tudo, precisou meio mundo de gente para tirá-la, doparam e queriam
saber o que tinha acontecido mas eu enrolei. Olha só meus braços,
estão tudo lanhados daquela vaca.
Nossa...
Quando
foi hoje, eu peguei a arma que tenho em casa, que era do meu pai,
e levei carregada para o hospital, ia descarregar na cabeça dela,
que se danasse o resto todo, eu só quero saber dele. Mulher apaixonada
é meio doida mesmo, eu tinha uma vida normal e ele apareceu, mudou
tudo. Cheguei lá, mas ela já estava fora dos efeitos do medicamento,
falando nada com nada, parecendo uma doida e fiquei com pena de atirar,
apesar de ter puxado a arma e colado o cano na testa dela. Quando
vi, a piranha tomou a arma de mim, tomou a arma de mim na moral, rápida
feito cobra, deu uma coronhada na minha nuca e eu apaguei.
Meu
Deus do céu.
Estou
com o galo doendo até agora. Quando acordei, com as meninas do posto
me abanando, disseram que os guardas derrubaram ela lá no corredor
mesmo, quando se arrastava com os ferros na perna e a muleta para
chegar na CTI. Deu uns tiros para cima, num chegou a ferir ninguém,
mas levou umas bolachas na cara para deixar de ser besta, além de
terem arrancado sem querer uma das próteses porque num parava de espernear.
Levou injeção também, foi transferida na hora para o reformatório,
mas talvez tenha que cortar as duas pernas dela por causa das pancadas,
se bem que eu acho que é para ela num fugir. Fui olhar meu amor na
CTI, coitadinho, tem que ficar dormindo o tempo todo se não fica gritando
e chorando inconformado, mas eu entendo, é uma situação difícil e
vamos sair dessa juntos. Arrumei serviço no setor para cuidar dele,
e quando me vê fica desesperado, cospe em mim, mas eu sei que me ama
e que cedo ou tarde vai entender isso, cedo ou tarde vai entender
isso, não é possível.
Ainda
quer a água e a conta?