o medo da
morte
orlando tosetto júnior [email protected]
A lenta agonia
cancerosa de tia Guiomar impressionou tia Ermínia, que era a mais velha das
duas. A peregrinação baratinada das duas irmãs solteironas por cirurgiões
espíritas, massagistas, pastores evangélicos, macumbeiros, Seicho-no-Iê e
terapeutas holísticos vários fez com que a tia Ermínia conseguisse o prodígio
que é manter, ao mesmo tempo, a fé mais fervorosa e a desconfiança mais fria.
Siamesamente ligadas, incões, fé e desconfiança aumentavam juntas a cada novo
fracasso no tratamento de tia Guiomar.
Nada sabemos sobre os deuses, suas
pressas, seus ritmos, seus critérios. Insondáveis, a uns dão tudo, e com outros
não falam. Com a tia, escolheram o silêncio. A morte de tia Guiomar parecia a
ela um adversário de tribunal, que podia ser vencido com um bom advogado. Quando
ela morreu, tia Ermínia passou a achar que seria vítima de uma revanche da
morte. E tinha razão.
No segundo ano após a morte de tia Guiomar, tia
Ermínia já era uma sombra. Pouco soubemos de suas dores; minha mãe não quis
ficar com ela em nossa casa. Sabemos, intuímos que sofreu muito. Seu silêncio,
surpreendente (era mulher de muitos escândalos), não era a serenidade do
morituri; era antes pungente rendição.
O périplo tinha sido retomado. Ela
tinha ido novamente atrás dos emissários, dos canais, dos porta-vozes do
insondável. Mas, embora fizesse tudo o que lhe fosse pedido ou ordenado, ia por
ir - como quem ronda uma porta por tanto tempo que acaba esquecendo o que espera
sair, transformando em hábito e neurose o que um dia foi esperança.
Os
deuses não gostam de autômatos. A tia morreu num novembro quente e dilatado - um
mês em que tudo parecia estalar. Mês de muitas moscas e de verde acinzentado.
Coube a mim segurar uma das alças do caixão. Ao lado dos meus tios e primos, eu
esperava que uma sensação de clã me invadisse. Esperei em vão - éramos todos
meras pessoas, isoladas, mergulhadas em mundos e pensamentos inacessíveis, de
que só poderíamos dar uma tênue idéia aos de fora. Idéia que nem sempre queremos
dar.
As famílias grandes têm a curiosa virtude de não nos desacostumar da
morte. Não houve, na minha infância, ano em que não morresse parente. Às vezes
iam dois no mesmo ano, ou até no mesmo semestre. Sabíamos de cor o caminho do
cemitério, tínhamos roupas prontas, palavras decoradas e tom de voz ensaiado.
Uma ou outra vez um desespero legítimo nos espantava, quase
constrangia.
Vivíamos com a idéia de morte presente. Não é a mesma idéia
de morte iminente que, creio eu, se tem nas guerras, mas sim a noção precisa de
que a morte existe, e de que tudo, depois dela, continua. Todas as gerações se
acham perto do final dos tempos porque inconscientemente não acreditam que o
mundo sobreviverá às suas mortes. Acham que, com o apagar das suas consciências,
apagar-se-á também o mundo. Viver rodeado de mortes, se não elimina, pelo menos
atenua essa impressão. Víamos pessoas morrendo e víamos o mundo continuando; e
embora secretamente acreditássemos que o mundo continuava porque nós é que
estávamos vivos, a desconfiança de que isso se dava à nossa revelia já estava
dentro de nós. Como os anos, essa convicção só aumentaria, trazendo sozinha
metade do fel que, somado ao das outras inevitáveis decepções, encheria a taça
da nossa amargura.
A tia tinha tentado permanecer aqui. Mesmo que não
tivesse conscientemente percebido sua derrota, tinha sido mais honesta do que
todos os que, aceitando a morte na aparência, a renegávamos por trás, inventando
mundos onde ela não nos pudesse atingir. Quando se torna inelutável a conclusão
de que o mundo sobreviverá a nós, torna-se necessário pensar e acreditar que nós
é que sobreviveremos a ele. Transcendendo-o, humilhando-o, tornando-o
subitamente inferior a nós, acessório, ferramental. Diremos que ele nos serviu -
ou que nos serve - sem admitir a aterradora possibilidade de que todos, nós e
ele, sejamos mero acaso, inexplicáveis e sem sentido como todos os acasos. Se
for preciso, renegaremos a própria idéia de acaso, tecendo entre todas as coisas
e eventos a rede que nos deterá em nossa queda rumo ao nada.
Por detrás
de todos os seus inevitáveis defeitos e disfarces, a tia teve o raro mérito de
acreditar mais no mundo do que em si mesma.
NOTA DO EDITOR: a continuação deste texto
segue no final desta edição.
>>>
bruxas
Aqueles olhos. E aqueles lábios.
E como ela fodia bem.
Depois, quando
tudo tivesse passado, você chegaria à conclusão de que foi justamente por aí que
ela te enfeitiçou. Pela buceta.
Sejamos francos: você gostava de exibir
aquela mulher. Gostava de se sentir amo e senhor de uma criatura bonita e
sensual, que atraía o desejo dos homens e a inveja das mulheres. E ela era só
sua.
E você era só dela.
No começo tudo bem, era o que você queria. Até
começarem as crises de ciúmes.
Que eram apenas um pretexto. Porque tudo era
motivo para briga.
Era uma relação sadomasoca, mais do que você gostaria de
admitir. Porque não se restringia só à cama.
E acabou como sempre acaba esse
tipo de relação. Na porrada. Você não se orgulha disso.
Até hoje, quando você
saiu com os amigos que a conheceram, ocasionalmente algum deles faz a pergunta:
por onde anda ela?
E a mesa faz um minuto de silêncio.
Você não tem a
menor idéia de onde anda aquela mulher que te enfeitiçou.
Mas que ela existe,
existe.
>>>
r á p i d a
s r a s t e i r a s
"Um jornalista do Peru, onde 'Presença de Anita'
estava fazendo muito sucesso, me perguntou como era namorar aquela musa, a Mel
Lisboa. Eu disse que é ótimo e que ela é só do meu peru”.
(CACO CIOCLER, o feliz namorado de Mel
Lisboa, flagrado em momento de rara elegância.)
"Só com trabalho, ocupação, e oportunidade a violência pode
acabar, e muito amor".
(GISLAINE RODRIGUES FERREIRA, eleita Miss
Brasil neste último sábado, ao responder à pergunta "o que você faria para
resolver o problema da violência?". Anotou essa, Anthony
Garotinho?)
"Por alguma razão, nada me parece tão lúbrico e devasso quanto
anões besuntados numa orgia. Mas não falo por experiência".
(LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO, o criador do
Analista de Bagé e da Velhinha de Taubaté, e escritor de imaginação
mui pródiga, c.q.d.)
>>>
para coral e
orquestra
espelho oval, moldura barroca. teatros antigos proporcionam certos luxos
cobertos de veludo vermelho, cheio de arremates dourados fora de moda. teatros
são como aquelas caixinhas onde guardamos as jóias mais caras: caixinhas
antigas, herdadas de uma avó vinda de um tempo mais antigo ainda, e forradas
para não arranhar as pedrarias.
cabelos impecavelmente penteados, mas terrivelmente ondulados. acerta mais
uma vez a gravata e admira o perfil refletido no espelho. já não é mais tão
magro, mas os ombros ainda são imbatívelmente largos. um vallet não veste um
terno melhor do que ele. abotoaduras de ouro. kölnishwasser. hora do tremor das
mãos enormes cessar.
primeiro sinal. veste a casaca. segundo sinal. a última olhada no relógio
de bolso que herdou do pai almirante, e segue pelo corredor. terceiro sinal. o
homem está na porta do fosso. um barulho pouco de roldanas e cordas abre as
cortinas, e ele ouve muitos aplausos. pode apostar que o teatro está cheio. não
quer ter certeza.
adentra o fosso de cabeça baixa, mesmo sendo recebido de pé. rebrilhos de
metais, cheiro de madeiras enceradas. roupas negras. levanta os olhos uma única
vez, para estender a mão à sua spalla. tem vontade de sorrir ao vê-la de
vermelho. ela sempre escolhe uma cor que combine com a noite. faz calor.
abre os braços, respira fundo. silêncio absoluto, rasgado pelo primeiro
acorde. o primeiro acorde é sempre o mais difícil, porque é ele que desperta os
demais do seu sono dentro das caixas, dos tubos, dos sopros. é o primeiro acorde
que sincroniza e desabotoa a enchente da sinfonia, dos metais, dos trovões
ocasionais da percussão. ele tem os braços e o nariz do pai almirante, do pai
navegador.
os primeiros movimentos são tranquilos, com as pontas dos dedos, até que a
música lhe invada os poros, entorte a gravata e revolte os cabelos, como as
amantes fazem em noites de fúria e amor. até que a primeira gota de suor escorra
e manche o papel das partituras na sua frente. até que ele atire longe o
pregador que segura as páginas e reja de memória, como aprendeu a fazer na
escola, na Alemanha. até que tudo acabe em aplausos, e ele saia do fosso pela
mesma porta que entrou, recebendo os cumprimentos da orquestra. sempre de
costas.
não lhe disseram nunca por que teria que reger sempre de costas. alguns
tinham a curiosidade de olhar para qualquer porção de público que se revelasse
fora do fosso, e de reger fora dali, para poder admirar a platéia. ele não. na
verdade, ele escolheu as sinfonias pelo seu anonimato. a sinfonia é a música só,
transcendendo a orquestra, o fosso, o teatro, a noite. a sinfonia é do tamanho
da escuridão da noite.
e ele sempre era o último a deixar o teatro. sempre pela porta dos fundos.
sempre batendo o tacão do sapato nas pedras da calçada, para marcar o ritmo da
música que tocava dentro da alma dele... e ele tinha os olhos grandes e
lacrimosos da mãe, que sempre lhe fazia dormir com uma vozinha delicada de
soprano ligeiro. sempre com aquela música que ele cantava baixinho, a caminho de
casa:
- Freude, schöner Götterfunken, Tochter aus Elysium, Wir betreten
feuertrunken. Himmlische, dein Heiligtum! Deine Zauber binden wieder Was die
Mode streng geteilt; Alle Menschen werden Brüder Wo dein sanfter Flügel
weilt...
(com um thanx especial ao Sérgio Bermudes, do No
mínimo)...
>>>
minicontos do desconforto
- 25 -
Seus olhos lacrimejavam há dois dias e ele não
conseguia entender por quê. Então a viu encostada no poste do ponto de ônibus. E
compreendeu que suas córneas tinham profetizado sozinhas que ele encontraria a
Beleza, a verdadeira e única, e por isso choravam sem parar há quarenta e oito
horas, antecipando o choque.
- 26 -
Sua mulher o esbofeteou quando entrou em casa às
quatro da manhã. Durante vinte anos ela nem se dignara acordar, jamais procurara
marcas de batom onde quer que fosse, nunca ligou para os roncos que aumentavam
com a bebedeira. Só que dessa vez ele chegara em casa totalmente sóbrio,
composto e feliz, assobiando.
O tabefe foi compreendido e ele nunca mais recusou uma série de dez
saideiras.
- 27 -
Afrodite e Atena passeavam pelo jardim de nuvens topiadas do Olimpo. Como
eram amigas há tempos (o incidente com Páris já fora esquecido), a primeira
perguntou à segunda, com franqueza, o porquê de sua feiúra.
-- A sabedoria não faz mais radiantes os rostos dos homens -- foi a
resposta. -- Quando mais sabem, mais eles descobrem as chagas de suas almas;
então suas testas se enrugam, os cabelos caem, as bocas murcham e os olhos
perdem o viço. E eu sou a soma dessas criaturas infelizes.
>>>
p e r g u n t a
r n ã o o f e n d e
"Por que as músicas grudam na cabeça das pessoas?"
"Acho que porque música é algo que toca
nosso íntimo - tem a capacidade de mexer conosco por inteiro - nos remetendo a
bons e a maus (por que não?) momentos.
Mexe com nossa natureza
tríplice: nosso corpo (mãos, pés, boca, olhos...); nossa mente, tomando conta
dos nossos pensamentos (às vezes uma música linda que não escutávamos fazia
tempo, outras aquele refrão daquela música horrível que toca toda hora no
rádio); nosso espírito (ora nos acalmando, ora nos enraivecendo, ora nos fazendo
voar, ora nos levando a outros lugares, ora nos fazendo firmes na terra, ora nos
deixando felizes, ora nos deixando tristes).
Qual de nós nunca
escutou uma música que traduzisse exatamente o que sentia? Ou lembrou de algo?
Ou de alguém? Muitas vezes mesmo querendo não lembrar.
E por isso
sempre damos uma resposta. Mesmo que seja com aquele cantarolar sem jeito, com
batidas numa mesa ou num outro objeto qualquer...".
"É como cola de adesivo vagabundo: precisa de muito trabalho e
produtos especiais pra remover. E, com tudo isso, sempre fica um resquício a
encher o saco...".
"Porque elas são fabricadas com Super Bonder, e Super Bonder
cola e não descola, entenderam?"
"Porque elas são ruins. Se fossem boas não nos lembraríamos
delas para cantarolar".
Pergunta da próxima
semana:
"Se você fosse guardar apenas uma lembrança de
sua vida, qual seria ela?"
mortadela frita faz mal pras tripas
tudo o que reluz é braile
habemus ícaros
minha terra tem palmeiras onde canta a Sandy & Júnior
guelra é guelra
na linha do horizonte, pássaros que não existem
ame um gordo. Contém mais tecido adiposo nos pneus
sejam sensatos: Deus é brega
há acnes que vêem pra bem
silêncio tem fritas cuneiformes
a dor tem silhueta - dorme amor e acorda Gordoleta
silêncio tem documento
FHNistão: O Pai da Fome
o fígado faz mal pra saideira
maionese xadrez já foi lágrima de lírio laranja
ABC: América Bush Cloaca
os primeiros serão ecológicos
Paulo Leminski não existe: É uma rima feliz/De Alice Ruiz
gado vacum: neliberalismo globalizado
eu te proponho: arroz e rímel
vade retro chiste chulo
ave Lula! Os que são liberais são saúvas
em Brasília as paredes têm ofídios
o rato roeu a roupa do Ricardão
poetna tem groselheira seca na alma nau
bebo, logo, eis isto
escrevo porque não sei ser eclipse neural
haikais etílicos são lágrimas em sânscrito
o carteiro não sabe Ser sem sê-lo
>>>
cena
copacabanenha
Pago minhas refeições e lanches com tíquete e meu grande
problema é conseguir o troco. Normalmente eles dão
contravale e eu sou péssimo para guardar papeizinhos. Por
isso, acabo comendo um pouco mais do que quero e isso me faz
engordar. Paciência...
Foi assim que, às 19h, cheguei numa casa de sucos ao lado de
casa, pedi uma limonada e um queijo quente. E me interpelou
um mendigo de uns trinta e poucos anos, cara imunda de fome,
roupa mais imunda ainda e bandana da seleção na
cabeça.
- Amigo, vc pode me arrumar um...
- Foi mal, cara, não tenho.
Continuei comendo. Só que a limonada e o queijo quente não
consumiam aquele tíquete de R$ 6,50. Pedi mais um suco de
uva e, do tíquete, sobrou-me exatamente um
real.
Lembrei que havia um pastel grande que custava exatamente
isso. Só que eu não queria
comer mais, então pensei em fazer uma boa ação. O mendigo
continuava parado, na mesma lata de lixo de minutos atrás.
Pedi um pastel de queijo, grande, bem-servido, e ofereci ao
mendigo:
- Toma aí, rapá.
Ele sequer me olhou. Insisti e ele, sem olhar pra
mim:
- Não quero isso aí não.
- Ué, como assim?! - respondi, surpreso.
- Pô, gordura pura...
Em 2003, Copacabana inventou o mendigo
diet.
>>>
n a v e g a r i m p r e c i s
o
tudo começou aqui
Os assinantes mais antigos do Spam Zine ainda se lembram dos virunduns que
eram publicados toda semana aqui? Pois eles renderam um blog próprio, que foi
parar nas páginas da Folha de S. Paulo, O Globo, Jornal da Tarde e Isto É
Gente. Troque de biquíni sem parar você também.
mp3 bizarros
Músicas dos Beatles regravadas por nomes como Kevin Spacey, Peter Sellers e
Telly Savalas? Cover de "Stairway to Heaven" à base de banjo e tuba? Temas
originais de desenhos animados como "A Formiga Atômica", "Tartaruga Touché" e
"Wally Gator"? Receitas culinárias na voz de Vincent Price? É ouvir para
crer.
número dezenove
Uma raridade na história do cinema brasileiro: uma ficção científica de
qualidade. Vale a pena conferir esta pequena jóia escrita e dirigida pelo jovem
diretor Paulo E. Miranda.
will the real hussein please stand up?
O crossover definitivo de Eminem com Saddam Hussein.
>>>
rebeca.
Rebeca tinha a estranha mania de espalhar borra de café pelo chão da casa.
Ela queria ter certeza de que estava viva. E sentindo aquele cheiro forte, ela
tinha. Rebeca era um tipo diferente, que rezava em pontos de ônibus ajoelhada,
para que cada curva não se transformasse num acidente. Ela morria de medo que o
seu destino machucasse outras pessoas. Rebeca acreditava em anjos da guarda, por
isso dormia sempre de barriga para cima, ou para baixo, ou de lado, mas sempre
virada para o esquerdo, porque todos sabem que o anjo bom fica do lado direito,
e ele poderia morrer sufocado dentro da espuma do colchão. Aí, o anjo do mal,
iria pentelhar a sua cabecinha para que ela fizesse coisas que não devia. Rebeca
às vezes lembrava de coisas que nunca existiram e contava para outras pessoas,
só para tornar sua vida mais interessante. Rebeca se confessou com todos os
padres da cidade, sendo um personagem diferente para cada um deles. Ela mudou
tantas vezes de nome que certa vez, até esqueceu do seu. O original. Aquele que
um dia um casal idiota brigou para colocar nela. Rebeca odiava ser chamada de
Rebeca, por isso, agora vamos chamá-la de Amanda, ou Cecília. Cecília passou no
vestibular de psicologia e perdeu toda a sua fé no mundo. Como um curso tão
importante não fazia teste prático? Ela não conseguia entender. Cecília se
apaixonou por um cara que se masturbava antes de trepar com ela, para que a
transa durasse mais e fosse mais proveitosa. Mas enquanto ele batia punheta, ela
sentia vontade de rir e corria para o banheiro, para tomar comprimidos e se
anestesiar, fazendo a vontade de dar passar. Mesmo assim, ela trepava feito
louca e gritava os nomes de todos os vizinhos, entre um gozo e outro. Cecília
precisou se mudar e me fez um pedido. Queria ser chamada de Amanda. Amanda tinha
uma boneca de porcelana que ficava presa ao ventilador de teto, de cabeça para
baixo. É que sua vida andava muito monótona. Um dia Amanda resolveu que Rebeca
era um nome lindo e passou a ser feliz, dispensou os anjos e comprou um carro.
Mas no dia seguinte, acordou sem sentir o cheiro da borra de café espalhada pelo
chão. Carina, ela agora se chamava Carina, ficou desesperada, olhou-se no
espelho para ver o seu reflexo e a sua vida ainda viva. Carina foi ao médico
para ver se estava morta. Subiu o elevador e ninguém a cumprimentou. Então ela
gritou bem alto e ficou falando sem parar, olhando para a parede. Todas as
pessoas desceram no primeiro andar. Carina se convenceu de que era uma
assombração e decidiu que mudar de nome não era legal. Mortos não precisam ser
chamados. Rebeca falou com a recepcionista e se assustou. A mulher a tratou como
se ela estivesse viva. Rebeca esperou o médico chamá-la e contou toda a sua
história para ele. Ok, nem toda. Só a parte que interessava. O médico receitou
um remédio para sinusite e aconselhou que ela procurasse um psicólogo. E desde
então Rebeca tem mudado de nome e de escritório de psicologia a cada quatro
sessões. Rebeca não achou mais tão importante ser maluca e resolveu ser normal.
Casou, teve filhos e passou a dar aulas na faculdade de psicologia depois de
pós-graduada. Outro dia, seu marido trocou seu nome pelo da secretária e ela deu
um tiro nele. Depois, se matou, só para parecer sensata.
>>>
dedilho o
vinco
do tecido
da
blusa
a gola eriça
tramas
de algodão pele arrepios
o segundo botão
abre-se
iniciação
de ombros e pescoço
o sexto botão
salta-se
da
casa
segredos
de
portas de janelas de
pernas
tuas
aberturas
arfam
olhos e garganta
mais três
botões
forja de suor músculos
espasmos
lábios teus elos minha língua
emergem
corrente
e correnteza
de ligas
de palavras de
gozo
pingente
>>>
Vanderley apresentava um programa de entrevistas no
horário da madrugada, sem quase nenhuma audiência, mais como uma deferência da
emissora à sua condição de colunista social decadente. Vanderley mantinha também
o hábito de utilizar “literalmente” fora do contexto original – mais como uma
muleta verbal para reiterar alguma idéia. “Estou literalmente cansado”. “O
cabelo de nossa entrevistada está literalmente mais curto”. Isso inclusive era
motivo de secreta chacota por parte da equipe do programa – dos técnicos à
produção.
Ontem à noite, ao entrevistar a um professor de português,
Vanderley teve – na conversa fora das câmeras que antecedia a entrevista – sua
atenção chamada pelo docente, que em voz baixa lhe corrigiu o uso do advérbio:
"Significa ao pé da letra. Não é sinônimo de 'realmente'. Serve para tirar de
algum termo sua característica de metáfora. Se a palavra tem duplo sentido, o
'literalmente' vem para acentuar que o termo está sendo usado em seu conceito
primeiro, desprovido de simbologia". "Sei, sei", disse Vanderley entre
circunspecto e constrangido.
A entrevista seguinte foi com um cientista maluco que
inventara um eletrodo a partir de água mineral. Uma faísca da engenhoca
escapuliu, pegou na cortina do cenário, alastrou-se até o papel manteiga que
cobria um dos refletores e que já estava superaquecido, o pequeno foco não pôde
ser debelado e logo o estúdio estava em chamas. A porta por algum motivo não
quis destrancar e o pânico irradiou-se tão rápido quanto as labaredas. Sem
lembrar-se do número dos bombeiros, Vanderley só teve tempo de ligar de seu
celular para a casa do produtor do programa – e, em meio ao torvelinho, um
instante de auto-realização pessoal: redimensionar corretamente a utilização do
advérbio. A bateria do celular já acabando e ele pôde apenas gritar: "O programa
está literalmente pegando fogo!" A ligação caiu e o produtor voltou ao sono,
satisfeito, imaginando que a audiência deveria estar reagindo.
>>>
lembrança
noturna
Tia Guiomar era uma mulher bruta. Todos eles, os
italianos da minha família, eram, de um jeito ou de outro, pessoas brutas. Uma
maneira fácil de defini-los é dizer que eram brutos, mesquinhos e apequenados.
Fácil e inexata: havia muito mais coisas neles, coisas nem sempre simples assim
de definir. Eram gente, afinal, tortuosos como quase todos. Mas havia
brutalidade de sobra. Herdei muito dela. Amigos me acham calmo, mas não sou; sou
contido, o que é muito diferente, como sabem os que tiveram a infelicidade de
ver as barreiras romperem-se, e quinhentos anos de raiva meridional aprisionada
no sangue despejar-se, irracional.
O nome dela era Igomar, que soa um pouco a nome de
homem. Ninguém nem pronunciava essa palavra; virou Guiomar. Amava-nos, a mim e a
meu irmão, como os filhos que nunca teve. (Já fui muito amado; já houve tempo em
que eu podia ser amado sem que fossem necessários descontos e condescendências,
lutas com o estômago e bebedeiras. Amar-me nem sempre foi um ato de coragem.)
Era, na minha infância, a mulher mais bonita que eu já tinha visto, com sua boca
grande e um dente amarelado na parte de cima que me fascinava como uma pedra
branca que brilhasse no fundo de um rio. Hoje paro pra pensar e vejo o quão
pouco me lembro dela: era funcionária pública, vestia-se bem, tinha amigas de
nomes italianados como Iole e Trieste, e pintava os cabelos de caju. Dançava
tango com meu pai: trançavam as pernas, cantarolavam juntos "vieja pared en
arrabal / tu sombra fué mi compañera", ou "sintiendo ese calor / del humo
embriagador / que acaba por prender / la llama ardiente del amor".
Amou uma vez, um homem de histórias que ficou
conhecido pelos pósteros como "o turco". Nome, idade, profissão, nada se soube;
era turco, e desquitado, portanto proibido para católicos ferozes como elas. Mas
era indubitável que amou: cheiros, perfumes desse amor entranharam-se na
história, surgindo de todas as letras, não importando quem a contasse. Ela e tia
Ermínia costuravam, para si, para amigas, e para poucos mais. Tinham mesas
grandes, gizes achatados e encerados, revistas de moda à la anos 60, quando
viveram seu pequeno auge e foram à Europa. Vi-a várias vezes de fita métrica
pendurada ao pescoço, com alfinetes de cabeça vermelha presos na boca, óculos
sobre os olhos repentinamente frios, trabalhando compenetrada no velho casarão
do Brás, com seu telefone preto de fios encapados em pano, as portas de vaivém
da sala, o sofá imenso forrado com chita.
Uma vez me levou a Santos, ficamos lá alguns dias.
Lembro de uma tarde sem energia elétrica, seu perfil romano recortado contra
aquelas luzes avermelhadas que surgem sozinhas quando queremos pensar em
poentes, mas tão real, tão real que é uma verdade, numa janela da cozinha do
apartamento.
Nenhum de nós puxou os olhos azuis da minha avó.
Somos bonitos, eu era - Clarice, jovem e preservada, já foi comparada, com
razão, a um anjinho de pintura, e a um Botticelli. Não recuperarei mais a beleza
que perdi, são muitos os descuidos, os estragos, os desleixos. Mas, mesmo que
pudesse, ainda seria um sem olhos azuis. Os de tia Guiomar eram castanhos e
duros, nunca ressacados, nunca "olhos de cama" - eram olhos de fiscal. Era bruta
e dura, como eu disse: gritava, dizia coisas horríveis, era impaciente, dava as
costas. Eu a amei muito. Minha mãe ainda a odeia.
Morreu uma morte que não quero contar, nem desejo que
ninguém tenha. Uma vez eu não a quis ver, ia saindo de fininho, mas ela ouviu
meus passos na escada e gemeu de dentro do quarto:
- Giugnetto, você não vem ver a tia?
Fiz o que sempre faço quando estou envergonhado,
menti.
- Achei que a senhora estava dormindo.
E beijei seu rosto murcho e manchado, a pele que se
ia amarelando, a vida que ia indo, indo, descolando-se com dor e deixando-a mais
sozinha do que nunca, porque já meio apartada de si mesma. Há, dizem, pessoas
capazes de serenar e entender todas as mortes; eu me limito a caminhar fincando
bandeiras em todos os muitos montes da minha incompreensão.
Não chorei a morte dela.