Agora é tarde. Sei lá por que fui convidar o Teles para jantar -- afinal,
eu iria contar que estaria à cata de insights para meu novo romance. E é claro
que o Teles, o invejoso Teles, iria fazer pouco, mudar de assunto, se morder de
cobiça do meu talento, fazer ouvido de mercador às minhas considerações
literárias. Aliás, sei muito bem por que chamei o Teles.
"Um Brás Cubas do segundo milênio", eu ia dizendo, com ar estudadamente
casual, enquanto ele se entretinha em fatiar o filé de peixe. "Um Machado para
hoje: a pena da galhofa, a tinta da melancolia e o cartucho cínico de uma
impressora." Coloquei o minigravador em cima da mesa: "Não se acanhe em
contribuir com idéias."
"Pintado pescado de há pouco", falou ele, mastigando, olhos fechados. Levou
o cálice à boca: "E combinando perfeitamente com este Chardonnay, safra -- mmmm
-- noventa, noventa e poucos."
"Claro que revisitar Memórias Póstumas é um lance de ousadia. Mas se o
grande romance brasileiro está demorando a acontecer, por que não recorrer aos
consagrados?"
Ele colocou a pequena caixinha preta hexagonal em cima da mesa. Pensei,
rapé? Ele vai levar isso de ser estiloso ao ponto de cheirar rapé, aqui no
restaurante? Não sei por que, me pareceu caixa de rapé.
"O casal ali do lado", ele disse, sem tirar os olhos do prato. Fiz o mesmo,
abaixei a vista -- para a caixinha de rapé.
"Isso é algum insight para mim ou comentário?", perguntei, empurrando o
gravador rumo a ele.
"O casal ali do lado", ele prosseguiu como se eu não o tivesse
interrompido, "está à beira de uma tragédia."
Olhei, mas já esperava: a impressão que o casal me causou foi inteiramente
oposta à sugestão do comentário. Ambos com trinta e poucos anos, trocando
risinhos, jantando tranqüilos. Coisas do Teles. Que ele falasse, então. E ele
desta vez demorou, saboreando bem devagar o filé e nos servindo de mais vinho. O
velho e estiloso Teles.
"Ele, recém-empossado em algum cargo importante na empresa, a despeito da
idade. É isso que eles, abre aspas, comemoram. Ela, recém-integrada ao ambiant
bourgeois, denunciando no sotaque e nos gestos a baixa extração -- e já deixando
de ser o estímulo para tornar-se o fardo para a carreira dele." Nesse ponto o
Teles pegou a caixinha de rapé, abriu-a e contemplou alguma coisa que lhe
despertou a memória. Alguma jóia? Deixou-a de lado e voltou a comer.
"Sobre o que eles conversam?", falei. E ele, na primeira vez em que
respondeu objetivamente a uma pergunta minha:
"A conversa pouco importa. A sinalização subterrânea, sim, é que dá o
teor."
Imagino ter sido neste instante que a lembrança de Suzana me abordou.
Teles: a primeira opção dela, após nos divorciarmos. Tudo bem que eles também se
separaram, anos depois -- mas ficaria latejando para o resto de nossas vidas o
significado da escolha dela, tão previsível quanto insolente. Seria a aliança
dela que ele contemplava naquela caixinha -- que podia muito bem, pensando
melhor, ser um porta-jóias? No meio do preciosismo estiloso de Teles havia lugar
para recaídas para o óbvio? Não nos víamos há tempos, justo na ocasião de nosso
reencontro ele iria me fustigar com esse tipo de lembrança?
"Ele vai envenenar a moça", ele disse.
Levei um tempo para voltar à situação. Olhei demoradamente o casal.
"Aqui?", foi o que perguntei.
"Ele demonstra um tédio profundo quando ela, falando, desvia o rosto: o
intervalo para o olhar dele respirar, dizer: 'pelo que que eu não tenho que
passar'. No segundo seguinte ele retoma o sorriso e finge prestar atenção à
conversa suburbana dela."
"Ele vai envenenar a mulher -- aqui?", insisti, e ele, mais uma vez como se
não tivesse sido interrompido:
"Ele insiste para que ela tome vinho. Ela já havia dito que não gostava --
preferia licor, o que o desagradou vivamente. Apesar do largo sorriso que ele
abriu para insistir no vinho. Agora ela cedeu, e está vindo por aí algum tinto
que ele, na rigidez de valores que sua carreira bem sucedida prescreve, acredita
que cai melhor com o filé ao molho madeira que eles pediram".
Suzana houvera dito ao juiz que eu envenenava sua alma. Seria a conjunção
de detalhes -- a caixa com a jóia, a insinuação sobre o casal ao lado -- uma
provocação velada dele, que ao menos emprestaria mais sofisticação àquelas
sugestões que eu há pouco imaginara rasteiras demais?
"O óxido do vinho tinto retarda a ação do sulfato de tálio que ele
depositará no cálice dela", ele continou. "Sulfato de tálio -- "
" -- o veneno que não deixa rastro", interrompi, para ao menos deixar claro
que ele não iria pontificar sozinho naquela demonstração de acuidade
intelectual. E ele, pela primeira vez sentindo-se interrompido, mas sem alterar
o semblante:
"E que será ministrado assim que o cálice dela for enchido."
"E como ele colocará? Dirá a ela, 'olha um ovni', e quando ela se virar ele
despeja?" Achei que já era hora de descontrair. Ou provocar também.
Teles voltou-se à caixinha: sua maneira de realçar o acinte. Suzana,
veneno, aliança. Estariam os dois se vendo novamente? Apesar de haver feito o
comentário jocoso sobre o casal, não devo ter demonstrado isso nas feições. A
raiva já começava a me dar sinais de vida, a subir do estômago. Teles:
"Ela irá à toalete. Seu batom já acabou e ela demonstra isso, passando de
forma tosca e simplória a língua pelos lábios. Para um observador inepto,
sinalização sensual. Para quem sabe ver, mera necessidade de retocar a
maquiagem."
Eu me recusaria a passar recibo à provocação. Talvez fazer-me de entretido
nas ilações dele e ver até onde iriam. Talvez.
"E será que você percebeu isso antes dela?", falei.
"O importante é que ele percebeu." E Teles deixou o prato de lado para
dedicar-se ao que restava do Chardonnay. Não tirava os olhos da outra mesa. "O
vinho chegou. Um Merlot. Encorpado, ideal para os planos dele. Que, por sinal,
já acariciou várias vezes o interior do bolso do paletó, só para certificar-se
mais uma vez de que o veneno está lá. A mesma insegurança que um noivo demonstra
com a caixinha da aliança, antes de subir ao altar."
Já bastava. Ou eu tomava a caixinha e ia embora -- ou terminava de ouvir a
preleção. Que aliás ia me enfurecendo devagar e borbulhantemente. A raiva já me
chegava à garganta.
"Por que ele não envenena a mulher em casa?", perguntei. "Logo um
restaurante?"
"O calculismo dele não evita que ele se torne presa fácil da obviedade
dramatúrgica: a volúpia de ser quase descoberto. A liturgia do jantar fora, do
vinho. Tirando o fato dele não ter percebido que eu sou a única pessoa do
restaurante a observá-lo."
A moça já havia ido à toalete: o que me deu mais raiva. Teles, com soberba,
não demonstrava o alívio de ter ganho a aposta. O que me deu mais raiva ainda.
"Ele, sozinho à mesa, acaba de experimentar sua taça e faz o mesmo com a
dela. E demora. Para um observador ignorante, um chamego à distância. Para um --
"
" -- arguto Poirot, o detalhe que faltava", tornei a provocar.
"Prefiro Dürrenmatt. Mas o que importa -- a coisa já está feita. Ele acaba
de fazer a aliança com seu próprio futuro."
Aliança. Realmente às vezes as insinuações beiravam o pueril, mas era a
maneira dele administrar minha raiva com rédea curta aqui, frouxa ali. Eu estava
nas mãos dele. Por isso levantei-me.
"O que significa isso?", foi só o que ouvi o rapaz da outra mesa dizer,
quando eu peguei o cálice da mulher e o tomei, de um só gole. Acho que respondi:
"Só para conferir um detalhe."
O ligeiro constrangimento, contornado pelo mâitre com outro cálice para a
atordoada moça -- que chegava naquele momento sem nada entender -- e por meus
titubeantes pedidos de desculpa, alegando ter confundido ambos com um casal
amigo meu, não se comparou à satisfação em ler no rosto do Teles um ligeiro
desarme. Não, aquele desfecho ele nunca cogitaria. Nem meu "Mando notícias do
além, doutor Dürrenmatt", que soltei enquanto secava meu cálice de Chardonnay,
antes de pedirmos a conta.
Mas dois dos desfechos eu jamais cogitaria também. O primeiro foi quando
ele tomou-me o gravador, à saída do restaurante, com o pretexto de elaborar
outros insights e devolvê-lo no dia seguinte. Seu semblante francamente
desarmado me soava uma vitória muito fácil.
O segundo desfecho foi eu chegar em casa, sentir as primeiras contrações lá
por volta da meia-noite e, minutos depois, morrer. Até agora não acredito que o
poder de elaboração dele fosse tão longe. E se brincar até em meu velório ele
vai.
Para quem não acha que a morte é o fim, garanto: é. Antes de acabar, só
posso dizer que o descanso eterno me confere a lucidez que não eu soube
apresentar no jantar. E ver. A caixinha com o veneno, que ele faltou abrir na
minha cara -- e que despejou em meu Chardonnay quando fui à outra mesa. A
conversa gravada, que não só o inocentava como comprometia o rapaz do casal --
que iria ter de se virar para provar não ter usado sulfato de tálio no cálice
que eu intempestivamente bebi: a falta de provas incriminando-o. Só podia ter
partido do Teles. E tinha Suzana, também. Que não sei por que coloquei aqui, no
meio dessas digressões -- mas que provavelmente tem a ver com isso tudo. Talvez
nem ela saiba.
Fim. Não pensei que me aproximaria tanto de Brás Cubas, mais do que jamais
planejei. Agora é muito tarde, mas aprendi: quem supõe-se literato precisa falar
menos. E escrever mais.