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089
30 de março de 2003
são paulo  rio de janeiro  joão pessoa  praia do nelson
 
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n e s t a  e d i ç ã o:
 
de volta ao samba - minicontos do desconforto - mil e uma noites - éter e aço - gotas, estalos, tempo - a cidade de platão - carrinho de feira - brás cubas revisited - cataventos e arroz doce
 
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editorial
chico buarque  http://www.chicobuarque.com.br
   
Pensou que eu não vinha mais, pensou?
Cansou de esperar por mim
Acenda o refletor
Apure o tamborim
Aqui é o meu lugar
Eu vim
 
Fechou o tempo, o salão fechou
Mas eu entro mesmo assim
Acenda o refletor
Apure o tamborim
Aqui é o meu lugar
Eu vim
 
Eu sei que fui um impostor
Hipócrita querendo renegar seu amor
Porém me deixe ao menos ser
Pela última vez o seu compositor

Quem vibrou nas minhas mãos
Não vai me largar assim
Acenda o refletor
Apure o tamborim
Preciso lhe falar
Eu vim com a flor
Dos acordes que você
Brotando cantou pra mim

Eu era sem tirar nem pôr
Um pobre de espírito ao desdenhar seu valor
Porém meu samba, o trunfo é seu
Pois quando de uma vez por todas
Eu me for
E o silêncio me abraçar
Você sambará sem mim

Acenda o refletor
Apure o tamborim
Aqui é o meu lugar
Eu vim
 
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minicontos do desconforto
 
- 22 -
 
Percebeu que ainda gostava dele quando o viu beijar na boca a velha amiga, bem na sua frente. Tinha orgulho de tê-lo esquecido, de ter virado mais uma página em sua vida depois de sofrer desesperadamente por se saber não correspondida. O pior é que, quando aconteceu, tinha largado o vício da paixão há mais de dez anos. Nunca mais tomara um só copo de tal elixir e agradecia a Deus por cada manhã sóbria.
 
E agora... agora não conseguia desviar os olhos dos beijos que se repetiam. "Pára!", gritou para sua alma. Ela fez ouvidos moucos.

Resolveu ir embora. Ele pediu que não fosse, disse que planejava regressar com ela. Disse-o com a costumeira nonchalance, ao mesmo tempo em que acariciava o pescoço da amiga.

Ela abriu a boca para responder, quando foi interrompida por mais um beijo. A amiga foi mais sedutora desta vez. Aí não deu. Começou a chorar. Fraquejou. Apoiou-se na pilastra mais próxima. Ele se levantou, tentou ampará-la, ela deu-lhe um safanão. Chorou mais e mais, até perceber que não estava conseguindo ficar de pé. Olhou para baixo e... já não tinha mais pés. As lágrimas haviam formado uma parede líquida que a consumia de baixo para cima. O que só a fez chorar ainda mais.

Mais tarde, na delegacia, dando-a como desaparecida, o atônito casal de amigos também chorou. Os dois jamais souberam que haviam presenciado um milagre: uma mulher se transmutando numa poça de tristeza.
  
- 23 -
 
Os dois duendes trouxeram os pedais para sua guitarra: um overdrive e um flanger. Discretos, puseram-nos entre a bateria e o teclado. Ninguém percebeu -- até o primeiro solo. Tocou como nunca aquela noite. Seus dedos passeavam sobre o braço do instrumento como se fossem parte dele. Depois do show, viram-no falando sozinho na praia e presumiram erroneamente que estivesse chapado.

No dia seguinte, o baterista ganhou um bumbo que só faltava falar e o tecladista descobriu cinco novos efeitos em seu Roland.
  
- 24 -
 
25 de junho de 1876. As tropas do general americano George Custer são massacradas em Little Bighorn. A última coisa que Custer sente é a dor nos lados da cabeça enquanto os sioux decepam suas orelhas. Diziam que ele não os ouvira e quebrara inúmeros tratados, daí a necessidade de lhe tomar as orelhas para que pudesse escutar suas reivindicações. Depois, o escuro e o nada.

Passado um período impossível de medir por padrões terrenos, Custer acorda no meio de nuvens, num prado flutuante ao lado de um riacho paradisíaco. A seu lado, um velho batedor mestiço que o servira na Guerra Civil.

-- Ora, parece que vim parar no céu... Logo eu que achava ter pecados sobrando -- murmurou, ainda meio tonto, o general.

O batedor riu. A seu riso seguiu-se o som do canto de guerra de um milhão de guerreiros sioux, navajos, comanches e de quantas nações hoje dizimadas da América se possa lembrar.

-- É, o senhor está no céu -- disse o batedor. -- No céu dos índios. E gargalhou.

Até hoje -- e por toda a eternidade -- Custer morre diariamente naquele paraíso, e todos os dias suas orelhas são arrancadas pelos nativos, e todas as noites a vitória é comemorada pelas tribos mortas e ecoa pela Via Láctea.
  
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bagdá
orlando tosetto júnior  [email protected]
 
Eu era menino quando conheci Bagdá. Escrevia-se "Bagdad", e esse "d" final não era mudo, era antes pronunciado suavemente. Também conheci Baçorá, que se escrevia "Balsora". Foi lendo as Mil e Uma Noites, numa tradução meio antiga da versão de Galland. Bagdá - ou Bagdad - era governada por Haroun Al-Raschid (Haroun, o Justo), que costumava passear à noite, incógnito, em companhia de seu Grão Vizir, pra ver de perto se o povo estava ou não contente com o seu governo.
 
Eram noites amenas, suaves até. Havia, nos quartos das damas e nos serralhos, delicadas cortinas de musselina transparente balançadas por brisas misteriosas. Coisas incríveis aconteciam. Um gênio, preso há mil anos por Salomão, ressurgia querendo matar; uma mulher, presa dentro de uma garrafa, mesmo assim conseguia trair seu gênio e amo com cem homens diferentes; um pobre homem que falava com os animais se via condenado à morte pela intransigência de sua esposa; uma bela mulher exibia peitos cobertos de cicatrizes; três calenderes cegos do olho direito encontravam-se por acaso; um príncipe, transformado em estátua da cintura para baixo, era chicoteado todas as noites com um nervo de boi; irmão e irmã incestuosos eram alcançados por Alá mesmo sob a terra, e carbonizados; diamantes eram pescados com postas de carne; a parede se abria para deixar passar um negro mudo que queimava os peixes na cozinha.
 
Xarazada, belamente grafada Scheherazade, dava fé desses e de outros fatos, entretendo um rei e adiando sua morte por mil noites e uma noite.
 
Nessa Bagdá de portas nem sempre fechadas, de silêncios nem sempre completos e de abstinências nem sempre respeitadas, eu ia me movendo. Era tão menino que ainda não alcançava o que as alcovas punham lá em cima. Mas ansiava por saber o que era uma circassiana, e para sentir cheiro de pau de aloés (que hoje chamam de aloe, por causa dos xampus) e incenso; imaginava muito bem pulseiras douradas, túnicas brancas e lábios avermelhados de propósito; e cabelos pretos, e olhos pretos sob pestanas rápidas como asas de borboletas.
 
Nessa cidade circulavam sequins, dinares, rúpias e dracmas. Ninguém, ao que parece, plantava um único pé de alface, ou criava um boi que fosse: todos comerciavam, vendiam e compravam - fazendas e brocados, jaezes e púrpuras. E assim, aumentavam seus cabedais. Eram aduladores e simpáticos, e, quando alguma desgraça lhes acontecia, arrancavam os cabelos e batiam nas próprias cabeças.

Eu amava Bagdá. Bagdá sonhada por um contador de histórias; de novo sonhada por um francês puritano; de novo sonhada por um tradutor brasileiro inimigo do X e amigo do SH; e finalmente sonhada por mim, numa sala escura e de móveis antigos num casarão do Brás que hoje não existe mais. Sonhos que, como o casarão, o tempo sem remorso nem freio apaga.

Sonhos que como Bagdá, a verdadeira, a que não conheci nem sonhei, também desaparecem sob fogos (nem sempre) mortos.
 
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poema de amor quântico
 
o amor
traz ao mundo a sensação do vasto e
do oco
por isso tanta vez revela  silêncios e
cava
um buraco redondo e fundo no
respiradouro
da alma
 
o amor é uma
agonia incontida
 
multidão de almas calcinadas na
                leveza do éter e do aço
     
 
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expectativa
adriana terra  [email protected]
 
Já era mais de meia-noite, mas o sono não batera. Até batera, na verdade, mas não mais forte do que a voz de sua criança perguntando pelo pai. Estridente, impecável, certeira como a faca que corta o pão todas as manhãs.

Pela fresta da janela, podia se perder na escuridão daquele noite chuvosa. Entre raios, relâmpagos, água, brilhava amarelada - cor de tristeza - a luz da vela acesa.

Rezava todas as noites porque constava que era preciso, e isso era suficiente. Aquela noite, a vela era pra São Francisco, o santo do dia. Sentada no banquinho, esfregava as mãos - arrepio frio - e se impacientava em terrível paciência de esposa. Pensava em maçãs do amor, crocodilos do tamanho de uma boneca, serras elétricas para a carne. Pensava em coisas que não existiam e assim se aquietava, e as preocupações eram menores.

Aprendia a viver do seu modo. Ouvia o compasso marcado das batidas do antigo relógio da sala, e estes por vezes se confundiam com o ritmo pesado e tranqüilo daquele que relutava sob seu vestido. Coração. Passava da uma. Continuava o resguardo em seu imenso silêncio interno, até poder sentir o segundo, implacável, caminhando pelo velho solado.

O menino, que esperava ao seu lado, agora era só um corpinho que sonhava coisas distantes. Levou-o a cama e o cobriu - na madrugada faria ainda mais frio. Voltou a sala. Outro olhar perdido mais a chuva, que caía inofensiva e pequenina lá fora. Sentou-se e novamente foi às horas. Gotas, estalos, tempo. Em poucos minutos, dormia um sono lento.
  
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p e r g u n t a r   n ã o   o f e n d e
Mr. Joseph Vincent, depois de passar uma tarde inteira cantarolando uma velha canção do Roberto, gostaria de saber:
"Por que as músicas grudam na cabeça das pessoas?"
 
Por favor, cubram a vastidão de nossa ignorância com o manto de suas sabedorias. Escrevam para [email protected].
 
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os artistas e a cidade ideal
marcelo barbão  http://www.marcelobarbao.kit.net
 
Para mim, tudo começou quando Platão expulsou da sua cidade ideal os poetas. Foi a primazia dos filósofos que levou a sociedade ocidental ao descalabro em que se encontra. Os filósofos e seus filhotes, os políticos e os cientistas, jogaram os artistas de lado (ei, velho Platão, você não vai se importar com a minha licença “poética” de generalizar seus ‘poetas’ da Antiguidade para ‘artistas’ da Modernidade, vai?) e construíram essa sociedade baseada na razão, usando a política como principal instrumento.
 
Olhemos ao nosso redor. Será que essa é a nossa cidade ideal? Será que Platão estava certo, afinal de contas? Enquanto os políticos, os filósofos e os cientistas dominam, só conseguimos ver conquistas, destruições e misérias.
 
Esquerdistas defendendo governos totalitários mas com saúde e educação para todos, e direitistas defendendo governos democráticos mas com desemprego e pobreza para todos. E quando os dois governos dão errado, a primeira coisa a fazer é negar qualquer minúscula culpa ou apoio.
 
- Eu? Que é isso? Eu nunca apoiei tal coisa! Sempre fui um defensor do “verdadeiro” liberalismo/socialismo/democrático/popular (o cardápio não varia muito).
 
E quando os inimigos (sempre eles) encontram algum velho artigo dos esquerdistas de direita ou dos direitistas de esquerda, com algo comprometedor, sempre temos uma desculpa bem montada para despistar nossos oponentes. Aliás, em geral, as desculpas são criadas antes dos próprios artigos embaraçosos.
 
Assim, é fácil para os liberais-democratas explicar o apoio à ditadura militar ou aos socialistas-democratas seu apoio a Mao. Tudo é fácil. Enquanto isso, as mortes continuam.
 
Mas, espere, sempre há alguém com uma resposta na ponta da língua:
 
- Segundo estudos...
 
O começo sempre denuncia. Será a solução brilhante de um filósofo (generalizando, porque pode ser um político, um cientista ou algo no gênero) para os problemas que a humanidade enfrenta há milênios, mas só agora uma mente superior conseguiu perceber. E dá-lhe mais estatísticas de mortes.
 
Entretanto, os melhores são os que mudam de posição. Estes são espetaculares. Por algum motivo ainda inexplicável (ei, filósofos, o que vocês estão esperando para criar uma nova teoria?), os que passam da esquerda para a direita são os mais raivosos. Os que passam da direita para a esquerda, talvez por manterem uma mentalidade de “levar vantagem em tudo”, preocupam-se mais em fazer amizades no seu novo habitat.
 
Mas os neo-direitistas, estes espalham calamidades pelo mundo e repetem em tom profético: Meninos, eu vi!
 
E enquanto isso, os israelenses matam palestinos que, por sua vez, revidam. Os EUA atacam o Iraque enquanto os russos destroem a Chechênia. Todos com suas razões razoáveis e seus conceitos conceituados.
 
Pois, eu também tenho a minha idéia brilhante para salvar o mundo: expulsem os filósofos da cidade ideal! Eles são perversos. De suas bocas, nestes últimos dois milênios e meio, só saíram mentiras, abusos, ataques e cretinices. Eles vêm repetindo suas idéias assassinas, iludindo os inocentes, traindo seus amigos e matando seus inimigos.
 
Os poetas e artistas, por outro lado, foram obrigados a viver escondidos em pequenas cavernas durante todo este tempo, tratados como simples complemento ou como “diversão” entre os momentos importantes da vida. A cultura e a arte, transformaram-se em lazer e entretenimento. Ou os artistas viram filósofos (e trabalham sua arte com razão, também conhecida como tino comercial) ou são relegados a uma vida de privações.
 
Essa visão “filosófica” é tão forte que contamina o próprio artista. Frases como, “minha arte não pode mudar o mundo” são comuns.
 
Pois chegou a hora de dar um basta! Os artistas é que devem tomar as rédeas da cidade ideal, dirigindo-a com a percepção aguçada, a sensibilidade e a imaginação que lhes são pertinentes. E nem quero me alongar neste ponto, afinal, se eu ficasse falando como os artistas devem governar, estaria dando uma de filósofo.
 
Só sei que o homem comum, miserabilizado na sua vida cotidiana, toda racional, produtiva e trabalhadora, precisa ser fortemente atacado, massacrado por uma violenta reação cultural que o jogaria no chão e, sem fôlego, ele teria que exclamar:
 
- Cara....!
 
Artistas de todo o mundo, governai-nos!!!
 
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no meio-fio
 
Tudo muda... menos minha loucura sã (ou insana lucidez). Hoje vi um louco no meio da rua. Quase foi atropelado, mas ele nem estava aí pros carros. Era tarde, quase uma da manhã. Ele empurrava um carrinho de feira cheio de coisas. Não dava pra ver... Aliás, eu não queria ver as coisas do louco. O louco, esfarrapado, ensaiava passos de samba no meio-fio. Parecia feliz por carregar todo o mundo em um carrinho de feira.

Quanto menor o mundo que carregamos nos ombros ou empurramos ladeira acima ou seguramos morro abaixo, acho que estamos mais perto do simples, e ser feliz é simples. Acho que vou comprar um carrinho de feira, turbinado.
     
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filé de peixe e chardonnay
 
Agora é tarde. Sei lá por que fui convidar o Teles para jantar -- afinal, eu iria contar que estaria à cata de insights para meu novo romance. E é claro que o Teles, o invejoso Teles, iria fazer pouco, mudar de assunto, se morder de cobiça do meu talento, fazer ouvido de mercador às minhas considerações literárias. Aliás, sei muito bem por que chamei o Teles.
 
"Um Brás Cubas do segundo milênio", eu ia dizendo, com ar estudadamente casual, enquanto ele se entretinha em fatiar o filé de peixe. "Um Machado para hoje: a pena da galhofa, a tinta da melancolia e o cartucho cínico de uma impressora." Coloquei o minigravador em cima da mesa: "Não se acanhe em contribuir com idéias."
 
"Pintado pescado de há pouco", falou ele, mastigando, olhos fechados. Levou o cálice à boca: "E combinando perfeitamente com este Chardonnay, safra -- mmmm -- noventa, noventa e poucos."
 
"Claro que revisitar Memórias Póstumas é um lance de ousadia. Mas se o grande romance brasileiro está demorando a acontecer, por que não recorrer aos consagrados?"
 
Ele colocou a pequena caixinha preta hexagonal em cima da mesa. Pensei, rapé? Ele vai levar isso de ser estiloso ao ponto de cheirar rapé, aqui no restaurante? Não sei por que, me pareceu caixa de rapé.
 
"O casal ali do lado", ele disse, sem tirar os olhos do prato. Fiz o mesmo, abaixei a vista -- para a caixinha de rapé.
 
"Isso é algum insight para mim ou comentário?", perguntei, empurrando o gravador rumo a ele.
 
"O casal ali do lado", ele prosseguiu como se eu não o tivesse interrompido, "está à beira de uma tragédia."
 
Olhei, mas já esperava: a impressão que o casal me causou foi inteiramente oposta à sugestão do comentário. Ambos com trinta e poucos anos, trocando risinhos, jantando tranqüilos. Coisas do Teles. Que ele falasse, então. E ele desta vez demorou, saboreando bem devagar o filé e nos servindo de mais vinho. O velho e estiloso Teles.
 
"Ele, recém-empossado em algum cargo importante na empresa, a despeito da idade. É isso que eles, abre aspas, comemoram. Ela, recém-integrada ao ambiant bourgeois, denunciando no sotaque e nos gestos a baixa extração -- e já deixando de ser o estímulo para tornar-se o fardo para a carreira dele." Nesse ponto o Teles pegou a caixinha de rapé, abriu-a e contemplou alguma coisa que lhe despertou a memória. Alguma jóia? Deixou-a de lado e voltou a comer.
 
"Sobre o que eles conversam?", falei. E ele, na primeira vez em que respondeu objetivamente a uma pergunta minha:
 
"A conversa pouco importa. A sinalização subterrânea, sim, é que dá o teor."
 
Imagino ter sido neste instante que a lembrança de Suzana me abordou. Teles: a primeira opção dela, após nos divorciarmos. Tudo bem que eles também se separaram, anos depois -- mas ficaria latejando para o resto de nossas vidas o significado da escolha dela, tão previsível quanto insolente. Seria a aliança dela que ele contemplava naquela caixinha -- que podia muito bem, pensando melhor, ser um porta-jóias? No meio do preciosismo estiloso de Teles havia lugar para recaídas para o óbvio? Não nos víamos há tempos, justo na ocasião de nosso reencontro ele iria me fustigar com esse tipo de lembrança?
 
"Ele vai envenenar a moça", ele disse.
 
Levei um tempo para voltar à situação. Olhei demoradamente o casal.
 
"Aqui?", foi o que perguntei.
 
"Ele demonstra um tédio profundo quando ela, falando, desvia o rosto: o intervalo para o olhar dele respirar, dizer: 'pelo que que eu não tenho que passar'. No segundo seguinte ele retoma o sorriso e finge prestar atenção à conversa suburbana dela."
 
"Ele vai envenenar a mulher -- aqui?", insisti, e ele, mais uma vez como se não tivesse sido interrompido:
 
"Ele insiste para que ela tome vinho. Ela já havia dito que não gostava -- preferia licor, o que o desagradou vivamente. Apesar do largo sorriso que ele abriu para insistir no vinho. Agora ela cedeu, e está vindo por aí algum tinto que ele, na rigidez de valores que sua carreira bem sucedida prescreve, acredita que cai melhor com o filé ao molho madeira que eles pediram".
 
Suzana houvera dito ao juiz que eu envenenava sua alma. Seria a conjunção de detalhes -- a caixa com a jóia, a insinuação sobre o casal ao lado -- uma provocação velada dele, que ao menos emprestaria mais sofisticação àquelas sugestões que eu há pouco imaginara rasteiras demais?
 
"O óxido do vinho tinto retarda a ação do sulfato de tálio que ele depositará no cálice dela", ele continou. "Sulfato de tálio -- "
 
" -- o veneno que não deixa rastro", interrompi, para ao menos deixar claro que ele não iria pontificar sozinho naquela demonstração de acuidade intelectual. E ele, pela primeira vez sentindo-se interrompido, mas sem alterar o semblante:
 
"E que será ministrado assim que o cálice dela for enchido."
 
"E como ele colocará? Dirá a ela, 'olha um ovni', e quando ela se virar ele despeja?" Achei que já era hora de descontrair. Ou provocar também.
 
Teles voltou-se à caixinha: sua maneira de realçar o acinte. Suzana, veneno, aliança. Estariam os dois se vendo novamente? Apesar de haver feito o comentário jocoso sobre o casal, não devo ter demonstrado isso nas feições. A raiva já começava a me dar sinais de vida, a subir do estômago. Teles:
 
"Ela irá à toalete. Seu batom já acabou e ela demonstra isso, passando de forma tosca e simplória a língua pelos lábios. Para um observador inepto, sinalização sensual. Para quem sabe ver, mera necessidade de retocar a maquiagem."
 
Eu me recusaria a passar recibo à provocação. Talvez fazer-me de entretido nas ilações dele e ver até onde iriam. Talvez.
 
"E será que você percebeu isso antes dela?", falei.
 
"O importante é que ele percebeu." E Teles deixou o prato de lado para dedicar-se ao que restava do Chardonnay. Não tirava os olhos da outra mesa. "O vinho chegou. Um Merlot. Encorpado, ideal para os planos dele. Que, por sinal, já acariciou várias vezes o interior do bolso do paletó, só para certificar-se mais uma vez de que o veneno está lá. A mesma insegurança que um noivo demonstra com a caixinha da aliança, antes de subir ao altar."
 
Já bastava. Ou eu tomava a caixinha e ia embora -- ou terminava de ouvir a preleção. Que aliás ia me enfurecendo devagar e borbulhantemente. A raiva já me chegava à garganta.
 
"Por que ele não envenena a mulher em casa?", perguntei. "Logo um restaurante?"
 
"O calculismo dele não evita que ele se torne presa fácil da obviedade dramatúrgica: a volúpia de ser quase descoberto. A liturgia do jantar fora, do vinho. Tirando o fato dele não ter percebido que eu sou a única pessoa do restaurante a observá-lo."
 
A moça já havia ido à toalete: o que me deu mais raiva. Teles, com soberba, não demonstrava o alívio de ter ganho a aposta. O que me deu mais raiva ainda.
 
"Ele, sozinho à mesa, acaba de experimentar sua taça e faz o mesmo com a dela. E demora. Para um observador ignorante, um chamego à distância. Para um -- "
 
" -- arguto Poirot, o detalhe que faltava", tornei a provocar.
 
"Prefiro Dürrenmatt. Mas o que importa -- a coisa já está feita. Ele acaba de fazer a aliança com seu próprio futuro."
 
Aliança. Realmente às vezes as insinuações beiravam o pueril, mas era a maneira dele administrar minha raiva com rédea curta aqui, frouxa ali. Eu estava nas mãos dele. Por isso levantei-me.
 
"O que significa isso?", foi só o que ouvi o rapaz da outra mesa dizer, quando eu peguei o cálice da mulher e o tomei, de um só gole. Acho que respondi: "Só para conferir um detalhe."
 
O ligeiro constrangimento, contornado pelo mâitre com outro cálice para a atordoada moça -- que chegava naquele momento sem nada entender -- e por meus titubeantes pedidos de desculpa, alegando ter confundido ambos com um casal amigo meu, não se comparou à satisfação em ler no rosto do Teles um ligeiro desarme. Não, aquele desfecho ele nunca cogitaria. Nem meu "Mando notícias do além, doutor Dürrenmatt", que soltei enquanto secava meu cálice de Chardonnay, antes de pedirmos a conta.
 
Mas dois dos desfechos eu jamais cogitaria também. O primeiro foi quando ele tomou-me o gravador, à saída do restaurante, com o pretexto de elaborar outros insights e devolvê-lo no dia seguinte. Seu semblante francamente desarmado me soava uma vitória muito fácil.
 
O segundo desfecho foi eu chegar em casa, sentir as primeiras contrações lá por volta da meia-noite e, minutos depois, morrer. Até agora não acredito que o poder de elaboração dele fosse tão longe. E se brincar até em meu velório ele vai.
 
Para quem não acha que a morte é o fim, garanto: é. Antes de acabar, só posso dizer que o descanso eterno me confere a lucidez que não eu soube apresentar no jantar. E ver. A caixinha com o veneno, que ele faltou abrir na minha cara -- e que despejou em meu Chardonnay quando fui à outra mesa. A conversa gravada, que não só o inocentava como comprometia o rapaz do casal -- que iria ter de se virar para provar não ter usado sulfato de tálio no cálice que eu intempestivamente bebi: a falta de provas incriminando-o. Só podia ter partido do Teles. E tinha Suzana, também. Que não sei por que coloquei aqui, no meio dessas digressões -- mas que provavelmente tem a ver com isso tudo. Talvez nem ela saiba.
 
Fim. Não pensei que me aproximaria tanto de Brás Cubas, mais do que jamais planejei. Agora é muito tarde, mas aprendi: quem supõe-se literato precisa falar menos. E escrever mais.
   
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berceuse - canção de embalar meu pai
ione moraes  http://www.didentro.he.com.br

Ah, meu pai. Você um dia foi menino e depois não soube mais sê-lo. Você desaprendeu meninices e meninice não deveria ser coisa esquecida em um canto qualquer. É pra levar junto, é pra ter consigo, é pra guardar no bolso da camisa junto com a caderneta de telefones e lembretes para você mesmo e caneta com que você escreve estes lembretes e assina cheques e assina contratos e assina facsímiles para pessoas importantes. Meu pai, faz tanto tempo que não estamos juntos. Eu estou aqui, tão longe, só se chega aqui de avião e depois, depois é só andar um tantão e perguntar a qualquer um onde é que fica a minha casa e eles vão lhe dizer: é a amarela, de janelas azuis, com varanda e uma cadeira de balanço, ela tem plantas em latas de óleo, pendura  cataventos por todo o canto, ela diz que cataventos é voar quinemqui um passu-pretu, meu sinhô, lá onde a ponta do meu dedo não consegue alcançar. Dizem que ela é doida, mas é doida boa, quando a gente vai tomar um cafezinho, pedir um conselho, ela não dá conselho, ela diz um versinho e a gente matuta e ela sorri branquinho. De olhar prus dentes branquinhos dela, dá vontade de comer arroz doce.

Pai, você está tão longe. Você prometeu escrever e você esqueceu de escrever. Ou foram minhas cartas que nunca chegaram. Aqui é muito longe mesmo e elas podem ter se perdido no meio do longo caminho. Parado por aí, ido visitar outra pessoa. Pai, eu esperava sua carta igual um cachorro esperando o dono chegar no fim de tarde, um cachorro sentado perto do portão, olhando com medo para todo mundo passando na rua, medo de não chegar meu dono, meu amor. Pai, eu sou o seu cachorro. Você me levava para passear no seu colo quando eu ainda cabia nele e eu estalava meus dedos muito pequenos para os cachorros. Mas pai, eu ainda caibo nele, sabe?, no seu colo. Eu posso ficar encolhidinha que nem uma concha pra caber nele, acho que foi você quem diminuiu, que nem se fosse uma Alice no país das maravilhas.

Você desaprendeu meninices. E aprendeu buzinas e máquinas e mesas forradas de aborrecimentos. Pai, agora mãe escreveu, disse para eu chegar rápido, disse que eu corresse pra voltar. Mãe disse que você não tem tempo, você nunca teve tempo, pai. Mãe escreve, mãe não esqueceu, mãe fez aumentar e crescer igual mato depois de chuva. Pai, mãe disse que você esqueceu o faz pouco tempo, então acho que você vai lembrar de mim, eu faço tanto tempo. Eu falo "pai", só lembro saudade, saudade é que nem melado comido direto no pote. Lambuza os dedos, só sai lambendo. Mãe disse que você bota a língua pra fora e faz desaforo, mas depois ri, depois pisca e dá um tapinha na bunda da mãe. Mãe disse que você agora aprendeu meninices de novo. Que esquece meu nome, meu nome é Nina, pai, mas não importa, pode chamar de filha quando eu chegar aí. Mãe diz que você grita xingamentos, que esquece de vestir as calças e sai pro meio da rua e lembra de tudo de tão faz tempo. Lembra do vô te dando castigo, lembra que bom era bicho do pé, lembra de cheiro de forno varrido de vassoura de alecrim.

Você deve lembrar do barulhinho de bolinha de gude. Você brincava de bolinha de gude? Então, eu tô indo, eu tô indo depressa, me espera por favor. Eu vou ver você de novo e abraçar você e beijar de levinho sua bochecha, fazer você caber no meu colo e vou cantar pra você barulhinho de bola-de-gude, barulhinho de bola de meia, de sapato esfregando chão uma-duas-muitas vezes pra  fazer que era que nem um trenzinho. Eu vou cantar pra você grilo e cigarra no mato, vou cantar nana-ninar. Eu vou cantar canção de ninar e você vai sonhar bem devagarinho. E depois eu vou deitar do teu lado na cama, minha cabeça no seu ombro, seu braço em volta do meu pescoço e vou  ficar assim, olhando meu pai bem menino.

Deixa, pai, Nina cuida de você.
 
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f a l a   q u e   e u   t e   e s c u t o
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----- Original Message -----
From: Cynthia Feitosa <...>
Sent: Friday, February 07, 2003 4:30 PM
Subject: Desculpa, mas...

"Gente, assinei o Spamzine faz pouco tempo, e adorei as primeiras edições que recebi, assim como a coletânea do site que o apresenta ao público. Mas nessa última confesso que fiquei meio assim. Desigual é dizer pouco. O texto da Ione, como tudo que eu já li dela, é lindo, primoroso, perfeito, mas o resto... tudo bem que a proposta parece ser mesmo ultra-democrática, o que é muito louvável, mas até pra resguardar os escritores - e os leitores! - , não seria o caso de se fazer algum tipo de editoração, uma revisãozinha mínima, só pra não escrever bobagem ? Coisas simples, tipo que a famosa fase do "band of brothers" é de Shakespeare, sim, mas não de Ricardo III, e sim de Henrique V (nem precisa dizer números do ato e cena, não, basta dar o nome certo, uma olhadinha básica no Google resolve isso.), que o século XXV se referiria aos anos 2400, e não 6000, que "ricaço" é com ç e não com ss, e até dar uns toques de colocação pronominal (não sei o que é pior, o Lennon dizendo "...quando encontrar aquele cara (...) vou arrebentar-lhe de
porradas" ou "sua mamãe iria lhe matar se visse a sujeira...". Pode não parecer, mas estas são críticas de quem acha o Spamzine uma idéia ótima, e por isso mesmo gostaria de vê-lo mais bem tratado..."
 
orlando responde: Cynthia, se monitor corasse, o meu estaria vermelhinho. É verdade que eu confundi os monarcas, pobre republicano que sou, e deve ter sido por isso que deixei que as regências fossem violadas. Também não tive coragem de dar um clique no corretor ortográfico do Word - a preguiça, as dores, os tempos, os costumes, tudo conspira contra mim. Não adianta muito pedir desculpas; no entanto eu peço, a você e aos demais, que mereciam esse algo mais de atenção que faltou tão miseravelmente. No mais, é reiterar o lema dos padeiros: melhorar para sempre bem servir.
 

----- Original Message -----
From: grazola <...>
Sent: Mar 29 2003, 05:20 pm
 
"Eis que vou abrir ansiosa minha caixa de entrada (com e-mails de semanas e semanas acumulados) e em meio a tanto lixo eletrônico constato transtornada:
 
- Onde estará aquele intruso querido (quase) dominical??? =("
 
inagaki responde: Pois é... o Spam Zine não circulava desde o dia 5 de fevereiro. Qual o motivo? Eu poderia elencar vários motivos: falta de tempo, falta de estímulo, preguiça, os pequenos grandes compromissos que a gente vai assumindo no dia-a-dia, os frilas e o blog pessoal que mantenho, essas coisas. Mas, na real, a verdade é uma só: o Spam Zine e outros mailzines de circulação bissexta como o K (http://kzine.cjb.net) e o Damnzine (http://www.damnzine.cjb.net) haviam se reunido para fazer uma greve. Nossas reivindicações eram simples: remuneração digna, amor livre e gostosinho e a paz mundial. O Sindicato de E-zines finalmente sucumbiu ao fracasso retumbante de nosso movimento, e cá estamos de volta ao seu mailbox. De qualquer modo, obrigado a você e a todos que sentiram falta da gente. Um beijabraço pra ti e juízo (ma non troppo)! 
     
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inagaki: O Spam Zine agradece a valiosa colaboração de Chico Buarque, de quem tomamos emprestados os versos da canção "De Volta ao Samba", gravada no álbum "Paratodos" de 1993. "De Volta ao Samba" metaforiza o período em que o marido da Marieta se afastou da música para escrever seu romance "Estorvo", publicado em 1991. Nada mais adequado para esta edição de retorno do SZ...
 
sabbag: Triste mesmo é saber que você é comandado.
 
orlando: Armadilhas. Tantas, Cristo, tantas.
 
ian black: Há alguns dias eu sonhei com Saddam Hussein, ele mesmo, o ditador. Ele possuia um Del-Rey, e dirigia muito mal.