086
27 de janeiro de 2003
são paulo curitiba belém
salvador
>>>
n e s t a e d i ç ã
o:
quéde spam zine?
- o cachorro comeu - o futuro sem aviso prévio
- vire à esquerda - os peitinhos da
filha do aerosmith - todavía hay tiempo
- o que aconteceu a joão daiara
- ong's e a toalha do
donald
>>>
perguntar não
ofende
Quéde Spam Zine, quéde?
Agora, em tom ameaçador: DEVOLVE A PORRA DO
SPAMZINE!
Agora, meiguinho: ahhh, plisiiiiiii, devolva o
SpamZine!
Agora, falando de telemarketing: Senhor, quando a SpamZine vai
estar voltando?
(aliás, é O zine ou a Zine? O, né? Então tá)
Agora, em tom de palestra chinfrim: A sociedade exige, a nível
de zine, os ciclos de publicação enquanto exposição ao público de
SpamZine.
Chega? chega. acabou a imaginação.
>>>
introdução à guisa de editorial
Não cola mais dizer que o (a?) Spam Zine atrasou porque o pneu do trem
furou, ou porque o cachorro comeu minha lição de casa, ou porque a camisinha
furou, ou porque tive lumbago na minha sobrancelha e peguei alguns dias de abono
médico. Só digo que eu me responsabilizo pessoalmente pelos últimos atrasos, e
que espero poder regularizar a entrega das próximas edições. Pano rápido.
=)
* * *
A fim de aliviar a síndrome de abstinência de nossos leitores, mais uma vez
o Spam Zine vem em dose dupla. Nesta edição 086, temos:
- Suzi Hong, que no editorial deste primeiro Spam Zine de 2003 utiliza a
implantação do novo Código Civil para discorrer a respeito de Tempo e
Futuro.
- Fabio Danesi Rossi, jornalista e blogueiro (estou deveras preocupado
com o futuro deste rapaz). Responsável pelo excelente blog FDR (
http://fdr.blogspot.com), Fabio nos brinda
com um dos melhores textos já publicados por este e-zine.
- Vladimir Cunha. Ex-colaborador das revistas Play e Bizz, nosso homem em
Belém do Pará teve seu nome espalhado por toda a Internet tupiniquim devido ao
sucesso de seu texto "A Primeira Festa de Aniversário de Mano Wladimir". Se você
é um dos poucos incautos que AINDA não leu esta pequena pérola, recomendo uma
busca no Google (encontrei mais de 100 resultados). Para sua
avant-première no Spam Zine, Vladimir nos traz um impagável texto sobre a
segunda parte da trilogia cinematográfica "O Senhor dos Anéis".
- Marcelo Barbão, um de nossos melhores quadros. O homem por trás dos
boletins barbônicos colabora nesta edição com algumas reminiscências de sua
adorada Buenos Aires. Leia ao som de Astor Piazzola ou Soda Stereo, conforme seu
humor.
- Ana Maria Gonçalves, escritora que mantém um blog (
http://udigrudi.blogspot.com), e
que publicou recentemente o romance "Ao Lado e À Margem Do Que Sentes Por
Mim". Este livro, aliás, também tem um blog. Visite
http://entrelivros.blogger.com.br e
você entenderá melhor essa história. O SZ publica o primeiro
capítulo deste romance, e recomenda fortemente que você entre em contato
com a autora a fim de encomendar o livro e descobrir como termina a
história. Escreva para a Ana:
[email protected].
Além dos textos desta edição, todos os assinantes receberão também o
SZ 087, composto exclusivamente por colaborações
oriundas de Campos de Goytacazes. As colaborações desta cidade carioca
foram arregimentadas por nosso correspondente campista Jorge Rocha,
inquieto irmão de armas que participa de inúmeros projetos na Internet, dentre
os quais destaco o
Mão Única, o
Vortex Você, o
Falaê!, o
Tímpano e o
Urgente!. O cara parece ter formigas
nas veias. Além de toda essa produção, ainda está tocando um mestrado e tem um
puta livro engatilhado no bojo: "Palavras Infelizes e um Meio Sorriso". Vocês
ainda ouvirão falar muito nesse tal de Jorge Rocha...
>>>
editorial
suzi
hong http://planeta.terra.com.br/arte/vastoceano/blog.htmO
novo Código Civil Brasileiro, cujo projeto original é de autoria do jurista
Miguel Reale, entrou em vigor dia 11 de janeiro. Da sanção presidencial até a
entrada em vigor no novo Código (a tal da "vacatio legis"), decorreu um ano -
tempo suficiente, do meu ponto de vista, para que advogados, juízes e promotores
estudassem a nova lei, e a imprensa divulgasse as principais mudanças à
sociedade.
Não há dúvidas, entretanto, que muitos dos artigos do novo
Código irão gerar polêmicas em nossos tribunais, como por exemplo, o fim da
preferência de herdeiros nos processos sucessórios (cônjuges, descendentes
e ascendentes terão, segundo o novo Código, o mesmo direito à herança do
falecido) e a opção do marido em usar o sobrenome da esposa após o
casamento.
Para não encher a paciência de vocês, não vou me alongar neste
assunto - o qual foi apenas um pretexto para falar de tempo e futuro.
* *
*
Mal começamos o ano de 2003, alguns cheios de expectativas, resoluções,
projetos, outros, mais céticos, talvez indiferentes, e temos pela frente uma
ameaça de guerra no Oriente, um novo Presidente da República ainda em clima de
campanha presidencial, e que agora deu para fazer excursões em regiões
desfavorecidas do país, sem ter divulgado do que realmente se trata a Campanha
Fome Zero e de como ela será implementada. Temos também, repito, um novo Código
Civil em vigor, que nada mais é do que uma das leis mais importantes para a
sociedade, pois regula suas obrigações e direitos em várias esferas:
patrimoniais, pessoais, familiares, negociais.
E sobre todos estes fatos
exógenos às nossas vontades e interesses particulares, paira em posição suprema
o Tempo, que discreta e pontualmente, constrói o Futuro -- imaginação eterna de
nossas almas ansiosas, transubstanciado em Presente quando menos esperamos. É
bem verdade que o Tempo favorece alguns, ignora outros, intensifica medos,
corrói memórias. Não deixa de ser menos verdadeiro o fato de que o Futuro é por
vezes temido, esperado com honras de chefe de Estado, ou simplesmente
inexistente para muitos fodidos e desesperançosos que encontramos vida
afora.
Entretanto, o que não consigo negar, sem me cansar do constante
assombro que isto me traz, é o fato de que não há como fugir do Tempo e Futuro.
Minha história é prova disto. Acredito que muitas histórias atestam o mesmo.
Muito se falou na virada de ano: desde de se fazer um tal de "pacto social" a
singelos acordos pessoais com o Tempo. Falou-se de esperanças renovadas, de
nascedouros de sonhos, de búzios e astros. Porém, tudo permanece ilegível às
nossas retinas míopes ao que não é lógico, e incerto à fé e ao credo de cada
um.
Agora, passada a comoção coletiva tão comum em viradas de ano,
percebo que, a despeito de nossas convicções pessoais, o Tempo continua onde
sempre esteve, e o Futuro, constantemente transformado em presente, é acrescido
diariamente de mais e mais metas, de medo e imprevistos, e de fatos que, a
exemplo do que fará o novo Presidente e de como nossas vidas e nosso futuro
serão afetados pelo novo Código Civil, independem totalmente de nossas
vontades.
Até que ponto, então pergunto, seremos meros expectadores, e
por que não reféns, da passagem do Tempo e da aterrissagem do Futuro em campos
concretos?
Qual a validade e eficácia dos acordos que fazemos com o
Tempo, se sequer desconfiamos se a parte que lhe cabe será cumprida? O que é o
Futuro senão um amontoado desorganizado de sonhos mal acabados, projetos que
dependem disso e daquilo, e inúmeras questões impossíveis de serem
respondidas?
Okay, aí você me diz aquele velho chavão: "o futuro depende
de nós", "eu traço o meu destino". Será? Quantas das resoluções que você fez no
começo de 2002 foi capaz de cumprir? Você deu a volta por cima quando perdeu o
emprego, realidade cada vez mais comum no país? Conseguiu evitar que o ser amado
se apaixonasse por outra pessoa, por mais que você tenha se esforçado no
relacionamento?
Pois então, registro aqui meu repúdio à tal da
"independência do indivíduo". Somos infinitamente frágeis perante o Tempo que
passa sem escalas, e o Futuro que chega sem aviso prévio. Só nos resta, sem
qualquer conotação niilista, aceitar as regras deste jogo que se chama viver,
dispondo das melhores armas possíveis: uma razão que não pretere o sentimento,
uma consciência limpa e atuante, gratidão por tudo o que temos de melhor,
coragem para reconhecer o medo e a incapacidade nossa, imaginação para quebrar a
rotina e contornar problemas, e amigos, porque os laços humanos quase sempre
perseveram no Tempo e no Futuro.
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a caminho
fabio danesi rossi [email protected] O farol fechou. Ele
procurou o isqueiro e o cigarro no bolso do paletó. Ela se olhou no espelho do
quebra-sol e ajeitou o cabelo. Ele abriu a janela e acendeu o cigarro. O farol
abriu. Ela fechou o quebra-sol e virou-se pra ele. Antes de falar, ele falou,
imitando sua voz:
- Fecha a janela, querido.
Ela
sorriu.
- Sou muito previsível, não?
- Não, eu é que
sou.
- Você? Por quê?
- Eu sempre abro a janela antes de você
pedir para eu fechá-la.
Ela riu uma risada gostosa. Ele deixou a
janela um pouquinho aberta. Perguntou:
- Viro à direita ou à
esquerda?
- À direita. Não, à esquerda.
- À direita ou à
esquerda?
- À esquerda. Acho.
- Acho?
- À
esquerda.
Ele virou à esquerda.
- E
agora?
- Reto. Toda a vida.
- Reto toda a vida? Pela primeira
vez espero que ela não seja longa.
Estavam indo para um batismo.
Nenhum dos dois era batizado, mas agora seriam padrinhos de batismo. Ele tinha
certeza que o bebê despertaria idéias indesejáveis em sua mulher. Ela falou:
- É um bebê lindo, a cara da mãe.
Pronto. Ela
estava colocando o pé na água, vendo se estava fria ou não. Logo ia mergulhar.
Ele sempre estava certo, e como detestava estar! O mundo seria muito melhor,
pensava, se ele estivesse sempre errado. Resolveu mostrar que a água estava
fria:
- Todos os bebês são iguais, minha
querida.
Ela não se deteve.
- O Dudu não. Você vai
ver. Igualzinho à mãe.
- Pobre diabo. Quando eu era pequeno, morria de
medo de parecer mulher. Uma vez uma velha parou minha mãe na rua, me fez cafunés
repugnantes e perguntou: ‘como ela se chama?’. Velha maldita.
Ela
riu de novo. Farol vermelho. Ele continuou:
- Ainda bem que a
velha estava errada. Senão eu teria que ser lésbica. As lésbicas têm muito mais
bom gosto do que as heterossexuais.
- Pode ser. As mulheres são muito
mais bonitas e interessantes do que os homens. Ainda bem que nasci
mulher.
Bravo! Ele estava conseguindo mudar de assunto.
- É verdade que as mulheres são muito mais bonitas e
interessantes, mas, para apreciá-las devidamente, não se pode ser uma. A mulher
é melhor, mas, por isso mesmo, melhor é ser homem.
Farol verde. De
repente, ela mergulhou:
- Sabe, a gente devia ter um filho.
Ou filha.
Pânico.
- Minha cara, ter filho é levar
longe demais essa história de tamagochi.
Ela ignorou o
comentário:
- Filho não. Filhos. Deve ser muito chato ser
filho único. Graças a deus tenho irmãs.
- Ter irmãs, vá lá. Mas
filhos!
- Direita.
- Direita?
- Ali no posto, à
direita.
- Ah.
Ele, eles, virou, viraram, à direita.
- Lembre-se do Brás Cubas, minha querida. Não deixei a
ninguém o legado de nossa miséria. Botar alguém no mundo, sem consultá-lo antes,
é sacanagem.
- Como assim? Vai dizer que não gosta de
viver?
- Claro que gosto. Mas esse é o ponto. Gosto tanto que a idéia de
morrer me mata. Estraga tudo. Botar alguém no mundo, mostrá-lo Bach, Mozart,
mulheres, instigá-lo a amar a vida como eu a amo... deus, isso é terrível. Faz a
morte insuportável. Saber que você simplesmente desaparecerá e nunca mais terá
consciência de novo. Simplesmente desaparecerá, como se nada nunca tivesse
existido.
- E se houver um deus?
- Se houver um deus, ele tem nos
enganado direitinho. Além do mais, não interessa se existe ou não existe deus. O
que interessa é a vida eterna. Ou a gente é eterno ou a gente nunca vive. O meio
termo é uma ilusão.
- Ilusão ou não, continuo achando que morte não é motivo
pra se negar a vida. Além do mais, não é pelo filho que quero ter um filho. É
por mim. Está em mim querer ter um filho.
- Está em você? A história do homem
é a história da luta para se libertar da natureza irracional! Quantos
sacrifícios foram feitos! Quantas batalhas vencidas! E agora vem você se curvar
docilmente ao nosso inimigo!
- Essa pode ser a história do homem, querido.
Não da mulher. Esquerda, esquerda.
Ele virou à esquerda. Na
contra-mão, uma jamanta.
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os
talibãs da terra média
vladimir cunha [email protected]
- Moleque, muito
firme os peitinhos da filha do Aerosmith.
Olho para trás e vejo dois
garotos de cerca de 14 anos babando pela Liv Tyler, maravilhosa em um vestido
branco leitoso que revela o que há de melhor em sua anatomia. Os dois parecem
não estar nem aí para a história do filme. Ao contrário do resto da moçada, que
vibra nas cenas de batalha mas ignora os atributos físicos da "filha do
Aerosmith".
É nessas horas que tenho a certeza de que cultura pop demais
faz mal à cabeça. Um sujeito que vai vestido de jedi para a estréia de O Ataque
dos Clones, por exemplo, jamais deve ter jogado bola na vida. E se jogou, foi no
gol. Isso porque a molecada não tinha ninguém melhor para pôr no lugar. E o que
dizer daquele seu primo fã de Star Trek que conhece a fundo a mecânica da nave
Enterprise e adora se fantasiar de Spock com orelha pontuda e tudo? Bem...é
melhor deixar para lá.
O fato é que tem que leve essas coisas a sério.
Esse ano, num ato de extrema loucura, resolvi assistir à segunda parte de O
Senhor dos Anéis no dia da estréia. Na fila, que dobrava o quarteirão, vi um
grupo vestido de cavaleiros medievais; um casal todo orgulhoso porque sabia
falar a língua dos elfos e um garoto que chorava copiosamente por causa do
Frodo. Tive que aturar ainda alguns jogadores de RPG discutindo o tamanho
do cajado de Gandalf e um evangélico que tentava nos convencer de que se
somarmos as letras do nome de um dos personagens do filme o resultado será 666,
o número da Besta.
Quando o porteiro finalmente liberou a catraca foi
aquela coisa. Gente correndo para a sala de projeção como se estivesse em um
festival de rock e nerds gritando em êxtase. Um rapaz do meu lado chegou a dar
uma cambalhota no saguão do cinema.
O lugar estava lotado. E para o meu
azar, o único assento que encontrei foi ao lado de uma senhora acompanhada do
filho pequeno, que lia para ele todas as legendas e explicava o que se passava
na tela.
- Mãe...
- Que foi?
- Porque o gordinho chamou o
hobbit de "meu Frodo"?
- Porque ele se gostam, filho.
- Se gostam
como?
- Se gostam...
- Mãe...
- O que foi?
- Perdi minha bolinha.
Cadê a minha bolinha?
Saco. Tive que mudar de lugar. Por sorte encontrei
uma poltrona vaga, justamente na frente da dupla de Buttheads fanáticos pela Liv
Tyler. Esses sim sabem das coisas.
Não que As Duas Torres seja ruim. Mas
depois de uma certa idade não dá para engolir algumas coisas. O arianismo
misógino do Tolkien é meio incômodo mas não chega a comprometer. No
entanto, o que mais me incomodou mesmo foram alguns detalhes que ninguem
consegue me explicar direito. Onde Legolas arruma tantas flechas? O cara flecha,
flecha e tá sempre de algibeira cheia. De onde elas vêm? Quem as fabrica? E
Aragorn? Como ele consegue correr três dias seguidos sem comer e sem dormir? Red
Bull? Pó de guaraná? Anfetaminas da Terra Média?
E por mais estranho que isso possa parecer, a
princesa ainda fica afim dele, um cara que passa o filme inteiro sem tomar banho
e sem escovar os dentes. Parece até aqueles lókis do centro da cidade que vendem
artesanato e tatuam a cara da Janis Joplin no braço com agulha de costura. Para
mim é um mistério como esse povo é cobiçado por patricinhas hippie-chics e
estudantes universitárias. Tu passa pelos caras e eles ficam te chamando de
"maluco" e oferecendo cordão de miçanga e tornozeleira de conchinha. Se tiver
usando camisa de banda é pior ainda, porque aí não adianta nem dizer que não
quer comprar nada porque a imagem que eles tem do roqueiro é a daquele clone
do Raul Seixas que toma vinho quente, anda pra cima e pra baixo com um
vinil do Deep Purple todo riscado debaixo do braço e adora ouvir "rock
pauleira" ("Iron Maiden, só até o Paul D'Iano" é a sua frase preferida). Ou
seja: alguém que está a um passo de levar para casa um duende de durepóxi ou uma
folha de maconha de arame pendurada num fio preto.
Teve inclusive uma menina do curso de jornalismo da
minha faculdade que fugiu com um figura desses. Dos Anjos era
bonitinha, tomava banho e se vestia legal. Mas aí arrumou o
namorado, ficou toda desgrenhada, mudou o nome para Brisa e foi
vender artesanato na Praça da República. No curso ela ganhou o apelido de
"Barata Cascuda" e sua falta de higiene era tanta que um dos professores chegou
a exigir adicional de insalubridade para continuar a dar aula. Com o Aragorn deve ser mais ou menos assim. Vai ver a princesa,
cansada do tédio e das formalidades da nobreza, deve enxergar algum charme
debaixo daquela fedentina toda e acha que o cara "é muito louco". Isso até
ela virar a maior dondoca medieval depois que ele começar a governar a Terra
Média. Imagina os dois casados daqui a uns dez anos.
- Aragorn, vai tomar
banho
- Eu já tomei...
- Quando?
- Ontem...de mar
E Gollum? Pelo
que entendi a aventura acontece num lugar semelhante à Europa. Então, como
Gollum atravessa montanhas geladas, planícies e rios só com aquela tanguinha?
Como pode alguém não sentir frio numa situação dessas? Outra coisa que me
encucou foi a tal imortalidade dos elfos. Se os caras não morrem nunca, porque
existem elfos de meia idade e elfos adolescentes? Por acaso chega uma hora em
que eles podem parar de envelhecer e escolher em que idade ficar? E se isso não
for possível, o cara está condenado a ser um elfo velho e decrépito para
sempre?
Tirando isso, As Duas Torres até que é um filme simpático. Na
verdade, ele acaba sendo tudo o que os novos episódios de Star Wars tentaram ser
mas não conseguiram. Quem curte esse tipo de coisa tem motivos de sobra para
enfrentar filas enormes, cinemas lotados e gente gritando quando as luzes se
apagam e os créditos iniciais aparecem na tela. É um videogame em forma de
cinema, feito sob medida para uma platéia que sai de casa para se deleitar com
uma história cujo enredo ela já conhece previamente de cor e salteado. Sem
alarmes e sem surpresas. Depois é só comprar o livro, a camiseta, os bonecos, a
revista-pôster e assistir ao DVD, ao DVD de luxo com 15 horas de extras e ao DVD
quádruplo importado com 35 horas de extras, holograma, videogame, galeria de
fotos, mapa da Terra Média, uma máscara de orc e comentários em áudio do
diretor, do produtor, do elenco todo e do cabelereiro do ator que faz o
Aragorn. As listas de discussão na internet terão assuntos para vários meses e
todos travarão imensos debates sobre se é melhor comprar o DVD, o DVD de luxo ou
o DVD quádruplo, o que levará os fãs a assistirem a todos eles mais uma vez
antes de darem a sua opinião.
Bem que um amigo meu avisou:
- Vais ver O Senhor dos Anéis no dia da estréia? Tás
fodido, o cinema vai estar cheio de talibãs da Terra Média. Aposto que todo
mundo vai aplaudir quando a águia voar.
- Que águia, rapaz? Esse filme não
tem águia.
- Tem sim, filme de RPG sempre tem uma águia pelo
meio.
Águia mesmo não teve. Mas em compensação teve a "filha do
Aerosmith". Foi vendo-a ocupar uma tela de cinema inteira com o seu vestido
branco quase transparente que eu descobri onde se escondiam as verdadeiras Duas
Torres. Aragorn é porco mas não é bobo.
>>>
silêncio
marcelo barbão [email protected]/bigger>/fontfamily>/center>
/fontfamily>A
quinta-feira estava fria e molhada. Chovia, mas era uma chuva fina e embaçava
meus óculos. Eu estava sentado num banco da Plaza de Mayo nesta tarde de quinta.
Ao voltar para a cidade retomei velhos hábitos que me davam uma sensação de
conforto. Parecia que retomava uma velha rotina, apesar de nunca ter realmente
morado nesta velha cidade. Vivia através das lembranças e recordações de outros.
Através dos contos e historietas de passados que me davam ciúmes e que, muitas
vezes, teria preferido não ouvir. Pois agora tenho estas estranhas
saudades.
Na minha frente uma procissão de senhoras que num grande círculo
marchavam pela vida. Senti um choque muito grande quando vim aqui pela primeira
vez, uma terrível sensação de amor e ódio concentrados. Mesclados com muita
esperança e resignação. Elas caminhavam na tarde gelada de quinta-feira em
frente à Casa Rosada. Eu vinha aqui vê-las desde a minha primeira visita à
cidade. Há muito tempo.
Cheguei mesmo a quase desmaiar de cansaço nas noites de vigília mas
resisti quase que bravamente. Mais por vergonha, é claro, que por outro
sentimento. Afinal, se elas, que eram velhinhas, conseguiam, como eu não ia
conseguir manter a vigília durante toda a noite? Claro que dormi como um
desesperado o dia seguinte inteiro e tive que cuidar com muito cuidado de minhas
bolhas, mas me senti como se tivesse cumprido meu dever.
Hoje, era diferente. Eu simplesmente olhava. Apesar de toda a simpatia,
participar da marcha seria como fazer parte de algo que não me pertencia, de
forçar minha intrusão. Além do que, eu estava na minha posição mais do que
preferida, a de observador meio desatento do mundo que me cercava. Preferia isso
a tomar parte ativa. Para ser parte de algo, era necessário uma boa dose de
crença e eu havia perdido todo tipo de crença em algum momento do passado.
O ficar parado na chuva fina, começou a congelar meus ossos. Uma dor
começava a me incomodar e pensei se não seria este um bom momento para retomar o
hábito de tomar um mate quentíssimo. Será que me reacostumaria com o gosto
amargo? Lembro-me que passei anos até me entrosar com esse velho costume da
cidade. Uma das coisas que me levou a tomar mate, devo confessar, foi o terrível
gosto do café daqui. Comparado com o de lá, prefiro tomar mate.
- ¿Cansado, hijo?
Sem perceber, imerso nestes estúpidos pensamentos cafeínicos, não havia
percebido a mulher que havia sentado ao meu lado no banco. Era uma das senhoras
da marcha, talvez a mais velhinha de todas. Eu já havia notado seu andar
difícil, sua necessidade de um braço amigo e seu olhares entristecidos. Acho que
ela só conseguiu dar umas três voltas. As colegas a deixaram no banco porque sua
fraqueza atrapalhava a marcha, mas ela parecia não ligar.
- Não, eu não estou. E a senhora?
Mas ela não respondeu. Entre a sua pergunta e minha demorada resposta,
seu espírito já estava distante. Acho que ela adormeceu. Não tenho certeza.
Olhei para o lado e ela estava sentada como antes, mas seus olhos estavam
fechados. Sua cabeça embranquecida estava envolta num “pañuelo” branco. Bordado
nele o conhecido símbolo das mães que buscam seus filhos, filhas e netos. Que
buscam sua dignidade, que buscam sua justiça. Sentado naquele banco, com uma
senhora que mal conseguia ficar em pé por quinze minutos e que, de tão cansada,
dormia sentada na chuva, eu senti muita raiva das injustiças do mundo. Mas
também senti uma tremenda incapacidade dentro de mim. Esta velhinha passou seus
últimos 25 anos em busca de pessoas desaparecidas. Não há nenhuma esperança de
estarem vivas e, mesmo as esperanças de seus corpos serem encontrados, é mínima.
Mas ela não desiste. Ela nem está atrás do dinheiro que querem pagar para que
tudo fique esquecido.
Eu passei estes anos todos adiando um encontro muito mais simples. Com
alguém que eu sei onde mora, que nunca se escondeu e que sempre esteve me
esperando. Qual dos dois esteve “perdendo tempo”?
Suas mãos enrugadas trazem um pequeno saquinho de plástico onde é
possível ver velhas e amareladas fotografias. Alguns jovens de terno ao redor da
mesma senhora, vários anos mais nova. Nos rostos dos jovens a alegria gerada
pelos encontros familiares regados a carne, cerveja e vinho, nos olhos da mulher
já se vê uma certa melancolia vinda da intuição. Será a última foto guardada de
filhos perdidos para sempre? Uma pequena corrente escapa das mãos crispadas ao
redor deste plástico. É um rosário, a fé que anima estas mulheres. Fé que eu
mesmo deixei para trás há muito tempo.
Olho para a mulheres que continuam sua vigília circular ao redor dos
assassinos e ditadores que sumiram com seus amados, que sumiram com seu passado
e sumiram com seus sorrisos. Tudo secou menos as lágrimas das lembranças e as
lágrimas da esperança.
A “minha” senhora ainda segue sua vigília sonolenta.
Em momentos penso que seus lábios se mexem, como naquelas preces
semi-silenciosas que os velhos fazem nas tardes ecoantes das igrejas. Mas acho
que é minha ilusão de ótica. Meus óculos já estão encharcados com a chuva e a
distorção aumenta nas minhas pupilas. Talvez seja por isso que olho para a Casa
Rosada e a vejo vermelha como se coberta de sangue.
Olho para seu rosto. Não sei se são lágrimas ou se é a chuva que
escorre pela sua face. Mas entendo que, mais do que chorar pela sua miséria,
pela sua perda e pela certeza de que vai morrer sem nunca descobrir o que
aconteceu com os seus, esta velhinha chora por mim, pelo que fiz da minha vida,
pelos erros que cometi, pela desesperança que me conquistou, pela incerteza que
alimento dentro de mim, pelos anos jogados fora, pela falta de sonhos e pelas
certezas às quais me agarrei tão intensamente que consegui matar o que poderia
haver de interessante em minha alma. Ela sentia tão intensamente o fracasso da
minha vida que acordou repentinamente dos meus sonhos e percebendo a força do
meu olhar sobre seu rosto enrugado e belo, disse:
- Todavía hay tiempo, hijo. Todavía hay tiempo.
Neste momento, a chuva ficou mais forte e duas outras senhoras
aproximaram-se do banco. As três foram caminhando até um táxi que as levou
embora. A marcha, aos poucos foi se esvaziando. Saí caminhando por Defensa, um
pouco sem rumo. Passando por um prédio, apesar da chuva, consegui ver um velho
olhando, através da janela, com um rosto triste para o infinito. Eu conseguia
ver o que ele via. Na Plaza Dorrego, sentei numa mesa perto da janela e,
enquanto assistia a noite cair, me calentei com muito tango e pouco vinho.
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onde nadam os peixes encantadosana maria gonçalves [email protected]Aos dois anos de idade
soltei-me da mão de minha mãe e atirei-me ao lago. Se puxasse um pouco pela
memória talvez soubesse precisar uma data, uma referência de mês ou estação do
ano, mas não me convém. Importa-me muito mais o ato, talvez o meu primeiro de
libertação. Ou então, aquele que prendeu definitivamente o meu destino ao
destino das águas, na feitura de lagos maiores, de rios, e finalmente de mares.
Durante anos essa história esteve esquecida, guardada em algum canto esperando
seu lugar no fluxo das memórias que, não sendo recorrentes, são especiais.
Fazem parte daquele tipo de lembrança que pode esmaecer e até perder
todas as cores; mas basta um leve pousar de olhos sobre um fragmento, um cheiro
captado no rastro de um vento vindo de longe, um gosto antigo bailando na boca,
e ela, a tal memória, revive. E preenche-me de tal maneira como se nunca tivesse
me abandonado, como se não fosse tempo passado, como se estivesse sempre
acabando de acontecer. É essa a sensação que me acomete agora, trinta anos
depois, de frente para esse mar: a de nunca ter tirado os pés de dentro da água
do lago para o qual me atirei aos dois anos de idade, aproveitando o único
momento de descuido de minha mãe.
Estive quase toda a manhã pensando em como as coisas importantes que
nos acontecem dependem apenas de um derradeiro segundo, nem mais nem menos. É
como se a vida inteira fosse se acumulando naquele exíguo espaço de existência
temporal, equilibrando-se perigosamente às margens de um precipício, à espera de
uma atitude corajosa ou de um elemento desencadeador, para então resolver-se
inteira. Ela, a vida, anseia pelo nosso momento de descuido para acontecer
simplesmente, sem as amarras e os cuidados com que a mantemos em permanente
vigilância. Seja sob as bençãos daquele Deus que, mesmo quando não invocado,
está sempre ao serviço dos loucos, dos apaixonados e das crianças. Ou sob as
asas negras do anjo dos arrependimentos. E no meio da vida, no meio do salto, da
fuga ou da corrida desenfreada, de um lado e do outro do precipício, estamos
nós, a quem raramente é permitido saber com antecipação o quê ou quem nos rege.
Se o nosso próximo instante será fruto de agir ou de sofrer uma ação: a vida é
sempre um passo certo ou um golpe do destino, quase não há meio termo. É nisso
tudo que penso enquanto o sol a pino projeta minha imagem vertical na areia
quente e traz-me de volta a miragem do lago.
Não sei quantas vezes, em criança, pedi que me contassem a história do
lago. Na verdade, todos o chamavam de prainha, Prainha do Niterói. A centenas de
quilômetros do mar e formada por um braço do Rio Misericórdia, onde há muito
tempo funcionou a draga de João Daiara. Foi quando o vilarejo começou a se
formar, servindo de passagem e pouso de tropeiros, acolhendo um e outro que
descobria a fertilidade da terra roxa por debaixo dos relvados. Quase apenas
homens em ruidosas comitivas que serpenteavam centenas de quilômetros entre as
montanhas de Minas Gerais, transportando o gado para as regiões de abate mais ao
sul do país. No amontoado de casinhas de pau-a-pique - que mais tarde veio a se
chamar Ibiá - eles alugavam redes para uma noite de maior conforto, conseguiam
uma tina de água para um banho quente, faziam uma refeição mais reforçada e
cuidavam do gado doente ou cansado. E planejavam o restante da viagem, muitas
vezes ainda longe do destino. Aos poucos, um e outro tropeiro se desgarrava e
ficava por ali, onde tudo ainda estava por fazer e ninguém conhecia os donos da
terra; ela era de quem chegava. De forma que acabaram por surgir as moradias e
as vendinhas com as mercadorias a granel, arroz, feijão, café, milho, farinha,
carne salgada, fumo de corda, cachaça.
Durante anos ouvi essa história. Da boca da minha mãe, do meu pai, dos
tios e avós, de quem se dispunha a falar-me da Prainha, vezes e vezes seguidas.
Eu ficava mais atenta a um ou a outro detalhe, já que conhecia todas as
personagens. E em muitas noites claras de lua cheia, ainda menina de sete ou
oito anos, transportava-me em pensamento para a beira do rio para
encontrá-las acocoradas sobre os calcanhares, ao redor de duas ou três
fogueiras. Os homens conversavam e tocavam violão, as vozes ruidosas
ensandecidas pelo brilho da lua cheia e pelos goles de cachaça. Já eram bastante
familiares as figuras que minha imaginação ia tecendo, inspirada pelas histórias
que contavam sobre paragens distantes e coisas do antigamente. Apresentavam-me
os lugares que já existiam havia tanto tempo lá de onde vinham ou para onde iam,
e que eu ainda não conhecia. Falavam do mar. E para que eu não os ouvisse
direito, sussurravam sobre mulheres, saudades, dores de amor, tristezas e
alegrias equilibradas na corda tesa da viola. Suas canções quase sempre
lamentavam os companheiros mortos durante as viagens, os amores abandonados ou
impossíveis, as paixões comprometidas, os encontros furtivos. O tipo de amor que
pode enlouquecer um homem solitário, como dizem ter sido o que aconteceu a João
Daiara.
Antes chamavam-no João da Draga, por causa do maquinário que montou no
distante rancho do Niterói. Ele aspirava o leito do rio e abastecia de areia as
construções que iam sendo erguidas no vilarejo, que crescia seguindo o percurso
tortuoso do Rio Misericórdia. Naquele tempo a Prainha não era nada além de um
local onde o rio se alargava um pouco mais e tinha em sua margem a areia ruim de
vender, quase um cascalho que não seria aproveitado antes de muito bem peneirado
e escolhido. Até que um dia, nem este e nem qualquer outro tanto de areia tirado
do Misericórdia, ali na draga do João, era mais para vender. A grande máquina
trabalhava dia e noite, cuspindo areia e água, formando dunas que João Daiara
incansavelmente espalhava pelas margens do rio. E ele repetia para quem quer que
fosse lá em busca de areia:
- É da Iara! É da Iara!
O João foi ficando cada vez mais estranho, calado e ocupado dia e noite
naquela tarefa interminável de construir a Prainha e vigiar para que ninguém a
tocasse. Que ninguém tirasse dali, daquela ordenação que só ele conhecia, um
grão de areia que fosse. E a draga ao lado, funcionando sem parar, cavando o que
é hoje o lago, de cuja profundidade todos falam mas que ninguém nunca se deu ao
trabalho de medir. Talvez não interesse, talvez decepcione, e todos preferem
manter o que já se tem por certo há tantos anos: que o lago não tem fundo.
Fala-se também que João Daiara ainda vive lá, enfeitiçado pela Iara que numa
noite de lua cheia viu surgir no meio do rio e pedir uma praia para descansar,
um lago onde se abrigar. Durante muito tempo, depois que João Daiara sumiu sem
deixar vestígios, a draga ainda funcionou sozinha. Mas desordenada, jogando
areia como se montasse uma barricada, um tanque, a morada da sereia do rio. O
Misericórdia foi então se dividindo, seguindo seu novo curso e bandeando lá para
o outro lado, formando uma nova margem bem no meio e deixando do lado de cá o
lago de João Daiara. Hoje, com os muitos anos que se passaram, com as chuvas e o
acúmulo dos restos das cheias do rio, o curso desviado do Misericórdia e a
Prainha apenas se unem quando acontecem grandes enchentes. No resto dos dias,
ficam para sempre separados pela ilhota, coberta de densa vegetação.
Muito antes daquele meu primeiro contato com o lago, ele já tinha
perdido a sua memória mágica, pouco se falava da história de João e sua Iara.
Tornara-se apenas um local de lazer, onde aos domingos algumas famílias faziam
pic-nic e as crianças construiam castelos na areia, sempre advertidas de que
deveriam manter-se fora do lago sem fundo. Lá vivia um monstro, uma maldição que
havia tempos endoidava quem se atrevia a entrar nas águas. E aquele pedaço de
rio foi ficando esquecido, abandonado, e nem mesmo servia mais de cenário para
os moleques que procuravam os lugares de nadar escondido. Era calmo demais. Não
me lembro de terem voltado comigo ao lago. Talvez minha mãe tenha preferido não
se arriscar a mais um momento de distração e povoado o meu universo infantil com
outros tipos de descobertas. Aos domingos, depois do almoço, quando toda a
família se reunia na casa da minha avó, eu me dedicava às incursões no enorme
quintal. A casa lá na frente do terreno, os primos e outras crianças entretidos
com brincadeiras que nem sempre me interessavam. A tarde preguiçosa escorrendo
por entre as folhas das parreiras transformadas em caramanchão, onde os adultos
conversavam. Eu fugia para os meus cantos preferidos, onde brincava sozinha ou
com meus amigos invisíveis. "Menina estranha", às vezes diziam, mas deixavam-me
ficar pelo quintal, a observar a atrapalhação de patos e galinhas, o cachorro
cavando a sombra, o vai-e-vem das roseiras recortadas nas costas das formigas.
De companhia, o murmurejar de águas, doce, constante, monótono, o Misericórdia
correndo tranquilo do outro lado da cerca.
Provavelmente havia muito tempo que ninguém ia até lá, o arame
retorcido da cerca estava recoberto por folhagens. Enferrujado, cedia ao mais
leve puxão no local onde se unia à tora de madeira apodrecida que o sustentava.
Durante alguns dias eu apenas o abservei, através de uma janela que abri por
entre as folhas. As águas barrentas traziam restos de chuva de algum lugar mais
acima, instigando-me a saber de onde vinham e para onde iam. Às vezes eu mesma
jogava um pedaço de madeira, uma flor, uma ramada de árvore que não afundasse, e
corria paralela à cerca até o limite com o quintal vizinho. Em jogos de aposta
comigo mesma, queria saber se o objeto seguiria rio abaixo ou se sumiria nas
águas, dragado pelo miolo de um redemoinho cujas proporções dependiam sempre do
tamanho do que fora atirado.
Um dia descobri as cascas de bambu, abundantes nas margens do rio.
Quando puxadas suavemente, as camadas externas se desprendiam do tronco fino e
se enrolavam num cone oco. Esse, se atirado a uma certa velocidade e num
determinado ângulo, atingia a água do rio e afundava, como se fosse desaparecer.
Mas logo em seguida ressurgia num salto vigoroso, como que expulso por uma força
maior vinda do meio das ondas circulares. Dançava como um pião e ia perdendo a
força até se deitar e ceder ao domínio da água, rolando correnteza abaixo.
Querendo saber até onde, um dia atravessei a cerca.
Do lado de lá o rio era ainda mais fascinante, um grande animal a
rastejar, poderoso, soberano, arrastando consigo tudo que tentava atrapalhar sua
caminhada. Fui perdendo o medo e seguindo-o até cada vez mais longe, pé ante pé
na estreita trilha formada entre a extensa fileira de bambus e o solo úmido e
musgoso da sua margem; a qualquer hora do dia, sempre à sombra. Até que o
reencontrei, o lago. O caminho à frente se fechava, o que me abrigou a entrar um
pouco em meio ao bambuzal, à direita, sentindo que me afastava do rio. Pensei em
voltar, com medo de me perder, mas ainda podia ouvi-lo seguindo um pouco mais
adiante. E olhando através de uma pequena abertura entre os bambus, lá estava o
lago, exatamente como eu me lembrava dele naquela tarde. Na tarde em que, no
colo de minha mãe eu o olhava por sobre os ombros dela. Ela se afastando em
passos largos e nervosos do único lugar onde eu queria ter estado até
então.
Não havia mais sinal dos pic-nics, nem dos castelos de areia, nem das
conversas em domingos de sol. Apenas o completo abandono de um amontoado de
histórias, lembranças, passagens e pessoas que muito deixaram por ali. Um lugar
antigo, longe de ser bonito, a areia grossa e clara coberta por uma vegetação
rasteira que havia muito tempo não experimentava passos, mas que estava
impregnada de pegadas. É claro que na época eu não tive esta percepção, e
acredito que o meu fascínio foi pela vida por acontecer, a lentidão, a espera,
os vazios, as descobertas possíveis. A prontidão com que aquele lugar obedecia
ao meu comando de brincar de "-Estátua!". E paralisávamos os dois a nos
observar, ele se fazendo presente nos espaçados estalares de gravetos, no vôo
cego dos insetos. Na languidez com que o sol aparecia apenas durante algumas
horas da manhã, espreitando por entre a densa folhagem, e fazendo daquele um
esconderijo perfeito para a minha brincadeira de menina estranha.
Representávamos muito bem o nosso papel, eu e aquela estática natureza,
às vezes por horas seguidas debruçadas uma sobre a outra. Eu e as árvores
mirando o lago parado e ele nos espelhando de volta. Um eco do nada, uma
antecipação de algo importante que estava para acontecer, e que íamos adiando.
Às vezes por puro medo de não saber o quê, ou por querer prolongar a sensação de
anti-clímax frente a uma revelação grandiosa, que seria só nossa. Um segredo
terrível que nos libertaria para sempre da condição de diferentes, do
estranhamento a que estávamos tão acostumados.
Pequenos fragmentos de vida às vezes vinham à tona. Minúsculos peixes e
anfíbios que nadavam ali pela margem, esperando que um fruto se despregasse das
árvores e afundasse nas águas, com o peso e o estardalhaço de mil toneladas. O
choque deslocando gotas que saltavam no ar e caíam de volta na lisa superfície
do lago, liberando ondas que se propagavam e deformavam as sombras das árvores
ali descansadas. Os troncos eram transformados em membros tremulantes e amorfos,
e os insetos levantavam vôo assustados, e o vento parecia soprar triste chorando
no bambuzal. Durante alguns segundos eu tinha medo, muito medo de que os
segredos que habitavam o fundo daquele lago aproveitassem o momento em que a
natureza perdia o controle e conseguissem se libertar. Nem respirava, até que
tudo fosse voltando ao normal e eu me sentisse novamente segura para, sem mais
tremer, deitar delicadamente um minúsculo pedregulho sobre a água e observá-lo
lentamente hesitar e afundar. Hesitar e afundar, durante um tempo que parecia a
eternidade, percorrido naquele caminho inacreditavelmente cristalino para tal
profundidade. Apenas depois de muito acompanhado pelos olhos, o pedregulho
entrava naquela região nebulosa onde já não havia mais luz. E que devia ser o
morada de todas as histórias antigas, de lendas e maldições, das lágrimas, dos
encantamentos, das mágoas e dos sustos. Dos rostos mirados, dos seus temores, e
ainda de todos aqueles pedregulhos que eu ia atirando, dia após dia, talvez na
esperança de aos poucos fazer o lago transbordar.
Eu sentia um misto de temor e desejo de que o lago se desencantasse, e
em alguns dias isto era quase iminente. Quando pesava no ar um misterioso
prenúncio de alegria, eu me inquietava achando que o momento fosse se
precipitar. Era evidente que bastava um simples desequilíbrio, um encontro
fortuito, uma mínima borboleta que destoasse do tom de quase luto fechado do
ambiente, e a mágica aconteceria. Primeiro, abrindo as densas folhagens e
esparramando no espelho calmo e límpido do lago, o céu azul e a nudez
verde-musgo da vegetação. Depois, soprando uma brisa suave que levava embora o
mofo das paragens e tocava flautas pelo bambuzal, acordando pios, trinados,
chilreios e assobios. Trazendo de volta uma ruidosa revoada de pássaros, que
disputariam espaço com zumbidos e sussurros de milhares de insetos de asas
delicadas e coloridas. E os raios de sol batendo no lago e projetando-se em
troncos antiquíssimos, alojando-se por entre as rugas de jequitibás, ingazeiros,
ipês e jatobás. Desalojando trepadeiras, bromélias e orquídeas de todas as cores
e formas. Azuis, roxas, brancas, lilases, rosas, amarelas, vermelhas; lisas e
rugosas. Pelo chão haveriam de espalhar-se leguminosas, e samambaias chorariam
pelos barrancos em meio a juncos, tudo com um viço próprio para joaninhas,
saúvas, grilos, minhocas e centopéias. Uma confusão de cores, um misturado de
formas, um excesso de vida, e cheiros que fugiam da terra e adoçavam-se nos
perfumes de angélicas e jasmins. E o lago então, se já estivesse pronto, sairia
de seu estado de contemplação. Bastava isso. Só isso, um breve encontro, um
instante em que ele se visse refletido nas asas de uma borboleta.
Pois
então, lembra do que te falei lá no início? Sobre a vida ir se acumulando
inteirinha nas margens de um precipício, esperando a hora de acontecer? E sobre
estar ainda hoje aqui, com a mesma sensação que tive ao molhar pela primeira vez
os pés no lago? E sobre como eu acho que de lá nunca os tirei? E das histórias
antigas que fazem do viver uma constante preparação para a história derradeira?
É porque eu sinto que é você e precisava te contar de mim.
Hoje esta sou eu, muito prazer, o lago.
(Primeiro
capítulo do livro "Ao lado e à margem do que sentes por mim")
>>>
f a l a q u e e
u t e e s c u t o
Que beleza:
desta vez nossos solícitos leitores responderam às dúvidas enviadas para cá.
Você deseja mandar as suas dúvidas profissionais, existenciais, sexuais,
matemáticas, metafísicas e/ou patafísicas? Escreva para [email protected]. Sempre haverá
algum leitor com uma resposta na ponta da língua...
----- Original Message -----
Sent: Monday, December 02, 2002 10:14 AM
Subject: Fala que eu te Escuto!
"
Alguém pode responder essa perguntinha?
O que significa e
pra que servem a Maçonaria, Lions Club, Rotary e outras 'ONG´s'
???
[]´s
Izzy
Sarah Ivich <http://hyss.blogspot.com> responde:
Desde que as mulheres inventaram um lugar para irem juntas, sem
homens (hoje em dia é o banheiro feminino, antigamente eu não faço idéia de
qual local era), os homens resolveram que tinham de se vingar, tinham de fazer
alguma coisa parecida. Como ir ao banheiro masculino acompanhado por outro homem
não faz bem pra fama dos heterossexuais (pelo menos é isso que os
meus amigos não se cansam de repetir: "não pega bem, não pega
bem") resolveram inventar "ong's" como a maçonaria, que na verdade são
só clubes do bolinha disfarçados, com uns apetrechos a mais e um pouco
de mistério (quer coisa pior para a curiosidade feminina do que
sermos terminantemente proibidas de entrar numa instituição e além
disso não termos nem o direito de saber o que se passa lá dentro?
nem uma palavrinha? aliás, vocês viram aquele filme com o Johnny Deep, "do
inferno"? eu tinha certeza que essa história de maçonaria não terminava
bem). Quanto ao Rotary e ao Lion, parece que aceitam mulheres
(não aceitam?). Mas eu aposto que lá dentro deve existir algum tipo
de separação, assim, só para implicar. Humpft.
Niqui Lang <[email protected]>
responde: Serve para que certas pessoas tenham algo do que se
gabar... E significam que há muitas coisas para se fazer quando não se tem
'nada' para fazer...
Atenciosamente,
Niqui Lang
----- Original Message -----
From: [S p a m Z i n e]
To: Undisclosed-Recipient:@ginsberg.uol.com.br;
Sent: Monday, December
23, 2002 1:56 AM
Subject: [S p a m Z i n e] - edição 085 e 1/2
"(...) Mas agora me respondam: por que o Pato
Donald não usa calça, mas coloca a toalha na cintura qdo sai do banho? Será que
só eu acho isso estranho ou só eu não sei a resposta??
Ajudem-me!!!!!!!!".
Lorrene Carolline Nunes Vieira <[email protected]>
responde: aLiNe [está certo agora?], creio que posso te ajudar. Descobri,
semanas atrás, por meio de um colega que adorava mandar correntes para mim
[o coitado não sabia que o único spam que aceito é o spam zine, e correntes, só
se forem políticas], o qual está com seu endereço
dormindo ao lado de
spamers e correteiros mal-intecionados, mas voltando ao assunto [dormiu? acorde
mulher!!!], na mensagem explicava, melhor, mostrava em quadrinhos, porque o Pato
Donald não usa calça! Tudo não passa de uma mentira descarada daquele velho
morto rico do Walt Disney, que segundo o Inagaki [vide editorial no SZ 082] deve
está tendo um sono gélido. O tio Walt colocou um anão vestido de pato vestido [o
coitado deve sofrer em verões texanos] e as "patas" são calças, tudo porque o
Tio Walt estava com preguiça de desenhar um pato e pagou p/ um anão se vestir de
pato vestido, contudo o rico Walt não era inteligente e imaginou que todo mundo
anda sem calças por aí, só porque ele andava assim em casa para facilitar o
"trabalho sujo" dele. Mas aí então para não ficar tão assutador para as
criancinhas verem um pato sem calça e começarem a desconfiar que não era um pato
e sim um anão usando calças de patas de pato, ele inventou essa estória de
"toalha", mas o quadrinho que recebi mostra o anão, tão acostumado a se vestir
de Pato Donald que saía assim p/ tudo quanto é lugar, indo comprar calças. O
vendendor acha estranho comprar calças pois ninguém nunca viu Pato Donald de
calças e eis que o anão tira a calça de patas de pato, detalhe, o anão não usa
cueca ou rouba de baixo, também vestir roupa de pato e e roupa em cima da roupa
de pato deve dá um calor dos infernos. Espero ter contribuido para livrar
você, e aos leitores da spam zine, desse trauma que o Disney sem calça causou a
milhões de pessoas durante décadas! Acho que quem descobriu isso deve ter ficado
tão puto com o velho Walt que garantiu que ele tivesse um sono gélido para
sempre.
----- Original Message -----
Sent: Wednesday, January 01, 2003 7:17 PM
Subject: De "A Pequena que escreve como gente grande"
"Recife, 1 de Janeiro de 2003
(tempo bom na Veneza Brasileira, sem
nuvens ou chuvas.
só as tacinhas de Cidra Cereser fazendo a cabeça
martelar.)
Olá saudosos!
É com grande honra e enorme prazer (tão
enorme, mas tão enorme, que chega a transbordar meus tonéis de euforia) que
venho através desta simples cartinha, porém sincera, dar minhas felicitações à
toda e querida comunidade Spam Zine neste Ano Novo. Tio Inagaki, tia Sabbag, tia
Ione e seus parceiros de crime, leitores, ouvintes, telespectores, dançarinos de
polca, enfim, a todos vocês, meus parabéns!
E antes que venham me
bombardear (se é que estou podendo tanto. ou só, se é que estou podendo alguma
coisa), vou me apresentar, oquei? Tá. Atendo por Natália ou, se preferirem,
Nati, Nani, tanto faz. E tenho quinze anos, moro por aqui mesmo no meu lindo
Recife e, graças à nossa senhora salvadora dos alunos irresponsáveis, passei de
ano e vou para o Segundão do Ensino Médio.
E quero salvar o mundo,
escrever um livro, montar uma banda de róque e viajar o planeta de bicicleta e
mochilão nas costas (confessem, seus porras, eu tenho certeza de que vocês
quando tinham minha idade e eram pirralhos como eu também tinham dessa coisas.
não tinham? arrááá!). Na verdade, o que quero mesmo é escrever. Mas acho que me
formar pela UFPE e ser jornalista já me satisfaria (tá, não satisfaria nada,
quero é ser escritora. lááá na Alemanha!).
Daí que eu vou indo. Vou ali
cantar um uga uga, dançar a dança da chuva e fazer cair uma tempestade de
abraços meus para vocês. Quero que todos se molhem e fiquem encharcados e
pingando, viu? Acreditem, é de coração. Vou, mas volto, não pensem que vão se
livrar de mim tão fácil.
Tá, é isso. Falei muito até.
Natália
Oliveira, A Pequena.
(que hiperboliza como Oswald hiperbolizou. três vivas
para Oswald!)"
inagaki responde: minha querida sobrinha,
antes de mais nada espero que você pense direitinho nessa história
desvairada de querer cursar Jornalismo, principalmente agora que dispensaram o
diploma para escrever por aí. Este seu relapso tio demorou para
responder à sua cartinha, mas espero que você compreenda que esse é o meu jeito
(pau que nasce torto nunca se endireita, já dizia aquela velha canção do Gera
Samba) e que eu sou assim com todo mundo, não apenas com você. Quase ia
escrevendo que iria retribuir a sua tempestade de abraços com um dilúvio de
beijos, mas temo ser chamado de pedófilo ("The Kids Are Alright", como diria
Pete Townsend). Deixo você, pois, com um carinhoso beijo na sua testa,
esperando que em 2003 você saia por aí com mochila na mão, pronta para salvar o
mundo da pasmaceira de trintões precocemente aposentados de suas utopias
juvenis. Te cuida, mocinha! E que teus olhos sejam sempre atendidos...
sabbag responde: Manda passar bastante vaselina
e...
>>>
back on the chain gang
boemia, aqui me tens de regresso