084
25 de novembro de 2002
são paulo rio de janeiro
florianópolis pasárgada sítio do pica-pau amarelo
shangri-lá
>>>
n e s t a e d i ç ã
o:
holerite, tcc e finitude - nova promoção conrad - mais
minicontos - apocalípticos desintegrados
- a prancha possuída - sorrisos de
ontem - ars insana - garoto juca jr. além
do infinito - spam cine strikes back -
festa enloucrescendo
>>>
Antes de mais nada, preciso informá-los que eu não deveria estar aqui. Na
condição de editor-tampão, cá estou ocupando a vaga de
monsieur Sabbag, que devido a compromissos
profissionais teve que declinar do comando desta edição. Vou ter que descontar o
dia de hoje do seu contracheque, mizifio.
A propósito, o que em alguns estados é chamado de "contracheque" (ou seja,
aquele demonstrativo de todos os créditos, bônus e descontos do seu salário, que
faz você cair em depressão logo depois de abri-lo), é chamado aqui em São
Paulo de "holerite". Na época em que trabalhava como gerente na Blockbuster,
lembro da ocasião em que treinei alguns funcionários para a loja que
seria inaugurada em Ipanema. Quando perguntei a um dos cariocas se ele tinha
recebido o holerite, ele me respondeu:
- Ainda não, meus olhos tão legais. Ih, a galera andou pegando
conjuntivite?
Ah, esses dialetos regionais.
>>>
Até que seria bom se eu tivesse o que descontar do Sabbag. Mas o fato é que
o Spam Zine é um projeto levado à base de idealismo e camaradagem. Fora
alguns livros e revistas, nunca ganhei nada com o SZ. Ao contrário, gasto
dinheiro com a manutenção do domínio e eventuais despesas com correio e
telefone. Mas tá tudo zen. Nestes dois anos e nove meses de circulação do
Spam, todos os feedbacks, e-mails recebidos e pessoas que conheci
graças ao Zildo compensam nosso trabalho. Especialmente quando recebo
mensagens como a do leitor Luis Gustavo Meneghim, que arregimentou 20 novos
assinantes para o Spam Zine só nesta semana (taí um bom exemplo a ser seguido,
he he).
Outro retorno pra lá de bacana chegou à nossa caixa postal esta semana, por
conta da Mônica Borges Klafke, webwriter da Unisinos de São Leopoldo, RS, que
nos enviou cópia de seu trabalho de conclusão do curso de Jornalismo, intitulado
"Spam Zine: Estudo de Caso do Processo de Comunicação de um E-zine". Quem
poderia dizer que um dia um projeto descompromissado como o SZ viraria objeto de
estudo em uma universidade? Valeu pelo interesse, Mônica. :)
>>>
Enquanto eu selecionava, meio às pressas, os textos a serem publicados na
edição de hoje, me deparei com uma colaboração da Fernanda Luft, de
Florianópolis, que há pouco mais de um ano editava, ao lado do Denis Altieri
(por onde anda esse cara, um estudante de Estatística de Canoas, RS, de quem não
tenho mais o e-mail?), um e-zine bem legal intitulado Aquário. Infelizmente
o zine durou apenas dez edições. No número de despedida, Denis escreveu o
seguinte parágrafo:
"A homepage do fanzine será apagada e as edições passadas não serão
publicadas na web, apagaremos tudo e o Aquário Zine será apenas uma lembrança
que logo se dissipará, uma lição de impermanência, de que nada dura para
sempre".
Não sei se posso concordar ipsis litteris com essas palavras. Bem
ou mal, ainda tenho as edições do Aquário guardadas em meu winchester, da mesma
maneira que alimento, talvez ingenuamente, a ilusão de que alguma das
edições que o Spam Zine publicou até hoje perdure, de alguma maneira, nas
lembranças de algum incauto leitor num futuro empoeirado por aí. Do mesmo modo
que ainda guardo em meu mailbox cópias de tantos e-zines extintos: o
Tijolão, o CardosOnline, o MOL, o Alfinete, o Acompa, o Insonnia, o
Sábado 14, o Fora de Órbita, o Bigornas Lisérgicas, o TV EYE, o Ogden, o
D-Zine...
>>>
Ôpa, antes que eu me esqueça: tem NOVA PROMOÇÃO
CONRAD no pedaço. Cumpadi Alexandre
Linares me encaminhou dez exemplares das Teses Sobre Feuerbach escritas por Karl
Marx, publicadas dentro da coleção Baderna (
http://www.baderna.org). Pôsteres com estas
mesmas teses foram pregadas nos muros de Paris, quando do movimento estudantil
que agitou a França em maio de 1968. Vale a pena conhecê-las, principalmente
agora que teremos um presidente oriundo das hostes esquerdistas, a fim de
procurar compreender melhor este momento histórico. Para concorrer a um dos dez
exemplares das Teses Sobre Feuerbach, basta escrever uma mensagem para
[email protected] com o subject "Eu
Também Sou Luther Blissett". Os dez primeiros e-mails recebidos serão
contemplados com mais esta mamata
Conrad/Spam Zine.
>>>
E semana que vem Ricardo Sabbag promete estar de volta, comandando o Spam
Zine - especial Nonsense. É isso mesmo: textos surreais, desprovidos de qualquer
sentido (ou não), oriundos do inconsciente e repletos de briquebraques,
trocadilhos sub-reptícios, mensagens subliminares, orelhas de pintores,
teorias sobre fuscas verdazulados, gatos ronronando cantigas de Strauss em
noites de lua minguante, marionetes que manipulam pessoas e o sorriso do gato de
Alice. Sabbag manda avisar que colaborações devem ser encaminhadas para
[email protected]. Dúvidas, carinhos e
afagos também podem ser enviados por esse endereço.
>>>
Os destaques da edição de hoje são: três novos minicontos cunhados pelo
graaaande André Machado; a estréia de Adriana Terra, minha incauta
colega de Jornalismo; as confissões da neófita em surf Indigo Girl; as
elucubrações sobre arte de mais um estreante de SZ, o carioca Fernando
Paiva; Ricardo Ramos Leite, naquela que pode ser a última aparição do lendário
Garoto Juca Jr.; e a supracitada Fernanda Luft, discorrendo sobre cinema.
>>>
Spam Zine: que seja eterno enquanto dure.
>>>
minicontos do desconforto
- 19 -
Na entrada da roda-gigante, a moça perguntou: cabine balouçante ou não? Ele
escolheu a primeira opção, parecia mais emocionante. Quando a trajetória da roda
chegava perto do ápice, a cabine deslizava por barras de ferro estrategicamente
dispostas dentro da estrutura, balançando às vezes suavemente, às vezes com
violência.
Olhando a paisagem iluminada de cima, exposto ao vento primaveril e ao sol
moribundo, recordou sua infância, em que costumava balançar-se sozinho na cama,
cantarolando para pegar no sono. Eram momentos em que perdia contato com o mundo
externo e se encontrava de bom grado com sua alma, embora não pudesse enxergá-la
nem entender seu sorriso complacente.
Aconteceu a mesma coisa ali: não mais que de repente as luzes do parque
sumiram e foram substituídas pelo reflexo da lua minguante no lago artificial,
acompanhada de uma bela entourage de estrelas que piscavam para ele,
desinibidas. Deixou-se levar e a paisagem mudou de novo. Sua alma, bem mais
velha do que ele, surgiu num galeão voador e estendeu-lhe a mão. Como recusar o
pedido da capitã que o comandara nas piores borrascas da existência? Tomou-lhe a
mão.
-- Não havia um homem nesta cabine? -- perguntou a moça à colega quando a
roda parou.
Àquela altura ele já estava no aclive inicial de uma nova montanha-russa,
num parque diferente, num mundo diferente. E sua alma era jovem de novo.
- 20 -
Era outono, a melhor estação para se estar no Rio de Janeiro. Ele acordou
com um raio de sol batendo em seu camisolão ensebado. Num dia como aquele,
cavalgaria por quilômetros e quilômetros sem se cansar, aspirando o ar livre de
umidade e recebendo na farda os generosos raios de um sol temperado, jamais
furioso como entre janeiro e março.
"Bom, hoje não vai ser possível cavalgar", pensou. "Mas darei uma caminhada
pelo centro da cidade."
Antecipava o prazer da jornada a pé quando entrou o barbeiro. Em sua
mente, imaginou-se prestes a ir a um sarau, vestindo gala. Para isso, era
preciso livrar-se daquele penteado demodê. Riu consigo mesmo enquanto o outro
pegava a bacia e a navalha. O barbeiro não quis conversar naquela manhã. Estava
com uma cara triste. Ele respeitou seu silêncio. Mesmo assim, o ágil
profissional pareceu ler sua mente e raspou-lhe barba e cabeleira sem
pestanejar.
Sentiu-se renovado. Banhou-se e vestiu-se de branco. Sorriu ao sair para o
sol. Os homens o aguardavam. Postou-se diante deles e deu o primeiro
passo.
Percebeu que ficara famoso. As ruas estavam cheias. Todos queriam vê-lo.
Mas ninguém acenava. Ninguém apreciava as carícias solares como ele. Bem, fazer
o quê? Seguiu adiante, admirando a beleza carioca.
Eles não sabiam, mas ele logo seria um homem livre, como sempre sonhara,
desde os tempos de menino.
Muitos anos depois, nas tavernas da capital, onde se
celebrava a proclamação da independência, os mais velhos lembraram o enigmático
sorriso do alferes Joaquim José naquela manhã de abril de 1792.
- 21 -
Ela cutucou seu ombro de leve, olhou para ele e sorriu durante
a música, dando a entender que endossava o trecho que a cantora desfiava,
lânguida -- e o endossava em relação a ele, ao relacionamento distante mas
íntimo que ambos levavam. Ele baixou os olhos e, se a luz permitisse, ela o
teria visto enrubescer. Ele se sentiu aquecido e gratificado e quis tocar a mão
da companheira, mas ela estava tão radiante que preferiu apenas olhá-la e
guardar aquele momento para sempre.
Satisfeita, a Felicidade deixou
os dois sossegados na mesa e passou para a próxima.
>>>
poças de dentro (ou quando adorno
olhou melhor para benjamin)
Andava baratinada com um monte de
coisa. Tenho que falar com esse cara, e aquele, e aquele. Maldita profissão,
raios. Continuava chovendo, e chovia aos colhões dos que já estavam passados -
cansados. Meu entrevistado... ah!, sim, amanhã de manhã. Preciso agora estudar,
aqueles frankfurtianos, ó, céus! Legais, mas peraí que eles me fazem pensar
muito, e não estou com tempo pra isso atualmente.
Atualmente...
atualmente lembrava do menino. O menino que gostava da minha saia, enorme,
parecia ter sumido. Parecia nada, sumiu, e eu sabia. Correu atrás de mim, falou
que saia linda, sorriu. Sorri de volta e, de uma forma ou de outra, disse que
sim. Certa noite estavámos juntos, no outro dia eu já o chamava pela primeira
sílaba do nome.
Ouvia Lou Reed, cantava no
banheiro em voz alta, usava cueca preta ou vinho, fumava o cigarro que nem o
Belmondo, me ria uma risada gostosa que nem parecia vinda de alguém que escrevia
coisas tão tristes. Falava pouco, mas com o tempo eu conseguia entender o que se
escondia no não dito que ele fazia questão de me esclarecer quando a gente se
beijava, se entrelaçava e respirava tudo junto. Lia os livros mais difíceis e
vestia um cachecol azul-bebê, tão estranho quanto sua cara de bobo que não sabe
fazer direito. Mas eu não ligava, era daquilo que eu precisava no momento. Nunca
vi cara de bobo igual. Trocamos meias palavras e lençóis no primeiro dos últimos
domingos. Chorei alguma lágrima que não teve muita força para cair e acabou
deixando pra uma próxima. Ele me deu um carinho, eu lhe dei uma metonímia.
Passou rápido, como aquele metrô que a gente perde quando está atrasado para
alguma coisa que nem sabe.
Era hora da entrevista. Os colhões continuavam
a chover, e agora eu podia reconhecer - eram meus. Não deu. Ele era apocalíptico
demais, não suportou apenas mais uma integrada crítica.
>>>
Pranchas de surfe, assim como os potros indomados, precisam
aprender quem está no comando. Este é o primeiro desafio: mantenha o controle.
Não se deixe levar pelas melodias de Lulu Santos. A relação homem - prancha não
é tão poética quanto pensamos. De início, a prancha irá se rebelar e você deve
estar pronto para a luta. Provavelmente ela será maior que você, mais rápida,
ágil e feroz. Ela possui quilhas afiadas, você, na melhor das hipóteses, unhas.
Ela está parafinada e pode escapar. As chances estão contra você, mas tenha
coragem.
A luta é sinistra pelo disparate do primeiro golpe. No meu
caso, estávamos deixando o mar: água na canela. Eu a carregava debaixo do braço,
bastante satisfeita com nossa performance. Caminhava despreocupada, a água
tranqüila. Calculei que podia desfazer-me do lash ali mesmo. A prancha em
questão era Lâmina Animal. Reconheço que não é comum dar nome às pranchas, mas
como disse anteriormente, eu cultivava uma relação especial com este objeto.
Quando criança eu também dava lindos nomes aos bezerros que nasciam na
fazenda.
Repousei a prancha sobre a água e dobrei minha perna
direita (minha base). Nesta época a operação de desgrudar o velcro do lash
exigia que eu usasse as duas mãos. Hoje eu posso soltá-lo com dois dedos, num
movimento discreto e ágil.
Foi neste intervalo insignificante que a
prancha se rebelou. Como eu disse, eu me encontrava num estado muito sereno, de
modo que mirava uma formação de nuvens. Era um fim de tarde e o céu estava
pintado de um tom bonito de laranja e cor de rosa. Assim, imagine meu espanto ao
me virar para retirar Lâmina da água e encontrá-la suspensa no ar: de bote
armado. Lâmina mirava em direção à minha testa. Eu hesitei. Ouvira falar do
primeiro duelo, mas não acreditei que fosse acontecer ali, no rasinho. Lâmina
Animal estava determinada. Recuou meio metro, para pegar impulso e como uma
lança, atirou-se em direção ao fundo do meu cérebro. Atirei-me ao chão e protegi
a cabeça com as mãos. Dobrei os joelhos e preparei um contra-ataque. Não foi
necessário. Eu não sabia, mas ela já estava longe. Enquanto eu estrebuchava de
olhos fechados ela boiou até a praia. Pensei em deixá-la ali e ir embora.
Chutei-a de levinho. Talvez ela pulasse, como os mortos de hollywood. Mas Lâmina
não reagiu, como todo bom objeto inanimado. Coloquei-a debaixo do braço e
caminhamos em silêncio até a casa.
>>>