SpamZine_________________
083
19 de novembro de
2002
são paulo itararé juiz de fora
mercúrio vênus terra marte júpiter
saturno urano netuno plutão
>>>
n e s t a e d i ç ã o:
rock n' roll calçadas aqui me tens de regresso
baldeações conexões aéreas
>>>
Quase me senti como se estivesse numa daquelas festas para as quais se é
convidada e não se pode declinar polidamente do convite, mesmo que feito por
ICQ. "Amigo (2:04 AM): Sabe, vai ser uma festinha lá em casa, coisa simples.
Funciona naquele esquema mulheres levam comes e homens levam bebes. Meus amigos
são ótimos, você tem tudo a ver com eles". "Eu (7:17 PM) Nossa, valeu pelo
convite. Quanta honra. Tá, melhor eu levar meu guaraná, porque eu já imagino que
todas as variações de álcool vão se fazer presentes, mas que vão esquecer até de
levar água. Hidratação em dias de muita bebedeira é fundamental" e já sinto a
boca seca. Em parte, pelo nervosismo antecipado, em parte por já começar a
imaginar o cérebro querendo sair pelos buracos da cabeça, no dia seguinte, e eu,
vestindo pijama o fim-de-semana inteiro, sem poder falar, pra não ajudar o
cérebro a fazer movimentos exógenos, de pantufinhas, com as pernas apoiadas no
braço do sofá (melhor que a cama, nesse momento, porque é na frente da tv,
embora seja mais longe do banheiro). Dizem que nesses momentos é bom deixar as
pernas pra cima.
Logo depois de tocar a campainha, eu já me arrependo.
Tento me esconder do raio de visão do olho-mágico, pensando em como chegar até o
elevador sem que ninguém veja. Meço com um olhar rápido a distância entre o
local onde estou, colada à parede, até a saída das escadas. Mas antes que me
agache, para passar sem que seja vista pela porta do apartamento, meu amigo abre
a porta, rindo, já um pouco alto: "Que bom que você veio. Ai, que bom, torta de
liquidificador? Você que fez?, que prendada. Todo mundo trouxe só Fandangos e
esfihas do Habib's. Essas coisas que não dão trabalho." A fuga já não é mais
possível (e já diz a sabedoria popular que o que não tem remédio, remediado
está).
A providência número um é ficar perto de um cinzeiro. Por via das
dúvidas, tenho dois maços de Marlboro Lights na bolsa, porque obviamente que
fumo mais em ocasiões como essa e porque nessas festas tem sempre gente
querendo filar um cigarro.
(pausa para almoçar. É domingo, fim-de-semana
anterior ao do feriadão de 15 e novembro, quando pretendo ir para o Rio tirar da
pele este tom de escritório. Estou na casa do meu pai, ainda com a camiseta
velha que meu irmão me emprestou para que eu pudesse passar a noite aqui -- a de
ontem, quando assistimos ao "Almost Famous". Meu irmão fez uma caldeirada de
sardinhas, que comprou na feira. Trouxe também pastéis para comermos enquanto o
almoço não sai e frutas para que eu, a irmãzinha caçula, possa levar para casa
para onde devo voltar logo mais, não sem antes assistir ao "O invasor".
Update: Meu irmão cozinha bem demais. Devo ter engordado alguns
quilos só neste dois dias. E olha que ontem eu só cheguei à tarde, depois de ter
ido cortar o cabelo. Confiei minha felicidade ao novo cabeleireiro, dizendo a
ele que cortasse como quisesse, desde que eu não saísse chorando. Ele tirou
alguns centímetros a mais do que sempre tiro, mas ficou bem bom. E dá pra
despentear à vontade, que fica parecendo que foi essa mesma a intenção do corte,
que eu chamaria de arrojado, se essa não fosse uma palavra que nunca
uso.)
Providência número um-linha (a que, como você pode perceber, segue
imediatamente a providência número 1) é justamente acender um cigarro o mais
rápido possível. Minha mãe diria que acender cigarros afasta os mocinhos que
poderiam se interessar por mim, mas eu não ligo, prefiro pensar que sou um caso
perdido e fumar quantos cigarros eu agüentar, porque assim eu tenho uma boa
desculpa para ser a encalhada da família. Logo se aproxima alguém para perguntar
de onde é que eu conheço o anfitrião. E eu tenho que explicar, embaraçada, que a
gente, na verdade, nunca tinha se visto antes, que eu tenho um blog
(você sabe o que é um blog?, e ele diz que sim com a cabeça, e eu digo,
então tá) e que resolvemos arriscar um encontro. Para que não fosse tão
constrangedor, melhor que fosse numa festa cheia de gente.
Eu já nem
estou tão nervosa assim. Aos poucos, vamos conversando sobre quase tudo, o tal
amigo dono da festa logo chega e nossa rodinha é bem animada. Clichê número 1:
tudo está bem quando termina bem. Isso se eu não encher a cara e não quiser
imitar a bolete séria, aquela que nunca ria. É melhor guardar essas
performances para as festas no Cambridge, quando estou acompanhada de
vários amigos: "Há tempo e lugar para tudo" (clichê número 2).
Pois é.
Não estou tão nervosa assim. Estou aqui, digitando esse editorial no bloco de
notas (ou não-editorial. É preferível chamá-lo assim). Uso bloco de notas porque
gosto dessas letrinhas e gosto depois de abrir arquivos em formato txt. O
convite foi para confeccionar essa edição da SpamZine. O Inagaki, que nunca vi e
a quem agradeço imenso, foi quem fez esse convite que, espero em
deuspaitodopoderoso, tenha sido avalizado pelos outros editores spamzildos. Juro
que não bebi nenhuma gota da marvada até o momento, estou sãzinha de tudo. Mas
fumei vários cigarros para conseguir chegar até aqui. Desculpe ter vindo assim,
tão sem aviso. Mas já que você está aqui e eu também, pega o seu copo com
uísque, mete aí mais umas duas pedras de gelo, que é pra fazer render, eu pego o
meu copo com guaraná e vamos bater um papo. Chamei outras pessoas, pra dar um
arzinho de festa: André Takeda, posando de inacessível. Gustavo Caetano olhando
de esguelha, Silas Corrêa Leite tomando um scotch, Marcelo Barbão conta
piadas e Luciano Amaral dá baforadas em seu cachimbo. Meu nome é Ione, e o
seu?
SpamZine: rissoles, empadas e guaraná de maçã para o povo.
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tattoo you
Parágrafo Primeiro. A vítima
foi encontrada com o pescoço rasgado por uma corda de guitarra, os cabelos
cortados em um penteado moicano e o peito marcado com a inscrição "R’N’R"
rabiscado por gilete. O inspetor Russo estava em uma reunião com a diretora da
escola de seu filho mais velho quando o telefone celular tocou. Ouviu com
atenção os detalhes da perícia, pediu licença para a sua esposa, Desculpe, mas é
uma emergência, e caminhou com pressa até a saída do prédio. Durante o dia tal
tarefa era quase impossível de se realizar, uma vez que todos os corredores
formavam um labirinto em formato de caracol para que os alunos não pudessem
cabular as aulas. Agora, às sete e quarenta e três da noite, Russo precisava
apenas atravessar uma longa passarela em linha reta. Enquanto ouvia o som de
seus sapatos sobre o piso de borracha, tentava imaginar como o seu filho
conseguira vencer o labirinto. Orgulhoso, não deixou de esconder um sorriso, mas
havia coisas mais importantes para resolver. Ele sabia, mais do que qualquer um
na Corporação, que aquele homicídio poderia significar a volta de uma onda de
crimes políticos. Por isso, deu ordens ao motorista da viatura para que não se
dirigisse ao apartamento onde o corpo da vítima havia sido descoberto, Vamos
para os Subúrbios, existe alguém com quem preciso falar agora. Mas, inspetor, o
capitão disse que precisa do senhor imediatamente. Russo não era o tipo de
policial que desobedecia ordens, muito menos se sentia confortável em ir até os
Subúrbios para interrogar um punk, no entanto, não havia outra alternativa. Anda
logo, depois eu me entendo com o capitão, faça o que tô falando, dirija agora
pros Subúrbios, você sabe se já identificaram a vítima? Ninguém disse pro
senhor?, é Marcos Li. Russo não precisou ouvir o resto, deu dois tapas nas
costas do motorista, Rápido, não temos tempo a perder. Parágrafo
segundo. O parecer da escola foi rígido. Russo já esperava a notícia,
por isso não ficou surpreso quando a sua esposa telefonou, Que vergonha, que
vergonha, todos os nossos vizinhos vão ficar comentando que o filho do inspetor
da Corporação foi expulso do colégio, você tem que dar um jeito nele, por favor,
prometa que dessa vez não vai ser omisso. Olha, tô no meio de um caso,
conversamos melhor depois. Desligou o telefone, e tentou se concentrar
novamente. A família poderia esperar. Neste momento, o que estava em jogo era a
estabilidade política do país. Há mais de cinco anos, quando a ala roqueira
radical assumiu o poder, os crimes hediondos contra celebridades da música pop -
e todas as suas divisões, da MPB ao eletrônico – foram subitamente esquecidos.
No fundo, Russo desejava que a classe dos atores recuperasse a força que um dia
tivera. Ou, quem sabe, os escritores pudessem, finalmente, deixar de ser apenas
marionetes nos bastidores do Planalto. Mas os músicos de rock possuíam a maioria
das divisas do país, além do apoio em massa da população. Eram ma! is atraentes,
carismáticos e representavam um modelo a ser seguido pelos jovens. Grande farsa.
Russo sabia que, por baixo da atitude juvenil e sensual, existia uma mentalidade
fechada, preconceituosa, egocêntrica e, em alguns casos, ditatorial. E estava
disposto a desmacará-los. Mesmo que isso significasse a sua aposentadoria
precoce. Parágrafo Terceiro. No portão do estúdio, havia apenas
uma foto em preto e branco, onde um jovem de calças rasgadas jogava a sua
guitarra sobre o palco. O inspetor Russo respirou fundo e apertou a campainha.
Depois de alguns minutos de espera, um homem abriu uma pequena janela do portão.
Ele tinha os cabelos compridos e grisalhos, e uma longa barba tingida de
vermelho. Sorriu para o inspetor, como se já o conhecesse. Ah, você não desiste,
Russo. Saia pra rua agora, Tatoo, você tem muito o que explicar. Ainda sorrindo,
o homem obedeceu. Quantas vezes vou ter que dizer que não tenho nada a ver com
todos aqueles crimes, me deixa em paz, sou apenas um mero produtor de bandas
punk, até já larguei a vida de militante. Aquele sorriso muito irritara Russo,
mas desta vez ele não iria entrar naquele jogo. Não foi preso porque os seus
amigos no Planalto apagaram todas as provas, mas ambos sabemos que você é um
assassino filho da puta. Ora, seu inspetor, só porque tem um distintivo de merda
não significa que pode ficar me acusando, me ameaçando, desembucha logo, diz aí
o que quer. Tatoo sabia ser dissimulado. Ah, caralho, você sabe por que tô aqui,
acabaram de encontrar Marcos Lima morto, foi enforcado com cordas de guitarra,
cortaram os seus cabelos em um moicano e ainda escreveram "R’N’R" no seu peito,
isso não é familiar pra você não? Uma gargalhada. Tatoo ria alto, uma risada
rouca e feliz. Porra, inspetor, até gostaria de ter fodido com ele, porque
aquele puto do caralho é um traidor, onde já se viu trocar o rock pelo reggae?
Você sabe muito bem que o novo presidente é contra assassinatos políticos. O
presidente, inspetor, é um viadinho que acha que rock é aquelas babas que canta,
desse jeito vai acabar morto também. Era o suficiente. Russo não podia mais
aguentar tanta provocação. Você vai agora comigo pra Corporação, tenho certeza
que está por trás disso. Tatoo, surpreendentemente, entrou no carro sem que
Russo dissesse alguma palavra. Eu vou, inspetor, mas já adianto que você não vai
gostar de saber a verdade. Parágrafo quarto. Russo não
suportava as rádios de rock. Mas enquanto levava Tatoo para a delegacia não pôde
pedir para que o motorista trocasse de estação. Ele conhecia aquela música
repleta de guitarras distorcidas e andamento acelerado. E, acima de tudo,
conhecia a voz que gritava versos de amor ao rock’n’roll. O motorista cantava
junto, Puxa, inspetor, é a quarta música da banda de seu filho que toca na
rádio, ele deve estar ficando famoso. Russo, então, lembrou que deveria ter uma
conversa séria com o seu primogênito. Mas, por mais que fosse contra a carreira
de músico, não poderia negar o talento do filho. Nossa, inspetor, você deve
estar cheio de orgulho, esse som é bom pra caralho, tô até a fim de produzir um
disco deles. Mais provocação. Escute aqui, seu criminoso vagabundo, quero que
fique longe dele. Tatoo, sem pedir permissão, acendeu um cigarro. Talvez seja
tarde demais, talvez seja ele que não consiga ficar longe de mim. Russo não
conseguia acreditar no que estava ouvindo. O seu filho tem culhão, ao contrário
do pai, inspetor, tem muito culhão, e ele sabe quem entende das coisas, e quem
entende de punk rock sou eu, Tatoo, o cara que melhor grava guitarras no país, e
se você quer saber mesmo, inspetor, o seu filho tem tanto culhão que até aceitou
fazer uns servicinhos pra gente. Com o pé esquerdo, Russo pisou no freio do
carro. Desce, seu filho da puta, desce desta porra que quero falar contigo.
Parágrafo quinto. Com o primeiro soco no rosto, Tatoo quebrou
um dente. O sangue se confundia com o vermelho da barba, e ele continuava
sorrindo. O que você tá querendo dizer, hein, me diz logo a verdade seu velho
punk. Não adianta bater em mim, inspetor, isso não vai amenizar as coisas, como
você acha que a banda do seu filho anda tocando tanto nas rádios de rock? Russo
começou a ficar tonto. Hein? Hein, inspetor, pensa, porra, coloca este cérebro
pra funcionar, você acha mesmo que era eu que matava todo aquele bando de
traidores, tudo fazia e faz parte de uma troca, quem mata pelo rock’n’roll ganha
fama, porque você é burro demais pra perceber que os roqueiros radicais ainda
têm muita grana, e jornais, revistas, canais de televisão, sites na internet,
rádios, tudo. Outro soco no rosto. Um nariz quebrado. Vem, bate mais, me
arrebenta, se isso vai fazer você esquecer que o seu filho é um dos meus, é um
dos nossos. Russo desferiu um pontapé no rosto de Tatoo, que, ajoelhado, caiu
sobre a areia da beira da estrada. Deixou o corpo ensangüentado para trás e
entrou no carro. Vamos pro local do crime, agora, rápido, e se o capitão
perguntar por que demoramos tanto, você vai responder que eu tava resolvendo um
problema de família. O motorista, assustado, pisou fundo no acelerador. Nervoso,
Russo deu um soco no rádio, E desliga essa porra, caralho, não agüento mais
ouvir rock’n’roll.
>>>
linhas cruzadas
6:30 da manhã. Ele nunca se acostumara a acordar tão cedo.
Embora o despertador soasse tão alto quanto a parada de sete de setembro, seus
olhos pareciam não obedecer aos seus impulsos nervosos que diziam para
abrirem-se. A despeito disso, o ar da manha parecia ter algo frio e cortante,
que fazia suas pupilas queimarem ao contato. Seus ossos doíam, e cada movimento
seu em direção à beirada da cama disparava uma orquestra de estalos de juntas de
seu corpo. Ele simplesmente não tinha sido feito para acordar de manhã. Tinha
certeza que se houvesse algum emprego à noite (que não fosse de vigia noturno,
cafetão ou traficante) ele produziria muito mais. Mas a porra da sociedade ainda
mantém os impulsos primitivos que fazem os homens viverem de dia por causa dos
predadores noturnos. Levantou-se, a ponta do seu pé tocou o chão frio em busca
de seu par de chinelos, que depois de 5 minutos foram encontrados e calçados ao
contrário. Se arrastou até o banheiro, encarou uma criatura de olhos profundos e
avermelhados... quase um estranho, cambaleou de sono e quebrou o espelho com a
testa.
5:00 da manhã. Seu corpo parecia funcionar como um relógio.
Sempre despertava a essa hora, e parecia que esse também era o momento exato que
o mundo despertava de seu sono cósmico. Ela levantou em um pulo, andou até a
sacada, e observou o sol emergir por entre a nevoa que cobria a montanha. Sentiu
o frio da manhã, que prosseguia lenta e úmida. Executou a saudação ao sol e
alguns rápidos hasanas de yoga. Meditou durante meia hora e preparou um café com
mamão, leite e granola. Tomou um banho demorado, tocando cada parte de seu corpo
num ritual que lhe proporcionava um prazer secreto. Era como se suas mãos fossem
as mãos de um amante tímido, que lhe tocavam pela primeira vez. Se masturbou
lentamente, esquecendo-se do resto do mundo. Era ela e ela. A perfeita amante
para si mesma.
"Mas que porra!". Sempre que ele se cortava fazendo barba,
lembrava-se daquela cena de "A Cor Púrpura" onde a tiazinha (ele nunca se
lembrava se ela já era a Whopie) fazia a barba do Danny Glover. Pegou um
desodorante e spreou na ferida. Sentia um estranho prazer com a dor que isso
proporcionava. Pronto, agora já estava apresentável para um dia de trabalho. Com
olheiras gigantescas, feridas por todo o rosto e a roupa sem passar. Droga! Como
sentia a falta de alguém. Porque tanto tempo sozinho? Não era um cara perfeito,
tudo bem, mas tinha lá suas qualidades. Era carinhoso, atencioso e jurava que
transava bem. Curtia boa música e sabia fazer um ravióli como ninguém. Mas mesmo
assim... as mulheres simplesmente não o levavam a sério.
"E se eu tentasse ao menos uma vez?". Não era a primeira vez
que ela se encontrava nesse dilema. Cada vez mais lhe recorria essa idéia, como
se virar lésbica fosse resolver seu problema. Ela pensava que o problema estava
com os homens, não com ela. Talvez com as mulheres fosse diferente... mas ela
não se sentia propriamente atraída por outras mulheres. Bom, teve aquela amiga,
quando ela era mais jovem, elas se beijaram uma vez. Mas ela se sentia atraída
pela amiga, não por todas as mulheres. Só queria um homem atencioso, que
gostasse de boa música e soubesse fazer um bom ravióli. Não era pedir
demais.
Podem dizer o que for, mas nem todos os homens são iguais. De
fato, ele admirava uma bela bunda, pernas torneadas e esféricos pares de seios.
Mas isso não significa que lhes dava prioridade. Há tempos já havia se
acostumado a conviver com algumas estrias e celulites. Aliás, se tornou familiar
a elas. Uma bunda sem celulite lhe causava desconfiança, até certo medo e
repulsa. Ele só queria uma mulher compreensiva, de bem com a vida. Mas a cada
dia que passava se convencia ainda mais que esse tipo de mulher não
existia.
Ela colocou o vestido que mais gostava, aquele vermelho. Já
estava um pouco surrado, mas lhe fazia se sentir bem.
Ele colocou a velha calça jeans e a camiseta preta. Detestava
roupas com estampas.
Ela sempre caminhava de manhã. Sempre caminhava no parque. Mas
hoje decidiu andar pela cidade, queria ver gente.
Ele decidiu andar. Decidiu ir a pé até o trabalho. Precisava
perder um pouco da barriga. Achava estranho o modo como as pessoas se portavam
ao andar. Pareciam todas preparadas para um combate, com o semblante fechado
como se tentando intimidar o que vinha no sentido contrário.
Ao dobrar a esquina ela quase concluía que a homossexualidade
seria o melhor caminho para ela fugir da solidão. Se a vida não lhe dava
oportunidades de encontrar alguém, ela teria que se virar.
Ao dobrar a esquina ele concluía que a vida não poderia ter
sido assim tão injusta com ele.
Ela andava agora imersa em pensamentos, talvez fazendo aquilo
que mais detestava, lamentando sua própria existência.
Ele jurava para Deus que se um dia ele colocasse a mulher de
sua vida no seu caminho, ele não a deixaria escapar, nem a
magoaria.
Uma velha senhora, sentada em um bar, bebia seu café enquanto
observava as pessoas. Um jovem vinha andando, seu olhar era triste, mas
esperançoso. Uma mulher bonita vinha em sua direção, usava um belo vestido e
parecia estar em transe. Eles se esbarraram, ele quase caiu e ela mal pareceu
ter notado. Eles se desculparam, trocaram sorrisos e continuaram. A velha
assistiu a tudo, com um tom de tristeza... "Formariam um belo casal" - pensou.
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causo da boemia de itararé
Madrugada em Itararé.
Nem latido de jaguara cão rueiro, apito de guarda-noturno ou freada brusca
de simca chambord de seresteiro.
Silêncio quase prece.
Uma meia lua feito delicado sorriso de "miss", dependurada no céu jade de
Itararé. Algumas nuvens cãs.
O cacau quebrado que os paralelepípedos da rua São Pedro representavam,
enserenados. Nem alísio porqueira, pirilampo ou bilro cândido de cigarra, grilo
estridente ou sapo-martelo "caipora" de fuzarqueiro.
Um boêmio solitário, encostado no posto de gasolina do Rivadávia, pita
ensimesmado. Soturno o boêmio cisma. A fumacinha do cigarro sobe leve como um
mero caracol de gelo frágil. O cheiro gostoso inunda a rua deserta, lados do
Palácio Vadico. O olhar do solitário Itarareense tem miúdos pedidos de socorro
em vão. Um chapéu verde de feltro cru cobre-lhe a cabeça parda. Um paletó de
tweed xadrez esconde uma camisa de linho branco e um peito alquebrado.
Tem a mão direita segurando uma roseira íntima, como se no falso bolso
fundo da calça rancheira.
Com a mão esquerda segura o pito encardido no beiço de saliva com réstia de
álcool mal-amanhecido. Procura no silêncio do momento encruado, um aceno de
salvação, um pleito de apoio.
Sabe que não tem mais salvação. Sabe que é chegada a maldita hora. Não tem
outra alternativa. Não tinha como fugir de um capricho do destino algoz.
Poderia ir para a guerra do Vietnam. Sentir literalmente na pele o
desfolhante químico Agente Laranja. Poderia entrar para a Legião Estrangeira
numa colônia da França.
Mas não lhe resta um tico de dúvida; um só gomo de indecisão. A sorte está
selada.
As casas Itarareenses ao derredor têm o selo ingênuo da penumbra, e uma
parca nuança de abóbora prepara o breve pano de fundo na aurora inda distante,
lados do planalto paranaense, depois do rio Itararé que divide o Estado de São
Paulo da região sulina.
Quase meio século de vida livre, na maciota, em zonas de meretrício e
"forfés", o boêmio tem o olhar perdido e a barriga já saliente de cervejas e
galinhadas com os companheiros de farra.
Agora acabou-se. Levou quem trouxe! Desacorçoado suspira alhures.
Resoluto, empacou o definitivo passo naquele entravado momento de
contemplação íntima, como se de si para si mesmo. Um ventico de nada sola um
chicote queimado de pré-minuano, na acordeona de um arvoredo lados do empório do
"Seu" Vitorino.
Não tem outra saída. Sabia que seu dia iria chegar, mas pensava em adiá-lo
infinitamente, se possível fosse, sem medida de tempo ou entrega terminal. Era o
desígnio fiel na vida de um boêmio atiçado em berço esplêndido.
Pensa em assobiar uma guarânia triste. A mente não traz a harmonia pro bico
doce. Amuou. Quem sabe deveria se apinchar no "tembé" da Gruta da Santa do rio
Itararé? Deixar ali com honra o último suspiro de vida. Quem sabe devia de
dar-se um tiro de garrucha no pé do ouvido? O coração repica o floretim transido
de um impoluto Não.
Uma patativa madrugadora faz siricotico com uma corruíra, na telha goiva do
armazém de secos e molhados da Dona Lígia Presbiteriana. Uma cigarra temporã
estala a matraca repetidora fora de estio. O boêmio sabe que não pode mais
perder muito tempo. Nem esperar o sol arrebentar mamonas, depois de despir-se
das calças do longínquo horizonte de araucárias. Precisava pegar o jipe, as
tralhas que reservara para a ocasião e rapidamente dar no pira. Chispar
depressinha.
O boêmio, com um coturno batido dos tempos do Tiro de Guerra, turma de
cinqüenta e tanto, pisa o resto do fedido cigarrinho cotó. Vai chamar o vigia
ainda atarefado com uma fulaninha traste. Em minutos o boêmio arranca com o jipe
verde, lados da Vila Jora, indo nervoso cumprir sua sina. Vai roubar a mulher de
sua vida. Forçá-la a fugirem juntos como estavam se comprometendo há anos, para
casarem escondidos no vizinho estado do Paraná.
A guria, sua "mina", recentemente, sem ele saber, e à revelia dela mesma,
fora prometida pelo velho pai coruja a um tipo feiçudo, afeiçoado da família e
demais de muito trabalhador. E naquele próximo sábado de Aleluia deveria haver a
consumação do noivado forçado. Não tinha tempo a perder. O Céu por testemunha.
Vai ter que "largar-mão" daquela vida de porcarias notívagas e assumir
finalmente a paixão de sua vida. Não iria perdê-la por nada nesse mundo.
Onde já se viu? A dita zinha era especial. Estaria carecida ainda? (O pai
vinha cerceando os encontros rápidos.). Estaria com os belos cabelos
encaracolados e com um belo "pega rapaz" feito franja na testa de ruiva
sardenta? Não tinha telefonado mais. E as cartinhas apaixonadas cada vez mais
raras, curtas, mixurucas. A sogra também era do-contra. E tinha entroncados
cunhados topetudos. A última palavra, no entanto, seria a sua. Daria o pira com
a Dagmar e pronto. Quando desse na vista, estariam pra lá do Paraná. Largaria o
"clube da boemia". Seria uma mixórdia aquilo tudo de tanto cismar num entojo de
medo de perda.
Criaria juízo depois de passado de moço. Nem serenatas dantescas, nem
roubar frangos na Santa Casa, tampouco porres homéricos. Será o impossível?
Bateu a saudade inquebrável da doce mulher amada, daquela que seria a esposa
ideal, a paixão tão sonhada e cantada em verso e prosa, a patroa perfeita que
sabia lavar, passar, cozinhar e tinha outras qualidades mais de "Amélia" de
verdade.
O boêmio apaixonado e sensível, reacende um meio sorriso maroto na boca
quadrada de descendente de italianos. E segue seu destino feliz e de aceitação
por ter conseguido finalmente, pelo menos no íntimo, renegar à boemia
Itarareense.
Mal sabe, o coitado, que a sua prometida paixão está de três meses,
embuchada pelo pretendente rico arranjado pelo sogro valentão.
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domingo
Era uma bela manhã de domingo. No dia
anterior, viemos dormir depois de muito vinho. Mas, nenhum do dois tinha cara de
ressaca. Pelo contrário, estávamos alegres. Acordamos com o sol entrando pela
porta e pela janela. Tínhamos a mania de deixar tudo aberto, ainda mais com esse
calor típico de verão. Mesmo assim, não acordávamos cedo. Quando olhei o relógio
já passava do meio-dia. Virei na cama e a acordei com um beijo na boca. Era um
ritual que se repetia desde o primeiro dia em que dividimos uma cama. E muitos
anos já haviam passado.
Lentamente, preguiçosamente, fomos nos levantando. Nada
melhor, numa manhã como essa do que um bom banho. E, juntos nos levantamos,
juntos nos banhamos e juntos nos enxugamos.
Colocamos algumas roupas leves porque o sol estava no seu
auge. Em silêncio, com uma cumplicidade poucas vezes vista, decidimos com
olhares onde seria nosso almoço. Quer dizer, antes foi preciso dar uma olhada
nas nossas carteiras, mas o dinheiro era mais do que suficiente. Descemos o
prédio e caminhamos até o metrô Trianon-Masp. A Paulista estava estranhamente
vazia e conseguimos nos esgueirar pelas sombras até a entrada do metrô. Em
silêncio e de mãos dadas fizemos todo o trajeto até a estação Châtelet. Descer
em pleno centro da cidade é sempre uma visão magnífica.O rio Sena com suas
pontes radiantes nos traz boas recordações. Entramos no Le Zimmer, em plena
Place du Châtelet. Como não é todo dia que temos dinheiro suficiente, precisamos
aproveitar.
Com apenas uma troca de olhares, escolhemos um lugar perfeito
para sentar. Após a entrada, à direita, perto da janela. Pedimos o mesmo prato,
sem combinarmos. Como entrada um Potage de legumes "comme à la Maison". O prato
principal foi um Filet de dorade aux petits legume à la coriante. E como
sobremesa dois deliciosos Gâteau au chocolat fondant.
Acabamos tudo em silêncio. Estávamos saciados. Quando saímos
na rua, o sol ainda brilhava lindo no céu. Em silêncio caminhamos novamente para
o metrô. Um último olhar na Place e pegamos o trem.
Descemos em Marble Arch, caminhar pelo Hyde Park era o nosso
passeio favorito depois do almoço. Por vários minutos, ouvimos atentamente um
discurso inflamado de um esquerdista contra a guerra do Iraque na Speaker’s
Corner. Depois de uns 15 minutos, nos cansamos e fomos caminhar pelo parque.
Quando estávamos quase no meio do caminho, o cansaço nos pegou. Ficamos parados
por alguns minutos na frente da estação de Lancaster Gate até decidirmos para
onde íamos. Nossos olhares se encontraram e tínhamos certeza.
Pegamos o metrô e descemos na estação da 86th street. Até o
Museu Guggenheim eram uma caminhada por cinco quadras. Durante mais de uma hora
caminhamos por entre os quadros da exposição French Art, Russian Colectors.
Impressionistas e pós-impressionistas do século XIX e XX. Mas não entramos na
The art of motorcycle. Afinal, quem precisava de motocicletas quando a gente tem
o metrô?
Era hora de refazer as contas. Abrimos novamente as carteiras
e recontamos as notas em silêncio. Ao final, nossos olhos estavam brilhando.
Sim, tínhamos dinheiro suficiente. Corremos até o metrô e ansiosos pegamos o
trem. Éramos duas crianças. Descemos na estação Montgomey Street e já saímos em
desabalada carreira pela rua de mesmo nome. Era uma longa caminhada pelo centro
de Chinatown mas não nos importávamos, em alguns momentos chegamos até a dar
gritos de alegria, para espanto dos velhinhos chineses. O centro da cidade era
um pouco esnobe demais para o nosso gosto. Mas, entrando na Columbus Avenue já
podíamos sentir o ar mais libertário e retro da cidade. Então, nos sentíamos em
casa. Poucos quarteirões e lá estava ela, a City Lights Books, do lado esquerdo
da rua. Na mesma esquininha onde a deixamos da última vez.
Quando estávamos a apenas um quarteirão começamos o velho
ritual de rezar baixinho, cada um para si. Apesar deste ritual ser individual,
cada um olhava para o outro, fiscalizando se havia fé verdadeira naquela
reza.
Mas, quando abrimos a porta e entramos, vimos que nossas
preces não foram atendidas, Ferlingheti não estava lá, mas tudo bem. Começamos a
maratona de compras alucinadas. Quase uma hora depois, saímos de lá com
Biotechnology and Culture, de Paul Brodwin; Ali’s Smile & Naked Scientology,
do Burroughs; The Night Torn Mad With Footsteps, do Bukowski; Paris Peasant, de
Louis Aragon; 2182 kHz, de David Masiel; Star in My Forehead, Selected Poems of
Else Lasker-Schüler; Leaving the 20th Century – The Incomplete Work of the
Situationist International; 9-11 de Noam Chomsky e um pôster com o abraço entre
Kerouac e Cassady.
Carregávamos os livros pela rua, gastáramos quase todo o nosso
dinheiro. Agora, era ir para casa e ficar toda a semana, hibernando com nossos
livros espalhados pela cama. Quando chegamos na estação, estávamos exaustos. A
volta era sempre mais cansativa. Paramos, com todos os pacotes na mão, um calor
absurdo. Olhando para a região do píer e da ilha de Alcatraz, víamos a noite
caindo mas o sol ainda iluminava toda a região, foi nesse momento que decidimos
tomar outro rumo diferente do caminho para casa.
Descemos na estação Piedras, ao lado do Café Tortoni. Entramos
no grande e famoso bar literário. Sentamos naquelas lindas cadeiras de couro
vermelho. Tão confortáveis que poderíamos passar horas por ali. Ao
desembrulharmos nossos livros, um burburinho tomou conta do salão. Rindo,
convidamos todos a verem nossos livros. E assim, por algumas horas, tivemos um
incrível poliálogo entre todos os freqüentadores do bar. Como Hillary Clinton
escolhemos um Chocolate con Churros e, depois, muito café.
Já era noite quando recolhemos todos os livros e pagamos a
conta. Agora, o dinheiro era justo para duas passagens de voltas. Subimos na
estação Piedras e sentamos no metrô semivazio que nos levaria para casa,
finalmente.
Os olhos fechados, aquele balançar do trem e tiramos uma
merecida soneca, com as cabeças encostadas uma na outra. Abrimos os olhos da
estação Trianon-Masp. Descemos segundos antes da porta se fechar. De mãos dadas,
caminhamos até o nosso apartamento.
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p e r g u n t a r n ã
o o f e n d e
"Mas
será o Benedito ou a capa dele?"
Gustavo Vicente Arrieche [email protected]- Pode ser até a capa do Benedito andando sozinha, desde que o Benedito
Ruy Barbosa fique em casa sem escrever novelas bregas, com muita choradeira da
Ana Paula Arósio (com um corte de cabelo que faz ela parecer um poodle), surubas
em trocas de casais numa boa no início do século passado, e sagas italianas
regadas a "maledeto", "amore mio", "cáspita", e expressões como "mio Toni".
Eca!
- Huuum, pensando bem, a capa do Benedito Ruy Barbosa não iria andar
sozinha, então pode até ser ele mesmo caminhando por aí com alguma capa de
chuva, mas como ele anda tão magro e preocupado por entregar os capítulos da
novela Esperança atrasado, pode ser que as pessoas digam: "Olha, o Benedito anda
tão magro que parece que a capa dele está andando sozinha".
Benedito andou por aí, usando uma capa azul, de chuva,
mostrando as mãos cheias de sangue. Dizia que tinha matado um homem e que o
sangue era gostoso de se tomar como se fosse groselha vitaminada, com a
diferença de que não havia no mercadinho da esquina os sabores uva e
tutti-frutti. E groselha nunca se tinha ouvido notícia de ser tomada quente.
Depois dessas declarações, Benedito se matou. Com um corte no pescoço. Quem
quisesse que viesse e chupasse todo o conteúdo do corpo. Menos as tripas. Um
cachorro vira-lata veio para beber tudo e Benedito acabou sumindo. Só restou a
capa.
Não sei se Benedito ou a capa, o fato é que sumiu minha
bolsa, com RG, CPF, cartão do convênio médico, carteira de trabalho, cheque,
cartão de crédito, pente, batom, tesourinha de entortar os cílios e meu
cachorrinho. Um chiuaua que eu levava para andar de moto comigo. É favor
devolver.
Nota da editora (eu sempre quis escrever
isso): Inconformada com a quase totalidade de
respostas à minha pergunta intrigante, resolvi inventar dois pseudônimos e eu
mesma respondi à pergunta - Paulo e Viviane são eu. Obrigada, Gustavo, pela
coragem. Lembro-me de minha professora de OSPB que se irritava com o barulho da
classe durante as aulas. Ela olhava para nós, fazia psiu e perguntava: Mas será
o Benedito ou a capa dele? Corresponde, em bom modernês de adolescente (não
cronologicamente falando) ao "fala sério".
pergunta
da próxima semana:
"Você já sorriu ontem?"
Profetize sobre o passado: [email protected] ou entenda-se com o editor do próximo número. Ninguém me disse qual
seria a pergunta da próxima semana.
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27 horas: São Paulo - Brasília - Tabatinga
7:00 – Em seu quarto. Ouve-se o tilintar do despertador
vermelho. O homem acorda. Toma banho, ainda embotado de sono e da vodca.
Veste-se. Terno e gravata, sapatos sociais. Apanha sua valise de trabalho e duas
malas apetrechadas.
8:00 – Na sala de aula. Ouve-se o zunir do ventilador de
teto. Verbos, pronomes, adjetivos de posse. Porquoi? Parce qu’il y a une
classe de Français. O homem e sua colega de classe escutam, repetem e escrevem.
E de quando em quando cochicham em bom português sobre outras coisas.
9:30 – No escritório, na estação de trabalho. Ouvem-se
burburinhos indetermináveis. Haverá pouco tempo de trabalho hoje. Ao menos
no sentido capitalista das palavras tempo e trabalho. Prenuncia-se um dia de
muitos outros tipos de trabalho, inseridos em outro tipo de noção
temporal.
11:30 – No aeroporto de Congonhas. Ouve-se o anunciar
incessante de partidas e chegadas. Carregando sua valise de trabalho e suas
duas malas apetrechadas, o homem dirige-se ao balcão da companhia aérea. Seu vôo
estava lotado. Em tempos de trabalho capitalista isso significa revolta e
reclamação dos passageiros. O homem, entretanto, está suficientemente resignado.
E aceita ser acomodado no vôo seguinte, incentivado pela oferta da companhia
aérea: uma passagem aérea válida por um ano.
12:00 – Ainda no aeroporto de Congonhas. Ainda ouve-se o
anunciar incessante de partidas e chegadas. O homem vaga pelo aeroporto de
Congonhas. Vai até a livraria. Não compra nada. E decide parar de vagar, pois o
peso de sua valise de trabalho e de suas malas apetrechadas é incômodo.
Dirige-se até a sala de embarque, com mais de uma hora de antecedência. Lê o
jornal do dia.
13:50 – Na aeronave. Ouvem-se conversas desagradáveis.
O homem é acomodado na terceira fileira de poltronas. Seus vizinhos, nas
poltronas do lado, nas poltronas da frente e nas poltronas de trás são
vendedores e vendedoras dos produtos Avon. São aproximadamente duas horas de
vôo.
15:30 – No hotel, vizinho ao Palácio da Alvorada. Ouve-se
silêncio e ouvem-se aves. O homem abre sua valise de trabalho e uma de suas
malas apetrechadas. Nela há roupas. Faz dois telefonemas. Fuma. E contempla o
Palácio da Alvorada, de aspecto bastante vazio.
16:30 – Em frente do hotel. Ouvem-se carros e aves. O
homem toma um táxi. Pede para ser deixado em frente ao Palácio do Planalto. Leva
consigo a segunda de suas malas apetrechadas. Nela há dois livros, um caderno,
três borrachas e onze lápis pretos. E também sua carteira.
17:00 – Na calçada em frente ao Palácio do Planalto.
Ouvem-se risadas monárquicas. O homem caminha pela calçada, de uma ponta até
a outra do Palácio do Planalto. A rampa presidencial parece menor do que a que
se vê na televisão. O parlatório, por sua vez, parece maior. O homem cruza a
rua, em direção ao Congresso Nacional. Com o consentimento de um jardineiro,
corta caminho por um gramado inclinado. Passa por ele um casal de turistas
argentinos.
17:05 – No Congresso Nacional. Ouve-se o alarido de
adolescentes homens e mulheres.O homem tem à sua esquerda o Senado Federal.
E tem à sua direita a Câmara dos Deputados. Pede entrada na Câmara dos
Deputados. É informado do fim do horário de visitas. É informado que a visita
pré-agendada dos alunos do Colégio Marista está a começar. Que teria que
conversar com a Professora Suzette para juntar-se a esse grupo. Tida a conversa,
junta-se ao grupo, que motivado ou premido pela aula de artes procurava conhecer
pessoalmente certos dos painéis e das soluções arquitetônicas interiores da
Câmara dos Deputados. Recebe panfleto onde se lê: É proibido o uso de bermudas e
camisetas cavadas nas dependências da Câmara dos Deputados. Imagina outras
coisas que também deveriam ser proibidas nas dependências da Câmara dos
Deputados, mas mantêm-nas para si. Vê painéis. Anda pela arquitetura. Ouve dos
guias sobre certos meandros do poder: salas das lideranças
partidárias, café, sala de lanches e outros ambientes. Adentra o plenário
da Câmara dos Deputados. Gostaria de ter encontrado o deputado Aldo Rebelo e a
senadora Heloísa Helena.
17:30 - No Museu do Senado Federal. Ouve-se o
ar-condicionado. A Divina Comédia de Salvador Dali. Centenas de gravuras de
Salvador Dali inspiradas pela Divina Comédia de Dante. Os estudantes maristas
tomam suas notas e dão risadinhas sempre que aparecem corpos nus. Mesmo que
sejam corpos nus castigados pelo inferno. O homem não toma notas. Apenas
respira, olha e toma impressões.
19:00 – No restaurante do hotel. Ouvem-se pratos sendo
lavados e conversas de empregados do hotel. O tempo, já não o tempo
capitalista, urge. Um xis-tudo, duas cervejas, quinze minutos.
19:15 – No táxi. Ouvem-se a Voz do Brasil e a conversa do
motorista de táxi. Sem sua valise de trabalho e sem suas duas malas
apetrechadas, levando apenas dinheiro, documento de identidade e lenço, o homem
afasta-se do plano piloto e depois de Brasília. Passa por Guará, Sobradinho e
Samambaia. Chácaras na margem direita da estrada. Prédios mais humildes na
margem esquerda. O homem não pede para ver o que há além das margens. Também sem
pedir, o homem recebe informações precisas sobre os melhores puteiros da região.
E também sobre os mais baratos, os mais caros, os mais selvagens e os mais
ordeiros. Passa por Taguatinga, misto de Diadema com São Vicente.
20:00 – Em Taguatinga, em frente ao Estádio Serejão.
Ouve-se confusão de torcedores, vendedores ambulantes e policiais militares.
Há bosta de cavalo pelo chão. Há também latas vazias de cerveja. Não há
calçamento, mas sim um infinito lamaçal já pisoteado. Algumas correrias, alguma
fila nas bilheterias. Adquirido o ingresso, o homem é revistado displicentemente
por soldado da Polícia Militar.
20:30 – No Estádio Serejão. Ouvem-se rádios sintonizados
em AM e narradores de futebol. Ouvem-se alternadamente xingamentos, gritos de
incentivo e suspiros de alívio. Mijar, só se for num grande muro onde se lê
a palavra sanitário. Este sim é o verdadeiro e brasileiro muro das lamentações.
Com gol de Júlio Santos, de cabeça, o São Paulo vence o jogo por 1 a 0. Mantida
a supremacia, é tempo de voltar, e de preocupar-se com o como voltar.
22:30 – Em frente ao Estádio Serejão. Ouvem-se sirenes de
carros de polícia, motores de ônibus e barulho de multidão andando. O homem
perde-se em si mesmo. A vitória, as cervejas e as perspectivas de dormir em
Taguatinga ou voltar a pé até Brasília. Futebol no Distrito Federal não é coisa
para quem mora em Brasília. Logo, não há ônibus para Brasília. Também não há
calçada, o que dificulta a perspectiva da caminhada. O homem é salvo por um táxi
que passa por engano.
23:00 – No táxi. Ouvem-se os comentários sobre a partida
de futebol no rádio sintonizado em AM. O homem, vitorioso outra vez,
orgulha-se de si mesmo. E sente vento no resto.
23:40 – No quarto do hotel. Ouvem-se latas de cerveja
sendo abertas. Ouve-se a voz da Monique Evans pela televisão.Ouvem-se fósforos
sendo riscados. Dormir, para o homem, não é fácil em certas ocasiões.
Sozinho em seu quarto de hotel ele é mais dono de seu tempo. E não há,
imediatamente, razão para dormir.
01:55 – No quarto do hotel. Nada se ouve. Mas enfim
dorme.
6:00 – No quarto do hotel. Ouve-se o tocar do telefone
despertador. O homem se banha. Recolhe suas roupas. Fecha sua valise de
trabalho e acomoda os apetrechos em suas duas malas. Não toma café da manhã.
Paga a conta. Esquece-se de apanhar caixinhas de fósforos do hotel. E, em plena
alvorada, deixa para trás o Palácio da Alvorada e os que ali dormem e trabalham.
7:20 – Na aeronave. Ouvem-se páginas de jornal sendo
viradas. O homem lê jornal local de Brasília. Não identifica nenhum
resquício de nada do que tinha visto no dia anterior. Nada.
10:00 – Na estação de trabalho. Ouvem-se
burburinhos indetermináveis. A volta ao trabalho e ao tempo do trabalho, já
na acepção capitalista, acontece sem sobressaltos exteriores. Por dentro do
homem, ninguém sabe o que se passa. Só ele.
>>>
f a l a q u
e e u t e e s c u t o
Sent: Monday, November 11, 2002 2:09
PM
Pessoal,
será que é possível colocar um pequeno anúncio cultural no
próximo spam zine?
O site Cabeza Marginal de divulgação cultural e
experimentação entre artistas e internet é um espaço aberto em busca de novos
artistas, colaboradores, escritores, em suma, participantes que queiram
acrescentar um neurônio nessa cabeza. http://www.cabezamarginal.org.
ione responde: Será
possível. Já foi. Incrível essa coisa de dobras do tempo, não é mesmo? Dizem que
é por isso que sonhamos que estamos fazendo certas coisas e que temos essa
sensação de que já fizemos o que estamos fazendo neste momento. Fique feliz: seu
sonho mais lindo se realizou.
----- Original Message -----
Sent: Monday, November 11, 2002 7:07 AM
Subject: [Conteudo Negado]
-----------------------------------------------------------------------
Seu
e-mail não foi entregue para o destinatário, pois foi encontrado palavras de
conteúdo proibido.
- 'merda' found in ' Merda, pensou, por que fui
nascer numa época em que só existem presidentes? '
- 'caralho' found in ' O
Escritor Maldito Caralho, detesto entrevista.'
- 'vagabunda' found in ' Ela
parou, gritou que não era nenhuma vagabunda. '
- 'puta' found in ' Estava a quinze quilômetros
da cidade, onde poderia comprar alguma comida, cigarros e até, quem sabe,
encontrar uma puta pela rua, mas eu preferia ficar ali, rodando no meio do nada,
me sentindo um condenado. '
Mail has not been delivered!
ione responde: Quem foi o
puto que inventou essa porra de filtro de merda do caralho? Certamente não foi
um apreciador do mais castiço vernáculo de que um artista pode fazer uso em nome
do amor que guarda pela poesia. Morte lenta e dolorosa à pudicícia
corporativa. Vamos lutar pelo fim dos filtros, vamos dar liberdade aos spams.
Engaje-se você também na cruzada pela adoção de vestimenta casual todos os dias
da semana em todos os escritórios, sem censurar blusinhas transparentes para
serem usadas pelas moças, sem sutiã, ou de calças tipo legging que
compõem lindamente com cuecas boxer sobre essas mesmas calças. Aliás,
se os moços quiserem aparecer de blusinhas transparentes, que venham. Já dizia
JC: vinde a mim as criancinhas. Que venham também os puros de coração para
receberem abrigo no seio do SpamZine.
----- Original Message -----
Sent: Thursday, October 31, 2002 11:46 AM
> Oi Alexandre e Ricardo,
>
> Descobri o spamzine por acaso procurando sites de crônicas e textos
> inteligentes. Adoro ler estas letrinhas mágicas e tão envolventes que
fazem parte do meu dia-dia, obrigada vcs fazem um bem enorme aos nossos
dias.
>
> Até,
> Ana
ione responde: Conselho de
tia velha: tome um Ecstasy e depois me conte se rolou uma magia envolvente. Faça
o que eu digo mas faça o que eu não faço.
>>>
c r é d i t o s f
i n a i s
We are the knights who say...
Ni!
Au au au, iai-ó, miau miau
miau, cocorocó
Pode ser o diabo, ora vejam só
We are now the Knights who say...
"Ekki-Ekki-Ekki-Ekki-PTANG! Zoom-Boing! Z'nourrwringmm!
>>>
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Zine - fanzine por e-mail
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propostas indecentes:
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p. s.
ione: É isso
aí, pe-pe-pes-so-al.