SpamZine_________________
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20 de outubro de 2002
são paulo  joão pessoa  rio de janeiro  juiz de fora  washington dc

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n e s t a  e d i ç ã o:
 
ganhadores da play  orquídeas  adagio  madrugada  hats off  blogs e menires
 
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editorial
orlando tosetto junior  [email protected]
 
Morrer de saudade é tão bom.
 
Ficar parado a olhar o Grande Mar. Ficar em pé agarrado por brisas que metem seus dedos por dentro dos cabelos. Parar de repente, meio da rua, com o peito deste tamaninho. Engolir um soluço como quem rouba uma fruta. Passar um micronésimo de segundo morto e gelado (e depois, por favor, por favor e por favor, reviver. E ser perdoado).
 
Ai como é bom morrer de saudade.
 
Olhar uma foto e pegar conjuntivite. Ganhar gripe e olho vermelho por força de muito pensar. Sentir aquele cheiro e desmanchar. Ser alcançado por aquele sol em plena corrida pra esquecer. Ter a boca cheia de línguas outra vez. Levar tiro de lembrança, chumbo de ausência, sangrar por dentro da cabeça (sem tenência - e sem sangrar).
 
Não dói nada morrer de saudade.
 
Mas ô se dói! Dói do cabelo cair, do olho arder, de querer vomitar. Dói desespero brando, brasa teimosa de nunca apagar, dói da perna bambear. Dói de lembrar. E dói de sorrir. Dói de respirar, dói de partir e de ficar.
 
Morrer de, morrer-te, morrer, ô sôdade.
 
Casa ao longe na curva, rede, chuva e parede. Olho dela (e dele) pousado, pra sempre, à esquerda de cada pensamento que passa, referência de saída e de entrada. Cimento e argamassa sem tijolo nenhum. Suspiro de gelo, rumo de nimbo, pra fazer chover. Certeiro: alma alagada. Charco, passada pesada, esterco e lótus à toa plantada.
 
Ai, saudade. Tão bom que é morrer de saudade.
 
Desarregaçar as mangas, despreocupar-se, desdizer-se e desmorrer-se um pouco. Boiar em leite, drogar-se. Fantasmar-se. Virar fumaça e ser, contudo, pura carne (marcada - rês privada).
 
Morrer de saudade - morte morrida, morte matada.
  
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Fingimos que fomos e vortêmos: ói nóis aqui 'tra vêis. Demoramos com a maquiagem, queridos? Uma lipo e uma esticadinha aqui do ladinho do olho, sim - se nota? Você é muuuuito gentil.
 
Agora, a questão é que o mês está esquisito - que calor, não? -, a incerteza quanto ao futuro nos angustia - e se der Serra? e se der Lula? e o George Soros falando tanta bobagem, meu Deus? -, a última pétala da margarida deu mal-me-quer - ou caiu na blue note entre o amor e o nem aí, que isso de meia pétala é real e científico -, e, pra finalizar, a bolinha da roleta parou no sinal vermelho. Ajuntando tudo: bodeamos. Spam Zine parado para reparos, para tomar ar, para reabastecer, para balanço, para reavaliar. Spam Zine no hangar.
 
Perdoem, por favor, o quanto nos fizemos esperar.
 
A compensação é fino biscoito: o estupendo Erasmo Júnior de volta; Paula Foschia (lê-se fósquia) estreando em momento bleu; Gustavo Caetano sangrando em cada linha; Kazi tirando o cotidiano de cima de si; e Nemo Nox finalizando análise blogueira.
 
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Spam Zine é trem da alegria, ainda que atrasado. De todos os fiéis leitores e leitoras que responderam a Spamsquisa (obrigado a todos!), eis os vinte e cinco felizardos que ganharam seus exemplares da revista Play:
 
Chico Barney > [email protected]
Douglas Backes > [email protected]
Expedito Paz > [email protected]
Henrique Fanti > [email protected]
Manoela Assayag > [email protected]
        (os 5 primeiros questionários recebidos)
 
Angela > [email protected]
Biscoito Doce > [email protected]
Carlos Eduardo Moura > [email protected]
Cláudio Rúbio > [email protected]
Czernobog > [email protected]
Edson Gomes dos Santos > [email protected]
Flavia Ballve-Boudou > [email protected]
Gisa > [email protected]
Jonas D. Schmidt > [email protected]
Luiz Marcel > [email protected]
Marco Aurélio Brasil Lima > [email protected]
Martin Dolman > [email protected]
Mateus Potumati > [email protected]
Milene AA > [email protected]
Nicole Lima > [email protected]
R. Seabra > [email protected]
Rosy Feros > [email protected]
XV > [email protected]
vitoriamario > [email protected]
Wagner, aka "Não Irei" > [email protected]
        (os 20 leitores selecionados)
 
Pessoal, entrem em contato: escrevam para [email protected], e mandem os seus endereços completos para que possamos enviar seus exemplares da Play. Quanto aos demais, não esmoreçam: novas promoções ainda virão por aí.
 
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orquídea no mel
erasmo júnior  [email protected]
 
    For one moment
    I wish you'd hold your stage
    With no feelings at all
    Open minded
    I'm sure I used to be so free
    ----Citizen Erased, Muse
 
                Ela parece uma estrela de céu nublado porque na minha vida é sempre noite. Agora estou olhando para as minhas pinturas com todos os prêmios adquiridos ao longo desses dois anos que nunca me valeram um mero polimento. O cavalete armado porta mais uma tela vazia aguardando a próxima criação, dez mil, vinte mil, não sei o quanto pagarão por mais um desses abortos, nem sei por que sou tão caro.
                Estou quebrado para sempre. Não consigo ser suficientemente grande para conter o amor que estou nutrindo pela sua existência. Então, quando a chuva começa a batizar a noite lá  fora (posso escutar), eu decido começar a obra. Pego o estilete, estico meu braço, expondo o pulso esquerdo da maneira mais obtusa possível. Será que se faz valer assim, desse
jeito, trabalhando em uma condição subumana de dor, dor e dor? Deslizo a lâmina, carne contra aço, suaves e amantes. Não lembro quando comecei a pintar, não consigo lembrar de muita coisa antes dela. Nem depois. Aliás, mal consigo entender o que se passa comigo agora. A linha deixada sobre a cicatriz na pele se tinge com sangue bem devagar, e não me parece o suficiente; mais uma vez. Um leve esguicho se atira para fora do vaso e me
sinto satisfeito. Vamos lá, meu tempo é curto.
                Pego o pincel e vou ao cavalete. A primeira colhida sempre sai mais escura que as seguintes, mas eu já domino essa maldita técnica de sofrimento há muito tempo. Os minutos passam e passam e vou decorando a tela branca com traços feitos de meu próprio sangue, tirando um pedaço de mim para compor mais um trabalho de arte. A fraqueza começa a arder em meus ossos, meu coração dispara e apresso as pinceladas.
                Resta pouco para o final.
                A visão embaça, mas o meu alívio é poder enxergá-la com o olho da mente e do coração. Vamos, imploro para a imagem que se forma, tênue e tenra, ajude-me a acabar mais esse quadro para você. Sabia disso? Todos os outros, o ateliê inteiro, as vendas, os esboços, são seus. Absolutamente seus, e você nunca precisou me ajudar porque no final das contas é você quem os faz, através do meu sangue e do meu sofrimento.
                Sinto-me muito tonto e quase satisfeito. As pinceladas trêmulas e o suor frio completam os últimos momentos da obra. A melhor que eu fiz em muito tempo, com vários tons do vermelho se opondo a palidez da tela, uma textura absorvente, refletora do vazio. Será que ela vai olhar para esse quadro? Nunca consegui saber se isso aconteceria, mas eu não canso de esperar.
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                Pronto. O pincel cai da minha mão, não há mais cavalete, nem tela, nem estúdio, nem noite chovendo. Apenas um leito macio, onde ela me espera transbordando seu calor e seus espinhos, eu não sabia que ela tinha espinhos, espere, me espere, se ergue de onde está e sorri para mim, com pena e carinho. Por favor, não tenha pena, tudo menos isso, não tenha pena de mim, leve os quadros ou fique comigo mas não sinta piedade. O seu cheiro, doce e maduro, como um óleo em minhas narinas, uma orquídea no mel, da natureza e do colostro das amantes, rasga o resto da minha carne. Ela continua sorrindo e se afasta, mesmo sem andar, se afasta de mim flutuando, de frente e de braços abertos, cada vez mais distante, deixando meus quadros e minhas feridas para trás, por favor não me abandone, eu mato, eu morro, eu destruo, qualquer coisa por você mas não me deixe sozinho com esses malditos quadros
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                Nem amanhecer, nem entardecer; na minha vida é sempre noite. O seu ultimo quadro, diz o meu agente, alcançou quarenta mil nesses três dias em que você esteve internado. Essa coisa de fazer dinheiro com sangue e arte deu certo mesmo, e sorri para mim, dentes tortos e idiotas. Três dias, eu pensava que tinha sido apenas um sonho ruim, três malditos dias.
                Não posso vender. Faço outro, mas esse eu não quero vender, respondo para ele.
                Tudo bem, tudo bem, você quem sabe, mas o próximo talvez não atinja tanto, estamos trabalhando com arte de ponta, profissionais de ponta, as resenhas são muito positivas, mas já se fala em até quando vai durar essa sua vida de artista da dor. Você ficou muito fraco pra fazer esse último quadro, sabia? Quase morre.
                Não consigo mais escutá-lo. As suas palavras se dissolvem em flores e esgoto saindo de uma boca com dentes tortos. Tudo o que desejo é sair logo daquela cama de hospital e retornar para o meu ateliê, colocar a obra na vitrine, aguarda-la passar. Eu sei que ela vai passar, cedo ou tarde, vai passar e vai olhar para aquilo e entrar para me perguntar. O meu coração me diz isso desde a última pincelada.
                Quando ela passou em frente ao meu ateliê pela última vez, eu estava organizando as telas que ficavam expostas para quem passasse na rua. A mesma atitude; passos lentos, cuidadosos, com a cabeça erguida e olhos quase fechando, como se o sol a ofuscasse de alguma coisa, que ridículo, o sol a ofuscando. Seguia cadenciada em seu ritmo erudito, em roupas sinceras, ultrajando-me na minha insignificância de artista a contemplar a inspiração. Aquele que cria a arte nada mais faz do que uma cópia borrada de algo que nunca vai possuir, sei disso pela maneira com que ela atravessava a minha vitrine. Quando eu penso que finalmente terei minhas obras notadas, ela segue em frente, sem mover um músculo do seu pescoço, deixando-me para trás mais arrasado, mais ferido e desesperado.
                Incapacidade, a minha cabeça roda e roda. Da próxima vez preciso que seja diferente e, eu sei, ela vai olhar. Não há mais nada a fazer.
 
*             *                *
 
                Era a minha quinta entrevista na semana, toda vez a mesma coisa, as mesmas perguntas e as mesmas respostas adocicadas me prometendo o bendito emprego. A vez em que cheguei mais perto de ser contratada foi para fritar batatas no fastfood, mas também não deu certo, não sei por quê.
                Faz muito tempo que eu rodo e rodo sem conseguir nada.
                O meu sono parece que foi embora junto com a possibilidade de ser admitida em algum canto. Faz meses que venho brigando com a noite, rolando de um lado para o outro da cama sem conseguir fechar os olhos, por mais cansada que esteja. Quando pego no sono depois de muito, muito tempo, é como se eu fosse jogada em um tipo de prisão sem muros, sozinha, no escuro, procurando uma saída de volta para a lucidez. Eu acordo, ainda de noite, não consigo mais pegar no sono e choro para que a manhã chegue logo.
                Na entrevista: você esta desempregada há quanto tempo, a mulher me pergunta. Treze meses, eu minto, porque na verdade já são mais de dois anos. Tem experiência no que, tem segundo grau completo, tem filhos, tem mais de vinte e cinco anos, tomou café da manhã hoje, saiu nervosa de casa? Não, não, não e não, eu não tomo café nem almoço há muito tempo, porque simplesmente sinto um asco profundo por comida.
                Tem alguma doença, ela pergunta, nem olha na minha cara, os óculos na ponta do nariz, olhar para baixo caindo sobre uma ficha de papel, rolando a caneta com a ponta dos dedos sobre a mesa. Eu tenho convulsões desde pequenininha, mas quando eu tomo o remédio, não tenho nada. Ah, é? Você acha que isso poderia atrapalhar o seu emprego? Não, nunca me atrapalhou, eu tomo o remédio e não sofro nada.
                Mentira. Deixei de tomar meus remédios meses atrás, quando o meu dinheiro se esgotou completamente. Ainda sobravam alguns comprimidos, mas toda vez que eu pensava em tomá-los, sentia o coração disparando e vontade de chorar. Tenho tido convulsão quase todo dia
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                Quando volto a mim, estou no chão com a cabeça no colo de algum funcionário do lugar, com a mulher contratante me olhando de perto, a cara esquisita. Meu deus, você tomou mesmo o seu remédio, que perigo minha filha, já pensou se você cai no meio da rua, você esta se sentindo bem, quer que alguém te leve para um hospital? Não, não. Eu vou para casa.
                Ela me fala, sinto muito, sinto muito. Eu sei que perdi uma chance outra vez. Quando já estou de volta na rua, noto que estou com a camisa coberta com baba e a calça molhada de urina. No outro instante, estou chorando de novo, com o coração saindo pela boca de tão rápido. Não dá mais tempo para nada essa semana, nenhuma nova tentativa, nem perspectivas. Nunca pensei em me prostituir, cometer crimes, deus me livre, eu não sou capaz de coisas ruins e tenho medo de ter convulsão novamente. Parece até que eu sabia quando ia ter, ficava o dia todo me monitorando, esperando vir a tremedeira e o bate-bate. Quando eu me cansava e esquecia que podia ter, voltava a mim caída em algum canto.
                Sem mais o que fazer e cedo demais para voltar para casa, eu tomo rumo para o retiro musical. Depois que eu descobri o retiro, desde que fiquei desempregada, ganhei alguns magros minutos sem tristeza no meu dia. Andava uns três quilômetros do centro até a quinta principal, passava a catedral e a região das galerias de arte e, antes do viaduto que volta para o centro, encontrava a casa que servia como o retiro. Vou seguindo para lá sem medo de ter convulsão novamente porque eu sei que só com o fato de me dirigir para um canto tão maravilhoso, a possibilidade de eu passar mal se suprime.
                Na ida eu troco olhares com algumas vitrines de arte que nunca me agradaram.
                Então, quando eu chego no retiro, me sento logo na frente, no meio de indigentes e outras pessoas necessitadas, porque eu também era necessitada, e espero começar. Umas oito crianças sentadas em banquinhos no palco improvisado, cada uma com seu instrumento, violinos e violoncelos, iniciam junto com uma velha professora no piano as quatro estações de Vivaldi. Primavera em E maior, Allegro, Largo e pianíssimo sempre, Danza pastorale: allegro. Estou toda arrepiada, como uma orquídea no mel. Mesmo sabendo que o não realizado agora é o não realizável para a minha vida, sinto-me coroada com aquelas notas tão doces, estou toda arrepiada. Em G menor, verão, Allegro non molto. Cada instrumento permeando meus pensamentos para bem longe, para um lugar especial onde eu sou feliz por eternos poucos minutos do meu dia.
                Adagio - presto. Presto. A velha professora sorri para mim, de costas em seu piano. Sinto vontade de gritar, rir, e chorar, e dançar. Só resta a mim na platéia porque alguns dos missionários do retiro passaram servindo café e leite com queijo quente e os indigentes se foram. Obrigada, não quero nem mesmo o sanduíche porque tudo o que eu coloco no estômago, vomito. Me deixem, o que eu preciso agora é do Outono, F maior, Allegro, Adagio, Allegro. Aqueles docinhos, crianças tão doces, tocando para mim. Se eu pudesse, eu teria aprendido a tocar também, talvez pudesse estar ali junto delas ao invés de apenas admirá-las.
                Meu coração, tão cheio de conforto no retiro, refúgio da minha dor. Inverno, o meu momento preferido, Allegro non molto, largo, as crianças menores tocando sozinhas, entram as do meio, agora todas estão juntas tocando, sob a guia da professora. Ontem tocaram Grieg, Morgenstemning, Anitras Dans, I Dovregubbens Hal e eu chorei bastante de
emoção, mas o Vivaldi, o Vivaldi não me cabe. Estou toda arrepiada, me tremendo, com o coração disparado, aplaudindo e aplaudindo. Hoje é sexta, que pena que não os verei amanhã nem domingo. Voltar para casa é sempre um sufoco porque eu caio do meu vôo de alivio, da minha fuga, e volto para a realidade. Sei que quando chegar ninguém vai falar comigo ou me perguntar nada. Fogem de mim e não me dirigem a palavra porque não consigo arrumar emprego, porque não tomo mais o remédio e porque não procuro um médico para resolver isso. Eu nasci quebrada, eu falo sempre, nasci quebrada e morrendo. Depois que abandonei meus pais para morar com um monte de primas numa pensão, as coisas desandaram. E agora, mesmo querendo voltar, precisando voltar, é tarde demais...
                Finalmente, Allegro. Queria que não acabasse. São as ultimas passag
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                Chego de volta ao ateliê, com o ultimo quadro comigo. O agente tinha avaliado novamente e o valor disparou mais uma vez. Quatro pessoas tentaram negociar, mas ele sabia que eu não ia vender aquela obra.
                Coloco no cavalete da entrada, virado de frente para a vitrine. Já era noite e eu sabia que não a veria passar mais hoje, e que se a visse novamente, seria na segunda-feira. Tranco as portas, coloco os alarmes e cadeados, removo-me para os meus aposentos. Antes de ela ter entrado na minha vida, há dois anos atrás, eu era um artista medíocre que morava no próprio ateliê, cheirando thinner e tinta óleo. Hoje ainda moro no mesmo ateliê, ganho dinheiro, prêmios, convites irrecusáveis pelos meus trabalhos e me sinto uma farsa, um fracasso, e, pior de tudo, mais infeliz do que quando era um desprezível. Sou uma farsa porque toda essa revelação artística, revolucionária, suicida e verossímil, imprevisível e inspirada, não vem de mim, mas vem da imagem dela. Todos os meus pensamentos se procriando em função de uma única criatura que eu vejo esporadicamente, e que me faz incapaz de se aproximar ou de perguntar qualquer coisa.
                Massageio os pulsos cortados, por cima dos curativos. Se você fizer isso de novo, disse o médico, vai morrer. Eu não ligo mais.
                No meu quarto de esboços, guardo os rascunhos que usei para a última tela. O chão ainda exibe manchas coaguladas de sangue e o estilete permanece caído no mesmo canto onde eu o soltei. Há uma revista de generalidades importante aberta em cima do banco com um retrato meu no meio da página. "O artista da dor: pintor prodígio de vinte e seis anos retrata seus sentimentos compondo telas com o próprio sangue." Na foto, estou de lado, com um pincel na mão, uma meia expressão vazia e sem inspiração alguma; os quadros ao fundo são apenas borrões vermelhos. "Desde o seu debut antes do natal do ano retrasado, o artista da dor vem se aprofundando cada vez mais numa obra visceral e emocionada, misturando uma bagagem cultural única, com toques de Monet, Bosch e Portinari, e elementos caóticos centrados em fractais e figuras femininas".
                Então é isso, eu sou um borrão. Desde antes conhecê-la, desde antes das minhas surras no colégio e mal estares infantis, eu sou um borrão.
                Guardo a revista, sento no banco e coloco uma nova tela vazia no cavalete. Se você pintar de novo, vai morrer. O que mais eu posso tirar então, doutor, de uma vida vazia onde eu não consigo completar o que me falta, onde dói a consciência de amá-la, uma orquídea no mel, tão tenra, cadenciada, seus cabelos nos ombros, passando diante de todos os meus prêmios sem prestar atenção a nenhum deles, passando diante de minha vida resumida em uma obra feita para ela, quântica, adstringente. Ela não me nota, doutor, porque eu sou um borrão e fico guardado no fundo do ateliê. O que sai de mim, as obras de sangue, devem ser exibidas. Essas, sim. E mesmo essas, ela não nota.
                Pego o estilete novamente. E o pincel. Eu não tenho medo de morrer, o meu pavor é o fato de estar vivo, suportando as dores das perdas e o desespero de me ver perdendo alguém que eu nunca tive. No espelho do fundo da sala eu vejo meu reflexo quebrado, estou muito pálido, sem uma gota de sangue. Sobrou pouca coisa para uma nova realização. O mundo continua a passar lá fora e a chuva volta a pesar, furiosa; o telefone toca repetidas vezes, não vou atender. Passam as horas e continuo sentado no banco, imóvel, com o estilete na mão olhando para a tela, mas não estou conseguindo lembrar do rosto dela, por mais que a ame, e por mais que a deseje, sem saber o que pensar, completamente perdido porque estas coisas fogem de mim. O telefone toca de novo, o celular, o Pager. No fax, as mensagens de propostas para exposições não param de chegar, mas eu nunca liguei para isso.
                Como era mesmo o rosto dela? Pequeno e fino, olhos poligonais, discretamente caídos, as pálpebras, os cílios longos e escuros escondendo o brilho intenso da pupila, lábios tão roxos e sem contorno que se perdem com o branco da pele, com a linha do nariz miúdo, discreto. Toca a minha campainha. Corto o pulso novamente, em cima da ferida recente, eu penso sempre nessa hora, feridas abertas são portas para eu entrar. Toca de
novo, de novo. Batem na porta, sinto o sangue fluir livremente para o pincel. Nem preciso mais toca-lo com as cerdas, ele jorra sozinho em direção da tela. Três batidas tímidas na porta que depois se silenciam completamente, em sinal de desistência, as pontas dos dedos adormecem
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                ...
                Como é mesmo o rosto dela?
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                Uma orquídea no mel.
 
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                Fiquei com vergonha pelas criancinhas terem me visto cair na frente delas, tremendo e se debatendo. Ficaram assustadas, eu não queria assusta-las, juro que não queria que isso acontecesse de novo e justo no retiro, onde eu achava que estava protegida de mim mesma. A professora tentou me ajudar e me deu um cartão e um santinho com alguma oração, falando para eu procurar ajuda, que eu podia ter epilepsia, ou uma outra doença grave. Eu já sei, eu já sei. Tomei um copo de água com açúcar, limpei as excreções e fui embora. Na segunda esquina vomito a água. Estou de volta às
ruas sem saber se volto para casa, se continuo rodando, rodando.
                Não quero mais voltar ao retiro.
                Perder os movimentos, a estrutura clássica das sonatas, allegro, adagio, allegro. Andante, largo, presto. Quando eu estou em casa, a única coisa que consigo fazer é escutar meus compositores preferidos, como se eles pudessem me entender através da música que tocam para mim. Scherzo, prestíssimo. A trilha sonora da minha vida é Beethoven, sonata número 14. Vivaldi. Corelli em violino, aquelas crianças iam toca-lo na próxima semana e eu não poderei mais vê-las. Começa uma garoa, atravesso a sexta principal em esquina com o alambrado demolido. Os carros voltam para casa e o ruído no trânsito me faz pensar nos tempos em que eu ainda vivia com minha família, tomando os remédios e sobrevivendo melhor. Faltava muita coisa ainda, mas quando eu tive uma crise e fui abusada pelo meu pai durante o tempo que passei desacordada, minha mãe o colocou para fora de casa, chocada. Foram várias vezes. Não tem como esquecer, eu pelo menos não consigo deixar isso para trás sem ficar longe de todos eles, aqui, nesse inferno. As primas falaram que eu podia me aposentar ao invés de trabalhar, que o meu problema
é grave e que sou uma inválida.
                A garoa vira chuva, igualando seu barulho com o ruído do trânsito. Já estou toda encharcada, mas não faz diferença.
                Quando atinjo a região das galerias de arte, a maioria fechada, paro para olhar uma por uma. Meu pai ainda me procurou há um tempo atrás, mas eu fugi dele e não deixei mais rastro. O que vejo nas vitrines não tem o mesmo valor que uma cantata ou sonata, que transparecem as coisas com muito mais facilidade, são muito mais dramáticas e intensas. Quadros cafonas, estatuetas esquisitas, artistas falidos. Então eu chego no ateliê do centro da avenida e começo a olhar o seu interior pelo vão das barras de metal sobre a vitrine. São poucos quadros, muitos cavaletes vazios, e bem na frente, em destaque, há uma tela maior, delicadamente pintada em vermelho. Um rosto feminino.
                Percorro os olhos para a porta de entrada, de madeira pesada, escrito "artista da dor" em pequenas letras de metal. Nunca tinha notado esses quadros. Volto para o retrato de mulher, um rosto muito triste, inteiro em tinta vermelha. Borrado mas perfeitamente nítido, os contornos, e muito familiar. Os outros quadros são belos também, mas aquele se sobressai por causa da intensidade.
                A chuva permanece forte. Os carros começam a diminuir no fluxo da avenida. No reflexo do vidro, por trás das barras de metal, vejo o meu rosto molhado, de uma mulher acabada. Fico inteira arrepiada, meu deus do céu, não pode ser, e vou deslizando a imagem formada até que ela fique em cima da tela com o retrato. Meu coração está tão disparado que mal consigo senti-lo bater. De alguma maneira, o reflexo se encaixa quase que perfeitamente naquela obra tão sensível. Não sei se é algum tipo de coincidência, de ironia, mas aquele é o meu rosto, o meu rosto pintado por alguém muito delicado. Sou eu mesma? O artista da dor, esse é o nome. Há uma luz fraca nos fundos do ateliê, ou talvez só impressão minha, será que eu estou entrando em convulsão novamente? Podia ser uma lâmpada deixada acessa de propósito, toco a campainha. Nada. Penso nas crianças tocando com a professora e nas minhas respostas para as entrevistas quando me perguntavam a respeito da minha vida. Não consigo fingir o tempo todo nem consigo mais lutar, nem consigo dormir ou me concentrar porque eu fico muito ansiosa, como se esperasse por alguma coisa que não sei o que é e agora encontro um quadro com o meu rosto, será que era isso que eu estava esperando, será? Toco de novo, aguardo, e de novo. Bato na porta desesperada. Não há mais ninguém ali e vou ter que esperar novamente para ver o quadro de perto e descobrir quem o fez, e se não for o meu retrato, eu vivo esperando
                ...
                ...
                Ando nas ruas, sem rumo, sempre noite, tomando chuva e me sentindo tonta. Não como nada há muito tempo, o meu organismo fraqueja
                e fraqueja, e fraqueja
                e não há mais nada para mim.
 
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adagio azzurro (post a la mirisola)
paula foschia  [email protected]
  
Durmo lendo A Hora da Estrela na poltrona do quarto. Acordo. Um ovo na minha cabeça. Sem sangue, só dor e sono. O sangue está todo nos meus dentes de baixo. Eles vão cair? Eu pressiono os dentes com a língua e bebo meu próprio sangue e é gostoso. O almoço, um miojo com guaraná Fresh e de sobremesa gelatina de uva. Enquanto a água ferve abro o armário, uma caixa de Lasix. Diurético bom pra quem tem problema de coração, estimula a limpeza do organismo, faz o sangue circular melhorzinho, acho eu. A caixa de Lasix do meu avô, morto há quatro anos. Pra que guardo este remédio, certamente já vencido, do meu avô que morava comigo há quatro anos atrás?
 
... guardo também o secador de cabelos quebrado, quebrado porque o derrubei no chão e ele passou a fazer um barulho estranho e fez também fumaça com cheiro de incêndio. O secador último presente do meu avô. O secador do anúncio das Casas Bahia, ao qual ele atachou um clips e 50 reaus e me disse "compra pra você, o seu cabelo fica bonito". O secador antigo eu tinha quebrado, derrubando no chão. O das Casas Bahia, presente do vovô, eu derrubei no chão também. E chorei. Era o último presente do vovô. Chorei também quando derrubei o pingente de cruz de madrepérola que ele e minha avó tinham me trazido do Monte Tibor. Tudo bem que quando eu derrubei a cruz e a pontinha dela quebrou eu já era pagã, mas eu era catoliquinha quando ganhei. Católica apostólica romana, e foi vovô e vovó que deram e eles trouxeram de Israel ou algum lugar assim importante para os católicos apostólicos romanos. Agora do vovô eu só tenho um casaco de lã machado de ferrugem, que eu uso quando tá muito frio ou quando eu tô muito triste (geralmente dá no mesmo), e meio vidro de Dimitri, o pergume que ele me deu e que era de homem mas não tem problema porque na maioria do tempo eu sou muito macho. E meus dentes ainda sangram, os de baixo, será que vão cair? Se eu sonhar que caiu um dente, diz que é certo que vai morrer alguém, mas e se os dentes caírem de verdade, um a um, como se fosse um sonho acordado? Quem morre? Eu?
 
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5:30
gustavo caetano 
[email protected]
 
O relógio despertou com a precisão e dureza de uma trombeta militar. Seus olhos se abriram, não queria ficar nem mais um segundo na cama. Sentou-se, tateou o chão com os pés em busca de seus chinelos. Esfregou o rosto e bocejou demoradamente. Esticou-se e gemeu como um gato.
 
Aquela manhã parecia estranhamente azul.Como num desses filmes modernos.
 
Desligou o chuveiro e se enfiou debaixo da água fria. Contou mentalmente até quando seu corpo começou a tremer.
 
75 segundos.
 
Terminou de se lavar. Se enxugou e vestiu-se para trabalhar. O mesmo terno surrado de sempre.
 
Trabalhou roboticamente como sempre fazia. Cumprimentava a todos com grunhidos e acenos automáticos.
 
Saiu do trabalho e resolveu que não iria para casa. 
 
Entrou num restaurante e pediu que servissem uma refeição. Trocou algumas palavras com a garçonete. Parecia um pouco nervoso. Diante de sua resposta, ele a segurou forte pelas mãos, pegou a faca sobre a mesa e a colocou contra seu pescoço.
 
Ela gritou e as pessoas correram do bar. Ele não cessava de cochichar em seu ouvido.
 
A polícia não tardou em chegar.
 
Ele suava.
 
O delegado conversou com ele. Garantiu sua segurança se se entregasse logo.
 
Ele continuava a cochichar no ouvido dela.
 
Ela começou a chorar. O delegado começou a falar mais alto, parecia também nervoso.
 
Ele agora tremia, e apertava mais forte a faca.
 
O delegado tentou então arrancar dele algum pedido de resgate.
 
Ele não queria dinheiro.
 
Um filete de sangue escorria pelo pescoço dela.
 
O delegado ameaçou. A policia apontou armas para ele.
 
Ele tremia. Ele suava. Ela chorava.
 
O delegado atirou, e o tiro atravessou sua testa. Ele caiu. Morrera de olhos abertos.
 
Nunca se soube as intenções dele. Fora declarado louco pela imprensa. Somente ela sabia o que ele havia dito em seu ouvido. Somente ela sabia o que ele queria. Algo que não havia no cardápio. Algo que ela não podia lhe dar. Ele queria uma resposta, a uma pergunta que ela não podia repetir.
 
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p e r g u n t a r   n ã o   o f e n d e
"Se você pudesse sabotar a Arca de Noé, qual bicho tiraria de lá?"
 
júlio césar da luz  [email protected]
Ah, com certeza tiraria as cadelas. Não teríamos mais cães latindo durante a noite, e nem cachorros emperrando a gente no metrô às 6:00 da manhã.
 
junior, calvin & hobbes cia unlimited enterprises associated  [email protected]
Noé e a Familia.
 
as mulatas de jesus cristo  [email protected]
Se eu pudesse sabotar a arca de Noé, eu tiraria a Astrid Fontenele.
 
adilson fuzo  [email protected]
Eu tiraria o casal de cupins. Sem dúvida!
 
pedro vitiello  [email protected]
Tiraria alguns candidatos, que segundo a propaganda eleitoral vêm sempre com seu equivalente de sexo oposto (vote em seu deputado ou deputada, senador ou senadora, governador ou governadora...). Ia deixar minhas noites televisivas mais alegres.
 
roberto moschen jr.  [email protected]
Eu tiraria o urso panda. Um bicho daquele tamanho, com garras e dentes enormes, querer se fazer de bonitinho e ainda morrer se não tiver um tipo específico de bambu por perto... é o cúmulo da indignidade!

rachel gusmão  [email protected]
As baratas. Como se não bastasse serem repugnantes, asquerosas, ainda vão ficar rindo de nós, vivinhas e reinantes, depois da Hecatombe Atômica! É muito atrevimento!
 
alessandro  [email protected]
"Só as cachorras, uh, uh, uh..."
 
pergunta da próxima semana:
"Você acha possível que nossos dejetos acabem aterrando os oceanos?"

Mande seus torpedos: [email protected].
 
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cabeça descoberta
kazi  [email protected]
   
Ele voltava do trabalho sempre pela mesma rua, dia após dia, já há trinta anos. Podia ver a mudança dos arredores. O trajeto nunca lhe pareceu muito longo: quatorze quarteirões palmilhados em sentidos opostos, duas vezes ao dia, sempre no mesmo horário, sempre com a mesma diligência, sempre com a mesma atenção.
 
Passado um tempo, os buracos lhe eram conhecidos, e a vida deles passou a lhe interessar. Quando um novo se abria, havia uma pequena comemoração em seu íntimo - ele não se lembrava de ter algum dia considerado os buracos do caminho possíveis problemas para as pessoas; conhecia-os tão bem que nunca iria tropeçar. Ninguém iria. Olhar o buraco aumentar de diâmetro ou ser tapado, juntar-se a outras cavidades em crateras além do aceitável; observar a ação do tempo e das intempéries (qual buraco se alargava com a chuva, com a seca, com o vento).
 
Não só os buracos: as fachadas eram coisas vivas e mudavam de acordo com os moradores, algumas com as épocas do ano, algumas com a mudança de ramo; as lojas, essas se abriam e fechavam, tal qual os buracos. Mas ele não via as pessoas. Por vinte anos, não trocou mais que meia dúzia de palavras naquele trajeto, e sempre por ter sido interpelado. Meia dúzia de momentos excruciantes que, não durando mais de um minuto, pareciam sugar-lhe os anos.
 
Havia descoberto um meio de se tornar invisível, de se misturar às fachadas, aos buracos. Sabia andar com o olhar sempre perdido, ainda que aparentemente, sempre evitando o contato, a dar pouca ou nenhuma chance de interação.
 
Ele era chamado chapéu-sombrinha por causa do hábito de carregar, todo dia, um guarda-chuva, mesmo durante o inverno seco. Ainda que não soubesse, era conhecido por todos naquele caminho. Não havia pessoa nas ruas pelas quais andava que não o olhasse passar com alguma reverência. Todos o sabiam homem de bem. Menos ele. E sua mulher era também respeitada.
 
Ele provia, sua mulher abastecia. Era um trato natural que lhe permitia sequer parar para comprar algo. Sua mulher tentou duas ou três vezes lhe pedir para passar em qualquer lugar e trazer qualquer coisa. Por qualquer motivo, ele sempre esquecia. Ela o conhecia, e não precisou mais que essa terceira vez para desistir. Ele sempre lhe foi grato, muito embora nunca o tenha dito.
 
***
 
Naquela manhã de novembro, há um ano, ele parou de repente numa esquina, ergueu os olhos e decidiu não ir para o trabalho. Andou meio quarteirão numa direção diferente, até um ponto de ônibus, cambaleante com a emoção, sentindo-se tonto, inebriado. Encostou no poste e fez sinal sem ver o nome da linha. Subiu e perguntou ao cobrador o quanto deveria pagar. Displicente, o cobrador apontou com o dedão a placa atrás de si. Ele pagou a tarifa, passou pela catraca e sentou-se no banco alto, olhando as pessoas e os bancos vazios, e procurando buracos no chão do ônibus.
 
Sorriu, abria a janela e deixou o ar sujo bater-lhe na face. Respirou fundo e olhou o caminho, as ruas diferentes, as lojas sempre iguais. O ônibus seguia por ruas estreitas e subidas; passava defronte a parques e cruzava pontes sobre rios. Ele sentiu que poderia ficar ali para sempre, deixar-se levar. Tantos rostos novos, tantas ruas outras. Tantos buracos no mundo. Um mundo de buracos. Mas os rostos. As faces que lhe faziam lembrar de cada uma das pessoas que viu nascer, que viu envelhecer naquele pequeno trajeto que era seu mundo. Os rostos, as faces, as caras de tantas pessoas que eram o mundo, que pulavam os buracos, que mudavam os caminhos, que abriam e fechavam as lojas e mudavam-lhes as fachadas. Cansado pela excitação, sentiu-se relaxar e os olhos pesarem.
 
***
 
Ao ser sacudido pelo cobrador de ar indiferente, foi informado que deveria deixar o ônibus, que era aquele o ponto final. E agora, pensou consigo, como voltar para casa?
 
Andou. Andou alguns minutos procurando no céu algum sinal, algum direcionamento e, achando ter entendido aquele mapa pontilhado, seguiu mais um pouco até chegar a um pequeno parque.
 
Sentou-se num banco e suspirou. Tirou o chapéu e, prestes a colocá-lo ao seu lado, notou que o gramado tinha uma miríade de chapéus e sombrinhas e guarda-chuvas. Um misto de angústia e medo lhe invadiu. Ele baixou a cabeça e sorriu. Arremessou ambos no gramado: o medo e a angústia, junto aos outros chapéus e sombrinhas e se recostou, ainda sorrindo.
 
Nunca mais foi visto.
 
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colônias temáticas e comportamento emergente
nemo nox 
http://www.nemonox.com
 
Um dos equívocos mais comuns ao falar sobre weblogs é tratá-los de forma monolítica. Tomar a parte pelo todo e achar que o universo blogueiro pode ser representado somente por subgêneros como os diários adolescentes ou os relatos tecnológicos, os warbloggers ou os metajornalistas, é fechar-se para as inúmeras possibilidades do formato. Essas colônias temáticas que surgem naturalmente podem por vezes passar a impressão de conterem uma parcela significativa, tanto quantitativa como qualitativamente, graças à circularidade das referências que oferecem. David linka Doc, que linka Glenn, que linka Chris, que linka Tom, que linka David fechando um dos inúmeros círculos de validação mútua tão comuns na cartografia ciberespacial. Basta um pequeno esforço para escapar dessas órbitas e conhecer outras partes do universo.
 
Mas se o universo blogueiro não existe como entidade monolítica e sim como coleção de indivíduos e colônias de indivíduos com perfis, métodos e objetivos distintos, como explicar o comportamento aparentemente direcionado e organizado que o fenômeno por vezes exibe como um todo? De onde sai esse impulso que parece fruto de uma vontade coletiva?
 
No estudo da vida artificial (modelagem de sistemas complexos com características semelhantes às de organismos vivos, um ramo fascinante da ciência misturando biologia, teoria da evolução e simulações de computador), um dos conceitos mais importantes é o do comportamento emergente. Organismos individuais possuem comportamentos simples, grupos de organismos com comportamentos simples podem gerar comportamentos complexos quando agem coletivamente. Entidades programadas com instruções diretas, teoricamente capazes de executar somente ações simples, quando reunidas em grupos transformam essa coexistência numa combinação imprevista de resultados aparentemente saídos de um objetivo consciente. Quando o sistema é analisado, porém, constata-se, como já era sabido a princípio, que as únicas instruções fornecidas continuam sendo as diretivas de cada indivíduo e que elas não apontam o caminho tomado pelo grupo. Não se trata de movimentos organizados ou de ações planejadas, mas simplesmente de comportamento emergente, resultado natural da reunião de entidades simples confirmando a máxima aristotélica que o todo é maior que a soma das partes. Da mesma forma que milhões de células diferentes se organizam naturalmente para formar um ser vivo, outros sistemas complexos são também produto de partes sem qualquer controle sobre o comportamento do todo.
 
A coletividade formada pelos weblogs, na qual a organização consciente não vai além dos pequenos grupos das colônias temáticas e onde, graças à quantidade crescente de indivíduos, o conhecimento do todo é impossível para cada parte, funciona de certa forma como as experiências da vida artificial. Seguindo somente suas próprias diretivas, cada blogueiro representa uma célula desse organismo complexo, que avança sem organização planejada mas demonstra um comportamento definido, emergente da microatividade de cada um de seus elementos. Tentar entender o universo blogueiro como um movimento consciente e monolítico demonstra falta de percepção da forma orgânica com que se comporta e evolui. Muito mais interessante e produtivo é aceitar a individualidade inerente dos weblogs e tentar entender o fenômeno com todas as características caóticas e fractais que possui.
 
(texto publicado originalmente no site Burburinho - http://www.burburinho.com)
 
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f a l a   q u e   e u   t e   e s c u t o
Nossa hotline, [email protected], não parou de funcionar. Não acredite nos caluniadores, nos papa-defuntos virtuais. Spam Zine: eterno enquanto dura, e mais ou menos 24 horas no ar.
 
----- Original Message -----
From: Inagaki, Sabbag, Orlando, Zé Vicente
Sent: Sunday, October 24, 2002 0:01 AM
Subject: E aí, meu irmão, cadê você?
 
"Spam Zine, zifio, que é que houve contigo?"
 
spam zine responde: sei lá, mil coisas...
 
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c r é d i t o s   f i n a i s
 
onde está wally?
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Ricardo Sabbag > [email protected]
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o que aconteceu com baby jane?
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Nemo Nox > http://www.nemonox.com
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p. s.
  
orlando: o Serra não devia ter dito que é palmeirense. Um anda afetando o outro.
 
orlando: a Al-Qaeda vive. último atentado: ragatanga. assererrê