Algumas traições são involuntárias.
Grandes homens admitem erros e ocasionais traições propositais. Não,
não, melhor. Grandes homens não traem. Eles são retos e justos e ajudam
velhinhas a atravessar a rua, e essas coisas todas. E eu não sou tão grande
homem assim, seja para não praticar traições diversas, seja para admitir
traições vergonhosas nas quais tenha me metido com algum entusiasmo. Mas juro
que aquela traição foi involuntária. Eu era muito jovem para entender qualquer
coisa e criar juízos sensatos acerca de que assunto fosse. E, juro, a minha
expressão alegre na fotografia não refletia de modo algum qualquer sentimento de
completude - ou seja lá o que for que as pessoas que se metem em traições sintam
que não seja remorso - relacionado à empreitada. Eu poderia mentir, e inventar
histórias, ou sair correndo com as mãos cobrindo meus ouvidos, e negar tudo. Mas
seria inútil, porque a foto está lá, e eu estou sorridente, com o jardim
ensolarado ao fundo, seminu da cintura pra baixo. E, bem, a pessoa que estaria,
não menos sorridente, te mostrando a foto e, muito provavelmente, fazendo
comentários graciosos acerca de minha nudez parcial, seria minha mãe. E a
palavra dela sempre foi, para todos os efeitos, mais respeitável e confiável que
a minha. Então eu me dou por vencido, e digo que, sim, sou eu mesmo na foto, e
que, sim, aquele é o meu pinto, e que, sim, eu pareço fofo com o meu pinto de
fora naquela foto, obrigado.
A minha inconseqüência à época em que a foto foi tirada deveria valer
alguma coisa, de qualquer maneira. Se não para me redimir de meus pecados, para
que todos pelo menos concordássemos que eu não era exatamente brilhante naquele
tempo, e que atos de bom senso ou expressões ocasionais de sensatez não deveriam
ser esperados, ou cobrados. E, bem, aqueles tempos são idos, e as pessoas mudam,
talvez os mais de vinte anos passados desde aquela tarde alegre no jardim de
minha avó tenham me moldado num homem melhor. Mas eu sei que é inútil me debater
e tentar convencer os outros de qualquer coisa que seja. A prova está lá,
naquela imagem sorridente vinte anos mais nova.
Certo, eu sei que pareço feliz, e alheio ao meu grande erro, mas juro,
eu juro, isto é só porque eu não sabia, eu não tinha idéia do que se passava. E
meu pai se aproveitou disto, e me vestiu com aquela camisa. Foi só por isso que
não reagi. Hoje eu sei, foi errado. E meu pai nem torce mais pra eles. Ele
deixou de acompanhar futebol faz um tempo já. O fato de ser aquele o meu
primeiro registro fotográfico com algum caráter futebolístico é, portanto,
apenas o nefando resultado de uma infeliz conjunção de fatores que me fugiam,
todos, do controle. Eu sei que homens de verdade devem ser para sempre fiéis ao
seu primeiro time, e tudo, mas aquilo foi um ardil, uma armadilha para a qual
fui astuciosamente atraído. Nada disto importa, porém.
A camisa do São Paulo, ainda que uma única vez, num ato insensato
próprio de garotos de um ano de idade, foi a primeira que vesti na vida, e minha
devoção ao Palmeiras é apenas uma expressão menor de lealdade, a alegoria da
pequena alma de um homem que não parece muito arrependido ao virar as costas
para suas origens.
Mas, vejam só, eu tenho uma outra foto parecida com aquela. Talvez ela
pudesse servir como prova da minha antiga e involuntária insensatez, e total
falta de critérios. Nela eu estou seminu também, e aparentemente alegre, mas com
a camisa do Cosmos. É, do Cosmos. New York Cosmos. Isto deveria ser considerado
como mais grave. Afinal, pô, eles jogavam "soccer".
Soccer! Eu sei que o Pelé jogou lá, e tudo, mas, bem, ninguém nunca
levou isso a sério. E eu estou lá, sorridente, com a camisa do Cosmos, a prova
última de minha jovem inaptidão futebolística, mas ninguém liga. Vejam, eu
ficava sorridente vestindo uma camisa do Cosmos também, eu não entendia nada de
nada de futebol. Pra falar a verdade, eu não sabia nem me vestir sozinho, acho
que foi a minha mãe que me vestiu naquele dia. Mas isto conta? Seria isto talvez
prova válida de minha alienação às coisas importantes do mundo naquela época?
Não, não senhores. Porque traições, involuntárias ou não, serão sempre
traições.
E a mim resta apenas a resignação dos traidores.