SpamZine_________________
076
26 de agosto de 2002
são paulo   rio de janeiro   graubünden   goiânia   joão pessoa

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n e s t a  e d i ç ã o:
 
mais arquétipos - o rei dos reis - papai famoso - chocolate terapia - autógrafos jesuíticos - a fag is born - pobreza listada - chapado na chapada - cu

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editorial
orlando tosetto junior  [email protected]
 
Democracia, todo mundo sabe, vem do grego. Não venham me pedir etimologia, pelo amor de Zeus; sabemos apenas, e já chega, que significa que o povo escolhe seus representantes. Tem gente que doura a pílula, que enche os cabelos de lacinhos, e jura que, na democracia, o poder emana do povo, pelo povo e para o povo. Não exageremos: não é bem assim.
 
Churchill dizia que a democracia é a pior forma de governo que existe, com exceção de todas as outras. Apesar de toda a propaganda a seu favor, a democracia nunca se livrou desse estigma de "foi o que se pôde arranjar". A vontade da maioria pode ser um engodo: e se a maioria quiser a pior alternativa?
 
O risco é real, principalmente porque vivemos em um mundo complicado pra diabo. Quem aí entende direito esse negócio de taxa de juros? Quem aí sabe quais as melhores maneiras de explorar nosso potencial aquático? A Faixa de Gaza tem ou não tem importância, afinal? E por que é que o nosso IPI faz as fábricas irem pro México? Essa Tarifa Externa Comum do Mercosul, presta pra alguma coisa? E o currículo escolar, tá adiantando? O Código Penal precisa de reforma ou não?
 
Mesmo os mais informados de nós têm que se confessar perfeitamente ignorantes nesses e noutros assuntos de extrema importância. Quem não sabe nada precisa confiar em quem sabe; no nosso caso, de eleitores, porém, é pior: nós temos que confiar em quem diz que sabe. E escolhemos os camaradas não por aquilo que sabem efetivamente, mas por aquilo que eles nos levam a crer que sabem.
 
Dureza, hein?
 
E fica pior quando a gente percebe que, além de tudo, somos obrigados a votar. O Brasil é o único país do mundo, creio eu, que tem isso de direito obrigatório: o de votar. Não posso, vencido pela ignorância, me confessar incompetente para votar, e deixar de comparecer. Não, tenho que ir. Nem que seja, vejam!, pra votar em branco. Para me abster oficialmente.
 
E o diabo é que Churchill tinha razão. Tudo o que eu falei é péssimo, mas alguém aí está a fim de viver de novo sob algum regime autoritário? Claro que não. Democracia é ruim, mas foi o que se pôde arranjar. Arranjemo-nos, pois.
 
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O Spam Zine chega com o regular atraso de um dia porque, entre outras coisas, o Palmeiras levou de quatro, e o choro e o ranger de dentes me seguraram. Mas valeu, creio, esperar. Temos mais Erasmo Júnior, e as estréias de Elton Mesquita (cujo blog Palhaços, e a página de seu grupo, o Emily Tries, valem uma espiada) e Marcelo Barbão, colunista do Digestivo Cultural, distribuidor de e-books grátis (vá a http://www.bibliotecapublica.kit.net ou a http://www.ciberfil.hpg.ig.com.br e baixe algumas coisas boas) e editor da revista Geek. Temos mais Arquétipos de Massa do Fábio Fernandes, virunduns a virar com pau, e Ellen Aprobato louvando os poderes psicoterapêuticos do chocolate (ela que mora na Suíça, ora, ora). Tem também as aventuras de AL-Chaer entre os caçadores de veados, o também estreante Marcos Visnardi falando sério sobre assunto espinhoso, e o Garoto Juca Júnior mostrando o que espera a Sasha. E, pra acabar, uma Lista Abobrol fresquinha, de autoria de Frederico José, a.k.a. Hassen Arbeithier, ex-responsável pelos blogues Ainda Não Comi Ninguém e Eu Odeio Trabalhar Aqui, e atual titular do Pictus Cugtus. Ufa.
 
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Ah, sim, claro: moonlight and love songs, they´re never out of date; hearts full of passion, jealousie and hate. Disse o negrão, e eu endosso.
 
Spamzine: arsênico e velhos laços.
 
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da série: "pequeno dicionário dos arquétipos de massa"
fábio fernandes 
[email protected]
 
A Hora do Pesadelo
 
Madalena sonhava com bois. Não os bois plácidos soltos no pasto, não os bichos alegres e coloridos dos livrinhos infantis; Madalena sonhava com bois enormes, imensos, aterrorizantes bois da cara preta, que pegavam as crianças, como na canção de ninar. Madalena acordava chorando, pedindo pela mãe, que vinha lhe dar carinho no meio da noite.
 
Madalena cresceu. Sonhava com labirintos de corredores estreitos e compridos, no final dos quais sempre havia um monstro, uma criatura que ela jamais via mas cuja existência sentia e não podia duvidar. Madalena acordava sempre um momento antes do encontro fatal, sufocada, sem fôlego, úmida entre as pernas. No dia seguinte conversava com a mãe, pedia conselhos.
 
Madalena virou gente grande. Casou-se com o namorado da adolescência, que engordou, ficou enorme, imenso. Teve filhos, lindos, mimados, que lhe tomavam o dia inteiro. Parou de trabalhar. Engordou, ficou velha antes do tempo. Madalena não pede mais pela mãe. A mãe morreu. E ela sabe que não adianta mais acordar.
 
As máquinas dominarão o homem
 
Felipe é engenheiro. Desde pequeno gostava de consertar aparelhos eletro-eletrônicos. Os pais viram que ele tinha jeito, e quando cresceu o bastante foi estudar numa escola técnica.
 
O tempo passou e Felipe cursou Engenharia Eletrônica na faculdade. Acabou indo trabalhar para uma empresa japonesa de robótica avançada.
 
No começo tudo eram flores. Felipe tinha contato direto com a vanguarda da tecnologia de robôs industriais, trabalhava com a nata dos projetistas da área, e estava até estudando japonês para tentar um estágio na sede da empresa em Tsukuba.
 
Até o dia em que foi encarregado da supervisão de um grande lote de robôs para uma empresa. Ao conversar com o executivo-chefe da empresa, este lhe fez a pergunta, à queima-roupa:
 
Quantos operários cada robô vai poder substituir?
 
Isso incomodou a Felipe. Ele nunca leu - nem pretende ler - Marx, mas era inteligente o bastante para ver que a exploração do capital na mão de alguns tendia a entrar no auge a partir dessa substituição por robôs.
 
Felipe é bastante racional para não sofrer além da conta com isso. Sabe que se não for ele a fazer esse serviço, outro o fará, até o dia em que ele próprio seja substituído por um robô, e depois virá o quê? Felipe estremece quando pensa nessas coisas.
 
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cenas para um possível filme sobre a vida de cristo
elton mesquita  [email protected]
 
INT. DIA.
Uma rústica oficina de carpinteiro. Um jovem de olhos claros e plácidos e rosto angelical martela um prego num pequeno banco de madeira, supervisionado pelo pai atento. De repente, o garoto se distrai e acaba martelando o prego na palma da mão.
 
O garoto começa a chorar e a sacudir a mão, e corre pro braços do pai, que o conforta:
 
JOSÉ: Calma, Jesus, calma... Olha, você vai ganhar prática e aprender logo. Quando você for adulto, isso nunca mais vai acontecer com você...
 
***
 
EXT. DIA
 
O Gólgota. Cristo está crucificado. Um centurião aos seus pés limpa as unhas com a ponta da espada.
 
CRISTO: Ei. Psiu. Ô amigo...
 
CENTURIÃO: Ahn.
 
CRISTO:Aí... quem foi que construiu essa cruz aqui, hein?
 
CENTURIÃO: Como diabos eu vou saber? E porquê tu queres saber?
 
CRISTO (Fechando um olho e medindo o braço da cruz): Essa [beep] tá fora de prumo. Completamente torta. Carpinteirinho vagabundo esse que vocês contrataram...
 
CENTURIÃO (Observa melhor a cruz): É, é verdade... Alá, o braço direito faz tchans e o esquerdo faz tchuns...
 
CRISTO: É, cara, daí que minhas costas, já viu, né? Vai acabar com minha postura.
 
CENTURIÃO: Tu és carpinteiro?
 
CRISTO: Meu pai era, aprendi umas coisas com ele.
 
CENTURIÃO: Tu não estás a fim de descer daí e dar um jeito nela, não?
 
CRISTO: Quero, sim. Ih, nem dá: Os pregos dilaceraram os ossos do meu pulso e está uma dor excruciante, indescritível, mesmo...
 
CENTURIÃO: Ah, é, é verdade...
 
(A CÃMERA SE AFASTA LENTAMENTE. O VOLUME DA CONVERSA VAI DANDO FADE OUT E A MÚSICA DÁ FADE IN. MÚSICA: BAD, MICHAEL JACKSON)
 
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a infância do garoto juca jr.
ricardo ramos leite 
[email protected]
 
Saudações, leitores! Aqui quem vos fala é Garoto Juca Jr., filho do lendário Garoto Juca, que todos vocês conhecem dos programas de Bozo.
 
Ser filho do Garoto Juca nunca foi fácil. Acredito que os filhos de pessoas famosas sempre acabam sofrendo devido à fama e popularidade de seus pais, que, sendo o centro das atenções da mídia e de milhares de fãs, acabam por vezes ignorando seus queridos filhotes.
 
Gostaria eu que meu pai tivesse me ignorado. Eu era tratado como um animal selvagem. Todos os dias, meu pai me chicoteava com uma cobra viva. Eu tinha que desviar das dolorosas chibatadas e, ao mesmo tempo, tomar cuidado para não ser mordido pela cobra, que era extremamente venenosa. Depois meu pai me colocava uma rédea de cavalo e me colocava de quatro, no meio da rua. Ele então cobrava uma pequena quantia para que as crianças montassem em mim por 10 minutos, com direito a chicotadas e violência, por muitas vezes desnecessária. E não pense você que eu fazia isso vestido!
 
Fui levado muitas vezes ao estúdio onde era realizado o programa do palhaço Bozo, e devo confessar a vocês, ele não é nem de longe o amável e simpático arlequim que entretia a criançada nos conturbados anos 80. Primeiramente, ele exalava um odor de tequila muito forte, que se podia sentir a enormes distâncias. O que me recordo dele também era o vocabulário chulo e a voz, rouca e assustadora, totalmente diferente daquela que era ouvida nos programas. Fiquei com mais medo do que quando via o Brizola. Era só aquele velho feio aparecer na TV que eu começava a chorar e a gritar. Hoje eu não tenho mais medo do Brizola, mas tenho medo da Nair Belo. Quando vejo ela na TV começo a chorar de susto...
 
As únicas boas lembranças da infância vêm da minha escola, a escola estadual Charles Bronson. Eu me lembro que um dia entrou pela janela um pequeno homenzinho, de cerca de 20 cm de altura, vestido numa roupa de "cowboy" e montado num picles voador. Minha professora pegou então uma rede que era usada quando o lagarto entrava na sala e perseguiu o homenzinho por horas. Toda vez que ele escapava dela ele soltava um gritinho muito engraçado. Aí teve uma hora que ela conseguiu capturá-lo: ela o pegou com as duas mãos e começou a bater ele contra a parede até que ele parasse de gritar. Ele morreu. Depois ela sentou na mesa e começou a chorar, dizendo coisas como "Por que a minha vida chegou a esse ponto?!" e "O que foi isso, Deus?! Algum sinal?!". Essa parte foi meio assustadora. Aí eu lembro que a aula acabou e no recreio eu comi rocambole de doce de leite.
 
Graças ao tempo, agora não sofro tanto com os traumas da infância. Infelizmente as cicatrizes psicológicas que ficaram em mim me fazem tomar caixas inteiras de Prozac e Gardenal como se fossem pipoca. Até a próxima, leitores do Spamzine!
   
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praliné
ellen aprobato 
[email protected]
 
O caos da minha casa é o espelho do caos em mim. À procura de sonhos, de rotinas e de chocolates, meu âmago e meu estômago se retorcem. Se eu morasse no Brasil, creio eu que tudo seria pior - render à tentação por um simples bombom Sonho de Valsa, que
baixo nível, diria minha nutricionista. Aqui o sacrifício vale a pena.
 
A verdade é que o melhor conselheiro sentimental é o chocolate. Está provado que a massa de cacau acrescida de leite estimula a produção de hormônios que nos fazem mais bem-humoradas (não me recordo do resultado da pesquisa entre os seres do sexo masculino) e, não durando o efeito mais do que algumas pouquíssimas horas, seria a ingestão excessivamente prolongada inacreditavelmente comum.
 
Portanto, vejamos bem, eu não tenho andado tão contente assim, e o pior, não tenho andado contente com o meu peso. Isso dificulta as coisas, além do fato de eu morar na Suíça - maldito Cailler que misturou a pasta de cacau com leite e amêndoas: o praliné... inspirando outros suíços e deixando a população feminina mais pesada - e de ontem ter havido uma promoção-relâmpago de Lindt no supermercado. Claro que isto só serviu pra piorar o meu humor: eu tinha esquecido a carteira.
 
Cheguei em casa procurando um bombonzinho. Não achei. Eu sabia que não ia achar, a primeira coisa que faço ao decidir emagrecer é não ter nenhum doce em casa. Geléia light. Mel. Frutose e aspartame. Nada é igual ao chocolate, nem adianta tentar enganar a larica, não funciona. Já tentei até beber um licorzinho ou comer uma banana, as velhas táticas. Ha-ha. Revirei tudo, as estantes, as gavetas do banheiro, os casacos de inverno, o carrinho de bebê. Nichts. Niente. Nada. Me contentei com uma lata de abacaxi light em calda, e ignorei a bagunça que eu tinha feito. Pelo menos, uma parte de mim fica satisfeita: a rotina limpa-lava-arruma que eu busco está lá, na sala, na cozinha, no quarto e no banheiro. De repente, enquanto eu estiver arrumando eu acho algum pralinezinho. Já imaginou se embaixo do sofá eu achar um ovinho de páscoa perdido?
 
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m e n i n o s  e u  v i
Troca de tapa no metrô? Canadenses na vitrine? Vernissage pornô? Gol olímpico contra o vento? Comício de freira, filme de arte, novela gótica? Conta pra gente: [email protected]. Queremos saber tu-di-nho.
 
loyola na cultura
marcelo barbão  [email protected]
 
Eu ia todo contente pela Avenida Paulista. “Puta merda, o Ignácio de Loyola Brandão na Livraria Cultura! Vou comprar o livro e pedir um autógrafo, vou entregar minha revista para ele ler, vou pedir a opinião dele sobre o meu livro, vou dar um beijo na careca dele!”. Me controlava para não sair pulando como criancinha. Era mais de 7 e tinha que ir rápido senão perderia minutos preciosos ao lado do Loyola. “Abre farol de merda”. “Fecha farol do caralho”.
 
Entrei na galeria. Sempre tomava um cafezinho no balcão, mas dessa vez passei correndo, devo ter atropelado um par de engravatados. Ao longe, perto da esquina, comecei a ver a mesa de autógrafos e vi uma carequinha com uns cabelos brancos. “É ele!”, gritei. Sai correndo.
 
Quando cheguei na porta e olhei para a mesa... Desastre. Sim, havia uma careca e havia uns cabelos brancos. Mas eram conectadas a um gordinho num terno apertado e um braço na tipóia. “O quê?”. Quem é esse? Em cima da mesa que ficava embaixo da escada, um livro com o título extremamente chamativo de “Banco Central”. Cadê, onde, como. Acho que toda a loja percebeu meu desânimo, parecia aqueles desenhos animados: ombros curvados, olhos caídos, boca triste.
 
Nem o garçom com um vinhozinho conseguiu levantar meu ânimo. Nem quis perguntar o que havia acontecido. Achei que seria uma perda de tempo. Ninguém nunca vai falar a verdade, mesmo se souber, em casos assim. Você nunca vai ouvir um: “o Loyola tava de saco cheio e preferiu ir para casa” ou “o Loyola teve uma caganeira e ainda está preso lá no banheiro da Vogue, por isso nós trouxemos este outro magnífico escritor no lugar dele”. Não tem jeito, você sempre vai duas respostas padronizadas: “houve um imprevisto” ou “Loyola, ele não estava marcado para hoje, não”.
 
Olhei para o gordinho e ele estava todo sorridente. Acho que o contraste era tanto que ele me encarou. De raiva passei para uma mistura de desprezo e arrogância. Ele ainda ficava sorrindo para mim. Não, eu não vou comprar o seu livro. Que me importa o Banco Central?
 
“Saco, saco, saco, saco”. Antes de ir embora, faço questão de passar na frente do gordinho de terno apertado e braço na tipóia com seu livro do Banco Central. Sorrisos daqui e congratulações de lá e os olhos do escritor não escondiam uma certa tristeza e um ar de chateação.
 
Saindo com o passo duro de decepção, nem notei o cartaz: "Noite de autógrafos, o escritor Ignácio de Loyola Brandão está na Livraria nº 2 do outro lado do corredor".
 
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pequena história mal-contada das primeiras atribulações de miss fônch
marcos visnardi  http://unhasroidas.weblogger.com.br
 
Vinha triste Jean-Clarice. O menino de trejeitos delicados, voz fina, corpo pequeno e delgado, vinha andando triste pelas calçadas. Jean-Clarice, na escola, havia acabado de ser vítima de dedos que apontavam e bocas que gritavam "Viadinho! Viadinho!". Não que fosse a primeira vez que era feito alvo de chacota, mas na verdade não havia se acostumado ainda com isso, coisa que só veio a acontecer anos mais tarde, pouco antes de morrer esfaqueado por um neo-nazista de nome Marcelo, arrependido de súbito de ter comido um traveco. Ora, mas como são as coisas...
 
Vinha triste Jean-Clarice quando, na rua deserta, um grupo de meninos o abordou. Eram mais velhos que Jean-Clarice. Aparentavam uns quinze anos, idade suficiente para se viver nos dias de hoje. Pediram dinheiro, Jean-Clarice não tinha. Mas não é que o nosso J.C. (!) até chorou quando estes (infeliz coincidência?) começaram a provocá-lo e humilhá-lo: "viadinho! viadinho!", até que um mais corajoso deu um passo a frente e, em seguida, um murro na cara do menino, que frágil como uma flor caiu ao chão, por onde foi arrastado até um terreno baldio próximo cerceado por muros em que foi espancado e violentado sexualmente até não saber o que lhe doía mais: se os buracos abertos se os buracos alargados.
 
Desmaiado Jean-Clarice, seminu, foi encontrado por uma freira de boa fé que lá no terreno fazia suas necessidades. A freira espetou o moleque com um pedaço de pau para testar se vivo ou morto estava. O moleque gemeu, a freira espantou, em sua bondade cristã levou-o dali, não sem antes cobri-lo por inteiro com um cobertor velho por lá encontrado.
 
Ping-pong de menino: da vida para a amnésia, da amnésia para a freira, da freira para o juiz, do juiz para a justiça. Ai meu Santo João Gilberto, como dá voltas este nosso mundo! E não é que Jean-Clarice, nosso protegido (?), reconheceu entre os meninos que viu no pátio do Centro de Recuperação um de seus violentadores? E como na época ainda não tinha pêgo o gosto pela fruta (pudera! Acabara de prová-la. E pior: à força...) desesperou quando pensou ver o rapaz.
 
A moça perguntou, com a frieza das mal-comidas que trabalham com crianças:
 
- Qual a sua idade, bem?
 
- 12.
 
- É menino ou menina?
 
- Menina.
 
- Qual seu nome?
 
- Monique.
 
Lá nascia Monique Fônch, mais tarde famosa pelos programas baratos e coletivos que promovia no Bar do Chinês. Encaminharam-na à Casa das Meninas, onde se adaptou ao meio e fez uma pesquisa que mais tarde lhe seria utilíssima para a vida profissional: o andar, o vestir, o falar das meninas. As técnicas foram sugadas com maestria (!).
 
E Jean-Clarice seguiria Monique para sempre se o deixassem. Mas a vadia da Maria-Homem, a macha da Casa das Meninas, teve que entrar no banheiro e arrancar a toalha de Jean-Clarice na porrada para depois sair gritando feito louca: "Eu vi pipi! Eu vi pipi!". E ria...
 
Lógico que aquilo traumatizou Miss Fônch, que a partir de então passou a tentar cortar fora com uma gilete, mensalmente, seus órgãos genitais, sem nunca obter êxito.
 
Só foi ter amputados mesmo o pau e o saco quando Marcelo, bêbado e contemplando o cadáver, tomou de um facão de açougueiro e tirou tudo pra, só então, poder comê-la pela frente, como é o certo de se fazer.
 
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l i s t a s  a b o b r o l
 
top 5 motivos pelos quais eu ainda não estou rico
frederico josé 
http://pictuscugtus.blogspot.com
 
1. Nunca fui amigo de professor no colegial. Depois da aula, todos os dias se formava uma rodinha em torno dos professores mais legais. Eu sempre ficava de fora e er muito tímido pra ficar babando ovo para os mestres. Acontece que ser amigo do teacher era coisa de gente cool. E eu não era cool, era nerd.
 
2. Nunca conheci uma celebridade. Pô, conhecer celebridade é ótimo para preencher lacunas de conversa. Tipo, alguém está falando um assunto qualquer e outro cara manda: "Po, o Chico Science que falava assim", ou "O João Gordo uma vez me disse que gostava de sanduba de calabresa cheio de maionese". Eu sou só um zé ninguém. Por enquanto.
 
3. Nunca tive dinheiro investido. Outro dia ligou uma mulher de um banco lá pra casa pra me convencer a aplicar minha grana lá. Como me faltam alguns cruzeiros pra fazer o mercado, não pude investir. Mas o melhor foi a pergunta dela: "O senhor já aplicou no fundo ou na poupança?". Eu respondi rindo, lógico: "Não". Ela continuou a falar, mas tenho certeza que ficou vermelha.
 
4. Nunca tive um carro com trava elétrica. Meu maior sonho era ter um carro com vidro elétrico. Eu adoro mexer naqueles botõezinhos, sabe como é. Quando, finalmente consegui comprar um, os caras me lançam o carro que você pode abrir apenas com um toque na chave! Não dá pra correr atrás de novas tecnologias mesmo.
 
5. Nunca fui para o exterior. É chique, você no meio da conversa encravar um "Quando eu morei em Londres..." ou "Acabei de voltar de um intercâmbio na Austrália". O máximo que eu tenho são presentinhos que minha tia boazinha trouxe de Los Angeles. Mas um dia eu vou morar em Boston, ah vou.
 
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primeira vez na chapada dos veadeiros
al-chaer  [email protected]
 
Explicos (no plural, para não deixar margem de dúvidas):
 
1. ninguém me deixou na chapada;
2. não participei de nenhuma parada Gay.
 
Não é nada disto! Para quem não sabe, estou me referindo ao Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, localizado no Estado de Goiás, para onde eu fui, com minha namorada, fazer o que chamam de ecoturismo. Minha definição para ecoturismo: tem muito passeio melhor, mas não dá para comparar. Vou contar AL-qui, um pouco desta experiência humana em harmonia com a natureza.
 
Pra começo de conversa, sou o que eu mesmo me classificaria de um ermitão urbano. Gosto de hotel, táxi e restaurante. Não precisa arrumar o quarto, procurar estacionamento, cozinhar e lavar os pratos. Você paga e vai embora. E hoje, este seu eterno observ-AL-dor levantou da cama somente para lhe contar um pouco do universo do turismo, este setor da economia que, bem administrado, é uma excelente fonte de renda para um país. Que o digam os EUA e a Europa, que sabem explorar, como ninguém, o turismo e o turista, principalmente se este for apenas um rapaz ou uma moça, latino-americanos, como você e eu, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior. Afinal, todos somos colonizados. Primeiro fizemos parte do interior do Velho Mundo. Somos, agora, do interior da América. Eu, tive a sorte de nascer no interior de Minas, vir a ser goianeiro do interior do Brasil e me encontrar árabe do interior do Líbano, mas tá ruim de voltar para lá, apesar da vontade de trabalhar em Beirute, vendendo ouro, tapetes, quibe, esfirra e, no fundo do loja, armas. Peraí. Se vamos falar em negócio, vamos logo prás cabeça, pois a indústria mais rentável no Mundo é a indústria bélica.
 
Voltemos ao ecoturismo. Na História do Brasil, temos alguns precursores importantes deste segmento: os Jesuítas, os Bandeirantes, os feitores, os escravos, os garimpeiros e, mais recentemente, Mr. Cooper. Caminhar nos calçadões da orla marítima, das lagoas, dos lagos, dos bosques, dos parques, das praças é o imperativo do que eu chamaria de ecoturismo gás-carbônico-urbano, a que todos nós somos acometidos, depois que Cooper alastrou pelo Mundo a fora, a necessidade das caminhadas para o ser hurbano (com "h", pitadinha de neologismo AL-qui, para divertir). A exacerbação antropológica desta prática foi muito bem abordada metaforicamente no filme Forrest Gamp, em que o bom menino Tom Hanks, um belo dia, resolve sair correndo sem parar, arrastando com ele uma legião de seguidores. Tempos depois, noutro belo dia, ele resolve parar. E daí? Parou por quê? Por quê parou? Por quê começou? Por quê por quê? Por que não? AL-viso: caminhar 12 quilômetros na calçada arrumadinha é mole! Numa trilha, com subidas e descidas, cascalho, pedras, areia, você deve ter um preparozinho, para não dar vexame. Tá, neném?
 
E mais: ecoturismo está em moda! O lado extremamente positivo é a questão ecológica. Quer queira ou não, você não passa incólume para a importância da preservação da fauna, flora e relevo, principalmente quando você adentra uma reserva e encontra uma nascente que insiste em brotar este recurso natural – a água – que é o maior bem da humanidade. Outros bens da humanidade são, não necessariamente nesta ordem, o fogo, o sexo, o café, os livros, carne de carneiro ao molho de manteiga e hortelã, uísque, água de coco, chocolate Godiva, coca-cola sem remorso e o cartão de crédito. E, quando o instrumento é cartão de crédito, com direito a acúmulo de milhagem aérea, constatei que há por detrás do ecoturismo o consumo de vários itens para exercer esta prática. Só existe duas maneiras de se fazer ecoturismo; ou você mora lá e, sendo assim, você não gasta quase nada; ou você, hurbano, desloca-se para lá, quando os gastos são maiores. Então vamos enumerar AL-guns itens básicos, para deixar sua experiência ecoturística mais saudável:
 
- Como ir: de carro. Atenção! Quando falo a palavra carro, entenda como sendo qualquer Land Rover, ou Mitsubishi Pajero ou Jeep Cherokee com tração 4x4 e ar condicionado. Detalhe: quanto mais sujo de lama e poeira, mais apropriado. Importante: na volta para sua cidade, deixe para lavar seu fora de estrada uma semana depois. Assim você vai ter mais oportunidade de contar e inventar estórias.
 
- Hospedagem: fique na melhor pousada da região. Na volta dos passeios, o que você vai querer é conforto, conforto e conforto. Esta história de experimentar o modus vivendi dos nativos é coisa para os índios e para aqueles rebeldes que formaram os quilombos.
 
- Figurino: antes de mais nada, aproveite a oportunidade para ficar fashion. Boné Genérico ou chapéu específico, destes de aba total, comprado in loco, com o nome do local visitado e uma estampa bordada. Recomendo as cores claras em tom pastel. Os modelos Sean Connery ou Indiana Jones, trazidos na mala, revelam que você já é habitué do ecoturismo. Chique. Vi um senhor com um chapéu modelo Safari, destes com véu na nuca, perfeitos para se cobrir do sol africano ou asiático. Na minha opinião, não combina bem com o cenário das nossas locações tupiniquins. Óculos escuros. Claro! Você me entendeu, né? T-Shirt. Short ou Bermuda. Tem a opção de usar umas calças mais largas, de preferência em Tac-Tel, que secam rápido e protegem mais as pernas. Imprescindível: roupa de banho por baixo. As caminhadas têm por objetivo, invariavelmente, o acesso a um poço, a uma corredeira ou a uma cachoeira. A água vai estar sempre ge-la-da. E você vai entrar na água. Vai. Por dois motivos: 1. Para falar que a água está mais gelada do que a gente pensa; 2. Para sair reclamando que ficou pouco, pois a água estava ótima. Por fim, os calçados. Invista numa botina específica para caminhada em trilhas. A tecnologia que envolve o projeto de um solado destas botinas já é comparada àquela usada na concepção dos pneus de jeeps e tratores. Na Fórmula 1, temos apenas dois tipos de pneus, o liso e aquele para chuva, que devem ser trocados na hora certa. Já o solado de uma botina para caminhadas em trilhas tem que proporcionar, harmonicamente, a possibilidade de Flexibilidade, Propulsão, Apoio e Freio. Tudo automático, sem necessidade de comandos. As botinas disponíveis no mercado já fazem tudo isto, com biqueira e proteção para o calcanhar e tornozelo, que é um verdadeiro Santo Antônio, o que a indústria automobilística chama de barras de proteção lateral. A botina é o item mais fashion e, consequentemente, o mais caro de todos. Dica: não economize neste item.
 
- Acessórios: mochila ergonométrica e cantil de alumínio.
 
- O que levar na mochila: mais água, além da que vai no cantil, bloqueador solar, repelente de insetos, máquina fotográfica destas resistentes (pilhas e filmes sobressalentes) a prova d’água e de impactos para você não ficar com dó, toalha, barras energéticas de cereais, fruta (banana e/ou maçã), sanduíches leves. Sugestão: pão integral, queijo em pasta, atum e uva-passa sem semente. Para a sobremesa, damascos. Um kit de primeiros socorros só para garantir, mas se você quiser diminuir o peso, leve apenas esparadrapo e/ou Band-Aid para um acerto no motor, se uma bolha resolver lhe incomodar. Se você gosta de filmar, tudo bem, leve sua filmadora, mas por favor, não me convide para assistir à fita. Não se esqueça de levar um saco para colocar o seu lixo. Faça-me o favor!
 
- Quem levar: vá acompanhado. Ninguém vai acreditar que você encontrou sua alma-gêmea fazendo ecoturismo. Além do mais, você terá uma testemunha ocular para ajudar a contar aquela estória espetaculosa que não saiu na fotografia.
 
- O que levar para a Pousada: pão integral, atum em lata e queijo em pasta e uva-passa para preparar os sanduíches; os damascos; castanha de caju e vinho tinto para as noites; livro. Não se esqueça do canivete suíço e dos cremes para corpo, para as massagens. Até o momento, nossa experiência sugere que o canivete não é recomendado para as massagens.
 
Ecoturismo é aventura. E o ápice, o momento mágico desta aventura é contemplar uma cachoeira. As cachoeiras são as mãos de Deus fazendo afrescos nos paredões sem equipamento de segurança. Eu disse afrescos, mas, ratifico: a água é ge-la-da. Passa na minha mente, agora, a imagem de Michelangelo pintando a Capela Sistina. Radical. Rapel, purinho.
 
Ecoturismo é isto. É beleza. É história. É conscientização. É cultura. É resignação. É sacrifício. É abnegação. É altruísmo. É uma coisa! E como citou o filósofo contemporâneo Juarez Soares, "uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa".
 
Amor, já estou com vontade de voltar com você para lá: para New York.
  
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v i r u n d u n s
Adoro letra de hino, que vem nos remir dos mais torpes labéus. Ou nos cerzir os mais pobres chapéus. Enfim, isso é virundum. Tem outros? Escreva!
 
flávia ballvé-boudou  [email protected]
Vocês tinham que fazer um livro só de virunduns, ne? Que tal um dia compilar todos e lançar uma edição especial? Eu tenho tentado arquivá-los mas já perdi alguns... Duas pequeninas e singelas colaborações:
 
- Não é bem um virundum, mas quando eu era pequena achava que existia um cantor chamada "El Barramalho"...
 
- Tambem nao é lá um virundum, mas uma vez, eu criança com conjuntivite, minha tia "cantou" uma oração de Santa Luzia pra mim, em que em um momento a santa (não fã de janelas) dá "pão de siquinão" e "água de siquissim" pro seu cavalinho. Anos a fio tentei descobrir o que seriam estes dois ingredientes esquisitos, ate que me explicaram (para meu total embaraço) que o correto era "Deu-lhe pão, disse que não, deu-lhe água, disse que sim"...
 
manobeto  [email protected]
A empregada de um amigo meu chegou pra ele e pediu para que ele tocasse no computador a musica "A Historia do Jou". Meu amigo não sabia que música era aquela até que ela começou a cantar. A musica era "I Started a Joke".
 
lola félix  [email protected]
o mais engraçado não são essas músicas com letras trocadas, se bem que aquele "domino dancing" do pet shop boys até hoje eu não sei a letra, só sei que canto: "olê olê meu óculos tá bom com grau", e o começo de blue monday, que minha irmã disse que numa época era comum cantar: "ahhh, mizifio" em vez de "how does it feels" (ou coisa do tipo) o mais engraçado são os comerciais de CD, que colocam um trechinho de cada música, aí a gente fica cantando uma espécie de pout-pourri (ou puta porre) e nunca aprende a música inteira, huhuh.
 
patrícia kohler vinagre  [email protected]
Olá povo do meu SpamZine preferido!
Quando a música "Homem Primata", dos Titãs, tocava à exaustão nas rádios, eu não devia ter mais do que dez anos, e cantarolava o refrão assim: "homem que mata, capitalismo selvagem...ôôô..."....o pior é que cantei assim por um tempão... acho que até meus 13 ou 14 anos...agora, cá entre nós, se o refrão eu cantava assim, imagina a parte que é cantada em inglês...nossa, é melhor nem pensar nisso...
 
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f i s t f u c k
erasmo júnior  
[email protected] 
 
I beg you, my darling
    don't leave me, I'm hurting
Be lonely, above everything
    but every day, I'm hurting.

: Rid of me, PJ Harvey :
 
Nada pode me ferir agora e ninguém vai me fazer parar, bando de desgraçados, como é que ela ficava falando mesmo, não, pára, não, pára, não, pára, não pára, não pára, não pára, dá para lembrar da cena toda com todos os detalhes, que coisa mais deprimente. O mundo se fecha ao meu redor, nada mais é novo porque a vida é sempre um erro.
 
Outro golpe no meu rosto, o punho dele parece um paralelepípedo estourando minha boca.
 
Como é que ela ficava falando mesmo? Gritando? Não pára, não pára
 
    outro soco
    filho da puta, eu comi a sua
    outro soco
    pode bater, filho da puta, eu comi a sua
    outro, outro, outro
    a sua namorada, ela não faz barulho para gozar
    outro, outro, outro, estou quebrado
    ela goza baixinho
    ...
 
    você já desejou alguma vez nunca tê-la conhecido?
    ...
    ...
    ...
 
Durante as apresentações dela, eu ia para bem perto ficar olhando sem parar. Não queria perder movimento nenhum, movimento nenhum, e mesmo que o circo estivesse cheio, nada me faria perder o som emitido a cada manobra exaustiva no trapézio. Urros suaves, respiração ofegante, posso não escutar mas eu sinto o deslizar das mãos secas na barra de metal, borracha, sei lá. Faz tempo que eu venho aqui, e mesmo que não tenha mais idade para vir ao circo, mesmo que eu já tenha feito catorze, é uma necessidade vê-la nos fins de tarde, nas quartas-feiras e finais de semana.
 
Faz tempo que eu venho aqui, mal posso esperar a hora dela entrar. É tudo tão platônico, tão belamente platônico que nem faria muito sentido tocá-la de verdade.
 
Ela entra, o trapézio parece um véu tênue lá no alto. Ela nem parece entrar de verdade, era como se sempre tivesse estado ali, só que agora a sua presença se impõe contra os espectadores. Começa a brincar nas alturas, com as suas asas invisíveis, sozinha, sempre sozinha. Ninguém pode compartilhar do seu talento e o show sempre será só dela porque ela é o show e ela é o circo.
 
Gira, se solta, pula, faz acrobacias. Se ela cair, eu morro também.
Mortais, saltos, pernas no ar, as asas delas não aparecem e pedem para surgir.
 
Brilha tão alto, tão alto que eu nunca vou conseguir tocar.
 
    ...
    ...
 
    ainda estou apanhando?
 
    ele bate forte, todo o colégio assistindo a minha surra, você vai ter que bater mais forte que isso, seu filho da puta corno, vai ter que bater com toda sua força, e chamar seus amigos para bater na minha cara também porque você nem me conhece
 
    socos, chutes, todos me olham e eu não vou cair
    você nem me conhece, não faz idéia do que eu posso suportar
    chutes, eu só estou enxergando com um olho, tudo embaçado, não tem professores, inspetores para me ajudar
    vão se foder
    fodafodafodafodafodafodafoda
    ...
 
fodafodafoda é quando o meu irmão mais velho, o meu único irmão, que é meio doido do juízo porque demorou para nascer, foda é quando ele implica comigo, daqui da sala dá para escutar o barulho dele chegando, pisando duro no corredor do nosso andar e tocando a campanha histérico. Já vai entrando e me dando umas porradas na cabeça, como eu odeio isso, odeio, e senta no sofá para ver televisão e fuma, fuma, fuma, me força a ficar do lado dele sem camisa para apagar o cigarro nas minhas costas, que dói menos do que quando ele prendia os meus dedos no vão da porta, acho que desistiu disso depois daquela vez em que quebrou três e arrancou as unhas e eu fiquei no hospital por umas duas noites. E passa a noite assim, me queimando e vendo televisão, se eu cochilo, ele me acorda com a brasa.
 
Agora que amanheceu, eu tenho que dar os remédios dele.
 
Não é que eu tenha raiva, mas todos os meus brinquedos, até os prediletos, estão quebrados por causa dessa loucura, até as minhas pinturas, eu não pinto desde o final do ano passado, quando ele colocou fogo em todas as telas e eu nem mostrava para ninguém, nem para a mamãe porque ela andava muito ruim por causa da quimioterapia, é assim que fala? Quimioterapia, estava sem cabelo, emagrecida e só queria ficar na cadeirona dela, sozinha, o dia inteiro sem falar com ninguém, nem comigo que cuido dela. Isso não era justo, eu queria ter mostrado as pinturas para ela, tinha até um retrato dela, e um que eu tinha feito da trapezista do circo mas esse eu desmanchei.
 
Estou vendo ele queimar minhas pinturas, o fogo ardendo e ele gritando que eu não sei nada de arte e que tenho que ver os bonequinhos que ele faz, e que se eu chorar ou reclamar, apanho. Eu fico calado sem chorar e sem reclamar, eu tenho catorze mas já sou um homem, seu bosta, eu sou um homem, e dai ele me puxa pelo braço, como os meus colegas do colégio fazem sempre, empolgado, e me leva até o quarto dele que é o lugar mais fedorento que eu já vi. Puxa uma mala velha debaixo da cama e abre devagar, olha só, ele fala, olha só e você vai ver o que é arte, eu acho que você vai achar legal e se gostar mesmo, se inspira nos meus bonecos para pintar. Quando abre aquele negócio, tem um monte de vidro de maionese, sendo que dentro de cada um há uns bonequinhos meio tortos, feiosos e fedorentos e ele fala rindo, eu faço isso sabe com o que? Sabe com o que? Com merda, é com merda mesmo. A minha, a do gato, até da sua, eu fiz aquele ali com a sua, olha só, esse bonequinho menor, é o boneco irmão, ele me fala essas coisas muito empolgado e eu não sei se vomito ou se paro de prender o choro, mas eu não quero que mamãe me escute chorar, se inspira nisso aqui para pintar que dai a gente faz sociedade e fica rico, isso aqui é arte, fala alto e empolgado.
 
Agora é tarde e tenho que levar nossa mãe para a quimioterapia, levar uma vez por semana, e ela não fala mais comigo nem quer ir mais, mas insisto e ela cede porque só assim vai ficar boa, tenho que levar
 
    ...
 
    eu cai no chão, mas não posso ficar assim, eu sou uma árvore
    de joelhos
    outro golpe, ainda estão me batendo? Isso não vai acabar nunca
    de joelhos
    ele me derruba com força no chão.
    eu tento levantar novamente, mas está ficando difícil, seu merda, seu boneco de merda
 
    ...
    ...
 
agora eu me lembro de hoje de manhã, saindo de casa triste porque ontem
tinha ido para o circo vê-la e encontrei a lona sendo desmontada. Os
artistas já tinham ido embora, quem sabe ano que vem a gente volte, me
falaram, mas era tarde demais. Cheguei no colégio sem vontade de nada e não
prestei atenção na aula, por que é que eu estou apanhando agora?
 
Por que é mesmo?
 
Eu tenho que pensar. Pensar um pouco, ah.
 
É o recreio e eu nem saio da sala, daí chega alguém dizendo que o meu irmão está me esperando lá fora muito nervoso, tinha vindo me buscar porque minha mãe estava passando muito mal, ele nunca tinha ido me buscar em canto nenhum, é estranho porque ele só sai de casa no final da tarde e fica dando voltas no quarteirão feito doido até cansar. Minha mãe passando mal, eu ainda lembro há bastante tempo ela cuidando de mim e sempre passando a mão no meu cabelo quando eu ia agradá-la, me enchendo de beijos e perguntando se eu tinha sonhado com ela a noite toda. Oh, eu sonho com você o tempo todo, acordado ou dormindo, meus sonhos parecem ser de dentro de você. São tantas memórias boas que não consigo organizar tudo dentro da minha cabeça e acaba voltando a imagem dela adoecendo e piorando com essa tal quimioterapia, era para terem operado mas não podia, acho. É câncer, é câncer? Eu não posso perdê-la agora, justo quando ela  mais precisa de mim e não sei porque, não fala nem comigo nem com meu irmão maluco. Tirá-la de mim dói mais do que qualquer uma dessas surras, ou queimadas, ou humilhações, eu nem ligo mais, mas perdê-la agora é um pesadelo. Eu quero ficar no coração dela... ah...
 
    ... o coração dela.
 
    ...
 
Saio correndo desesperado, esqueci até a mochila na sala.
 
Sem querer, eu juro que sem querer, tropeço em um dos meninos da turma adiantada, ele estava comendo não sei o que e se suja inteiro. Começa logo me empurrando, eu não tenho tamanho para encarar alguém da minha idade, quanto mais alguém com dois ou três anos a mais
 
    ...
    ...
 
    pararam de bater?
 
    ...
    ...
    ... de joelhos, ficar em pé como uma árvore, porque as árvores morrem em pé. Daí ele continua a me empurrar e começa a xingar, eu falo que tenho que ir embora, me chama de covarde e de bicha, puta merda eu nem conhecia o cara e ele vem logo falando besteira para cima de mim, meto um tapa no nariz dele e digo que bicha é ele e que é corno porque eu estou comendo a namorada dele. Eu não sou covarde, eu sou um homem e prendo o choro para soltar a raiva
 
eu acho que é isso.
 
    ...
    ...
 
    meu deus, ela está passando mal, estou sem minhas pinturas, sem minha trapezista e continuo perdendo tudo o que eu ganho, será que já passou muito tempo
    será que eu estou sonhando ou apanhando ainda
    se eu estivesse sonhando
    se eu estivesse sonhando, seria o tempo todo, acordado ou dormindo, meus sonhos parecem ser de dentro
 
    ...
 
    de dentro de você, mesmo agora perdendo tudo, será que eu vou perdê-la também, será? E os bonequinhos de merda? Será que eu fico perdendo tudo o que eu ganho só porque tenho vergonha de tirar a camisa na frente dos outros, porque se não vão ver as marcas das pontas de cigarro e vão rir, ou porque agora que mamãe está piorando eu me sinto distante, distante. Ela não fala comigo, eu insisto mas quero estar distante, quer dizer
 
    eu não quero estar distante
 
    quer dizer, ela está distante, bem alto, brilhando tão alto... brilha alto. Estão me batendo ainda?
 
    eu quero ficar no coração dela.
 
    Será que estão ou já é tarde demais? Me acerta, seu corno, me acerta que você não vai conseguir me derrubar nunca. Já é tarde demais para tanta coisa...
    ...
    ...
    ...
 
    Brilha tão alto, tão alto que eu nunca vou conseguir tocar.
 
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f a l a   q u e   e u   t e   e s c u t o
O Spamzine é que nem Deus: quentinho. E perdoa quase tudo. Também é que nem coruja: presta a maior atenção. Escreva: [email protected]. Aqui a hora tem 24 horas.
 
----- Original Message -----
From: "Larry Stooge" <[email protected]>
Subject: Contribuições
 
Gostaria de saber se eu posso mandar uma contribuição para o Spamzine mas sem usar meu nome verdadeiro, e sim um pseudônimo que uso no meu blog. Amplexos.
 
orlando responde: Larry, embora a Constituição Federal não aceite o anonimato, o Spam Zine aceita (só não vá nos denunciar ao STF, ok?). Pode usar pseudônimo, heterônimo, disfarce, nom de plume, máscara negra ou qualquer outra coisa que quiser. E mande a colaboração djá, meu djovem, que será mui bem recebida.
 
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c r é d i t o s  f i n a i s
 
luxe, calme, volupté
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p. s.
 
orlando: porra, da tal Família Scolari, o Parmêra tinha que trazer logo o cunhado pobre? Murtosa é que nem losna, só serve pra fazer chá.
 
inagaki: Mundo Perfeito, a Pasárgada, a Shangri-lá, a Canaã dos blogs tupiniquins, completou na última sexta-feira um ano de existência. Carros movidos a água, fim do CPMF, chocolates que destroem o vírus HIV, colchões que endireitam colunas, prisão para criadores de grupos de pagode, um mundo sem Paulo Maluf, Eurico Miranda e Jader Barbalho... Pois é: Daniela Abade não é Deus, mas bem que poderia ser. Parabéns, Dani: que este mundo repleto de wit e catarses redentoras continue lavando a alma de seus leitores.