pós-holocausto (ou: depois do fim do mundo)
Tá
lá o corpo estendido no chão. Mas não há nenhuma janela aberta de frente pro
crime, e esse é todo o problema, porque a vitima ainda respira.
E
como dói.
Ela
está tão fraca que não consegue mover um músculo. Respirar dói tanto que algo
dentro dela a alerta de que deve ter algumas costelas quebradas, mas esse algo é
tão distante neste momento que no instante seguinte ela não se lembra
mais.
Só
a dor permanece.
Por
fora, é só a dor. Por dentro, o corpo queima. A cabeça arde. A vagina parece
cauterizada. Por entre as tiras da saia e o que restou da calcinha enrolada no
tornozelo direito, ela ainda consegue sentir, muito lentamente, o esperma
percorrer o caminho que vai dos grandes lábios à nadega, para pingar no chão
molhado e sujo.
A
boca está tão seca que ela mal consegue abri-la. E se a abrisse, que diferença
faria? A primeira coisa que um dos estupradores fez (porque foram vários) foi
lhe dar uma gravata bem aplicada no pescoço.
Tenta
se levantar. E então percebe que não está sentindo nem os braços nem as pernas.
Parece
o fim do mundo. O problema é que o mundo nunca chega ao fim. Sempre há um
depois, e para ela também haverá.
>>>
a múmia
Deitada em sua cama, a múmia observa. Apenas observa: há muito não faz outra coisa.
Seu
único consolo é que ninguém sabe o que ela pensa. Às vezes nem ela própria.
Basta-lhe ouvir as pessoas entrando e saindo do seu quarto, o chocalhar dos
vidros de remédio e o pingar incessante do soro ao lado da cama. Às vezes a
múmia pensa que pode ouvir as próprias rugas se formando na pele encarquilhada.
Como anéis e marcas em troncos de árvores. A múmia acha que leu alguma coisa a
respeito em algum lugar. Mas já faz muito tempo.
Ninguém
sabe quantos anos a Múmia tem. Nem ela mesma.
Deitada em sua cama,
como se embalsamada fosse, a múmia espera sua hora.
>>>
alienígenas
1944. Uma vala arde ao
longe na noite. Os olhos de Moshe acompanham impotentes e silenciosos o cortejo
que segue até a beira da pira. Ele tem dezoito anos, e está em
Auschwitz.
Subitamente, a imagem
se fecha num zoom sobre a vala, e então Moshe consegue ver com nitidez o que
está queimando nela: crianças e velhos.
Moshe se sente sufocar.
Quer gritar de terror, mas não consegue.
Então seus olhos se
voltam para uma figura quase ao seu lado à beira da vala. É um louro alto de
queixo quadrado e monóculo. Usa o uniforme da SS.
O que mais aterroriza
Moshe - e ele se sente culpado por isso, para sempre se sentirá - é a expressão
no rosto do nazista que supervisiona a operação de descarga dos cadáveres. O
oficial da SS não parece muito mais velho que ele, e no entanto como são
diferentes: o alemão olha para os judeus como se eles não existissem. Não, pior,
como se os judeus fossem coisas, e não seres vivos. A expressão no rosto do
nazista é de indiferença clínica.
O silêncio acaba neste
instante. Moshe grita.
E acorda. No bairro do
Brooklyn, Nova York, 1996. Ele tem 70 anos, e está na América. Neva lá fora, mas em no
peito e na alma de Moshe as valas com as crianças e os velhos arderão para
sempre.
Não consegue dormir.
Apalpa a mesinha de cabeceira à procura do controle remoto e liga a TV. Na
reprise de um talk show famoso, uma mulher com cara de maluca viciada afirma
categoricamente ter sido seqüestrada por um disco voador e submetida a
experiências pelos alienígenas.
Com um suspiro dolorido, Moshe levanta o braço e olha fixo o azul esmaecido do número tatuado. Os alienígenas dele foram piores.
.10.
Sentiu o cheiro do mar na brisa. As folhas dos
flamboyants tremelicavam no fiapinho de sol da tarde, que ia adiantada. Sentada
à beira da piscina, uma taça de vinho quase vazia na mão, teve uma leve epifania
olfativa. Não viu, nem ouviu o paraíso: apenas sentiu seu cheiro exuberante e
estupefaciente. Depois dormiu, serena e apaziguada.
Tempos depois, no dia em que recebeu de um amigo um
ramo de rosas vermelhas (daqueles cinematográficos) e não conseguiu aspirar o
frescor das flores, finalmente se deu conta de que, para o resto da vida, nenhum
cheiro deste mundo seria capaz de satisfazê-la. Com o tempo isso foi minando
também seu paladar, já que, sem sentir aquele perfume maravilhoso da comida,
perdia o apetite com freqüência. E ela foi sumindo aos poucos diante dos que a
amavam, até morrer, sequinha, numa tarde exatamente como aquela à beira da
piscina. Ascendeu, e São Pedro a recebeu emocionado, pedindo desculpas pelo
karma que tão ferozmente a consumira. E advertiu: "nenhuma dimensão é perfeita.
Aqui, você não sentirá nenhum dos odores terrestres, exceto um, que terá a
liberdade de escolher".
Embora inspirasse com força e sentisse todos os
perfumes do Éden entrando em seus pulmões, ela olhou tristemente para
ele.
"Como pode me pedir isso?", exclamou. "Eu não me
lembro de nenhum há anos!"
E foi assim que Ingrid conheceu a Suprema Ironia de
Deus.
.11.
A raiva foi subindo pescoço acima até turvar sua
visão. Ficou tudo vermelho. Chutou um balde e ele se desfez em dezenas de cacos
de plástico. Tirou da parede o relógio enguiçado e esmigalhou-o sob o pé.
Gritou. Finalmente, tonto, caiu sentado no chão, ofegante. A pausa fê-lo
recuperar a razão. Tomou um banho frio, bem demorado, vestiu-se, pegou a
guitarra e foi para o bar. Confraternizou com os companheiros, bebeu várias
taças de brandy e, quando o show começou, transmitiu toda a sua raiva para o
instrumento. Qual não foi sua supresa quando a guitarra se soltou de sua mão,
arrancou-se da alça e começou a espancar sua cara impiedosamente, agitando-se no
ar como um inseto gigante e descontrolado. No fim, ela levitou por alguns
segundos e explodiu, vaporizando-se como por mágica.
O público aplaudiu durante meia hora. De
pé.
.12.
Ele falava entusiasmadamente com ela quando a
flagrou com aquele olhar maroto que antecede uma travessura. Ela o interrompeu
uma fração de segundo depois dando-lhe um beijo de leve na boca e abraçando-o
com genuína ternura. Ele não soube como reagir; teve ânsias de deitá-la no chão
do bar lotado e possuí-la ali mesmo. Mas conteve-se. Sabia que ela confiava
nele, e aqueles selinhos não eram incomuns entre os dois.
Ela o olhou falando rápido como uma metralhadora,
como de hábito, e sua alma tremeu. Pensou "que diabos, por que ele não me
beija?". Logo começou a sorrir com os olhos e decidiu tomar a iniciativa. Queria
calá-lo com um amasso poderoso, mas conteve-se. Saiu um beijo de amiga e um
abraço de irmã. Ficou puta consigo mesma ao perceber que o deixara sem
ação.
Foi o mais perto que chegaram de um
romance.
Todo mundo se defende sem nem saber do quê. O "quê"
responde pela denominação científica de desconhecido (cuja formação tem origens
latinas, que se encontram em cognoscere). Refiro-me à palavra, por óbvio, não ao
próprio desconhecido entendido como quase entidade palpável que é. Se não
podemos apalpar, ao menos podemos ver, a densidade é impressionante. As origens
desta - refiro-me à entidade, claro está, não à palavra que usamos para
designar o objeto no mundo -, ainda permanecem desconhecidas - impossível evitar
o pobre trocadilho - pela ciência humana moderna. No campo da mera especulação,
deve estar ali, onde tudo foi formado, na força motriz de que se fala em
filosofia, ou em Deus para quem se fia em crer, embora para Este nada haja que
desconheça e nada impeça que guarde lá os seus segredos, como nós fazemos à
imagem e semelhança.
Se seguirmos a linha de classificação dos seres
animais e vegetais, anolagamente aplicada (frise-se) ao caso ora exposto que se
pretende analisar com algum rigor científico, qual seja reino, filo, classe,
gênero, espécie - e não acaba aí a linha de classificação -, está o desconhecido
enquadrado em gênero, mas nada impediria que desse logo o nome a todo um reino,
porque o adjetivo de desconhecido poderia qualificar qualquer dos substantivos
desse mundo: existentes ou ainda por existir, concretos ou abstratos (vide
comentários sobre a origem do desconhecido no parágrafo
acima).
“A 'razão' da linguagem: oh! Velha
prostituta enganadora!
Temo
que não nos libertaremos de Deus, porque ainda acreditamos na gramática...”
(Nietzsche
– Crepúsculo dos Deuses)
Que fique bem claro: algumas palavras que uso podem parecer estranhas à primeira vista, mas não são erros de português. A opção pelo uso delas está bem fundamentada historicamente, filologicamente, poeticamente e desvairadamente.
Exemplo? A palavra-título desse
texto.
A primeira vez que li, em artigo de jornal de Mário
de Andrade, pensei comigo "erro... donde o copidesque?" As outras vezes
que li em poemas de Mário fiquei intrigado. Fui pesquisar. No século XV usava-se
a expressão mjlhor, dando milhores no século XVI. A etimologia
latina diz melior, ainda no século
XI, mas chegou ao XVI daquela forma. Agora, como diabus o milhor virou melhor (e
quando), isso escapa de minha alçada.
Além do mais, fica mais bonito. Falamos
milhor, escrevemos melhor? Experimente falar melhor com o e enfatizado. Fica pior (ou seria peor?).
Outro exemplo? O nome dessa terra onde vivo: Campos
dos Goitacases. Erros reiterados e transformados em lei. Porque a lei diz que o
nome da cidade é Campos dos
Goytacazes.
Primeiramente, a cidade recebeu esse nome em
virtude da existência, nestas paragens, da tribo goitacá. Ora, o plural de goitacá é goitacás. Então, esses eram os campos dos goitacás.
É isso mesmo que vocês estão lendo: pluralizaram
o plural! Além disso, usar o y é
grafia mais que antiga. Prefiro usar o i e, no lugar do z, usar s. Assim ficaria: Campos dos Goitacases. Mas o bom mesmo
seria Campos dos
Goitacás.
Tomam-me por preciosista? Fujo da macaqueação. A
sintaxe lusitana não é a nossa.
Aliás, já não é sem tempo de publicarem uma gramática da língua brasileira. Basta de
gramáticas da língua portuguesa! Não são gramáticas, são
gramatiquices!
Não estou pregando a caça aos estrangeirismos. Há
palavras já enraizadas na nossa língua que, como toda língua, é dinâmica e
mutante. Prego menos apego às gramáticas, porque como disse Mário de Andrade,
sobejamente correto, "as gramáticas vieram depois que todas as línguas já
estavam organizadas". O que atrapalha é essa "organizadas". Existe língua
organizada? O diabu da gramática é querer nos prender em regras, nos cerrar em
grades, pretendendo estagnar a língua.
Prego a desorganização da
língua.
Há algum tempo que encasquetei com o verbo transar (sem brincadeiras com
trocadilhos fáceis!). Isso porque eu comparava o verbo transar com o verbo cansar.
Por que num o s tem som de zê e, noutro, som de cê-cedilha? Fiquei ruminando. Perguntei
daqui, perguntei dali. Ninguém sabia explicar. Se um s entre duas vogais tem som de zê; se o fonema do verbo cansar é cãsar, deveríamos lê-lo canzar. Mas e se esse caso for uma
exceção ao uso dos fonemas, valorizando-se o n de transar e cansar? Aí poderíamos usar a tradicional
regra: "um s entre duas vogais tem
som de zê", logo, cansar (som de
cê-cedilha) está certo. Mas... e transar (som de zê)?
Procurei, então, o sempre prestimoso Houaiss. Está
lá: etimologia latina de campsõ da linguagem náutica, etc... E diz mais,
que Antenor Nascentes remonta a campsãre, do grego kámptõ. No século XIII,
camssar; no séc. XIV,
cãssar.
Explicação aceita. O s de cansar tem som de cê-cedilha por
motivo histórico. Mas, cá entre nós: canssar, com dois ss, não fica mais malemolente? Não fica
mais que uma palavra, parecendo uma onomatopéia?
Prego a subversão da língua.
E parodiando Mário (de novo ele!): Fora! Fú! Fora o
gramatiquês!
Porque acabamos não falando o português nem o
brasileiro. O que falamos, em verdade, é o gramatiquês.
Por essas e por outras que não fiz faculdade de
letras. Odeio as regras gramaticais. Odeio profunda e
perenemente.
Pregar a subversão de uma língua não é pregar o uso de erros, a ignorância. E acho milhor parar por aqui porque começo a ficar canssado.
Talvez algumas pessoas em nosso belo planetinha
azul, especializados em marketing, vendas e propaganda, achem que a boa
rentabilidade de muitos produtos comercializados hoje em dia representem
progresso. Eu não sei não. Fico imaginando quais estragos este tipo de
profissional poderia ter feito se tivessem surgido antes em nossa
história:
Og: Olá, senhor, seja bem-vindo à nossa caverna! Em que posso
ajuda-lo?
Mog: Uga! Ati-Kará?!!
Og: Ahá! Vejo que o senhor se interessou pelo nosso
tacape "Mente Aberta", não é? De fato, ele tem um design muito arrojado,
especial para dedos peludos com polegar opositor, é leve, prático e super
bonito!
Mog: Ata-ta?
Og: Quanto custa? Bem, como ainda não inventamos a
moeda e nem o cheque especial, nossa cotação de escambo do dia é de quatro
dentes de marfim, uma pele de urso ou mesmo uma faca de pedra lascada (Nossos
analistas acham que objetos de pedra lascada vão estar super "in" nos próximos
20.000 verões). Mas não compre ainda pois você ainda leva esta fita de vídeo
sobre como fazer pictogramas nas cavernas e se tornar famoso no
futuro.
Mog:
Co-rin-tchia!!!!
Og: Ah. pena, o senhor não tem vídeo-cassete, não
é? E nem DVD? Temos em DVD se o senhor...
Mog: Atunga-CHIUAUA!!!
Og: Também não tem DVD, não é? Ai-ai... acho que
este produto vai encalhar...
Mog: Utu-chira! Utunga-bum...
Og: Não se interessa por ele, então? Bom deixe-me
então mostrar alguns de nossos outros produtos, senhor, tenho a certeza que
algum vai ser de seu agrado. Este é o nosso lançamento: FOGO!. Bom nome, não,
"FOGO"? Este produto é quente! Ele tem mil e uma utilidades: Serve para aquecer
você e sua família na próxima era glacial, que em menos de 300 anos já deve
começar, serve para aquecer a comida e a carne, para produzir ferramentas e
ainda pode iluminar sua caverna
de noite.
Mog: Tchi-bum nagua.
Og: Sim, este é um produto que praticamente se
vende sozinho. Alis, cuidado com as imitações, senhor. Nosso fogo é produzido
segundo rígidas normas técnicas. A pirataria ilegal de fogo, utilizando sistemas
de gravação em gravetos secos é uma máfia, o senhor sabe? Feito sem cuidado
nenhum e ainda pode estragar o cabeçote de seu vídeo, derretendo ele
e...
Mog: Uhh?
Og: Ah é o senhor não tem um vídeo. Esqueci, desculpe. Mas ainda assim é perigoso. Só
aceite fogo se o graveto tiver a marca
"Prometeu".
Mog: Akunte.
Og: Não, não temos crediário para este produto
senhor. Sabe como é, as pessoas levam embora prometendo voltar depois e pagar,
mas acabam imigrando para outro continente ou sendo atropeladas por
tiranossauros e não voltam, de forma que não aceitamos este tipo de negociação.
Mas com que o senhor tem ainda pode encontrar algumas pechinchas, como esta
coleção de machados de guerra ou este jogo de ossos de macaco para misturar aos
seus. É uma forma excelente de pregar peças em paleontólogos. Diversão garantida
a você e sua família.
Mog:
Uh-tcha?
Copiada e colada direto do Ronca:
"LONDRES - Mexer com Elvis Presley é garantia de protestos desabusados de seus fãs incondicionais. Pior ainda, nesta sexta feira, dia do 25º aniversário de sua morte. Mas como resistir a contar aqui que, pouco antes de morrer, em Memphis, o artista, bêbado, participou anonimamente de um concurso de imitadores de Elvis e tirou terceiro lugar?".
GOD SAVE THE KING!!!