editorial
João acordou cedo no domingo para ver a corrida, como sempre faz quando
tem prova. Era fã dedicado do Senna e, meio resignado, continuou acompanhando
ano a ano o campeonato. Entusiasta do Rubinho, nunca foi. Mas era
ele quem estava lá correndo e, por mais promissores que pareçam, os
jovens pilotos nunca iriam disputar as primeiras posições. Não fariam
os melhores tempos e não dariam a João a falsa impressão de que seria
possível ganhar uma das corridas do ano.
Uma vez ele já tinha visto Rubinho deixar Schumacher passar para vencer
a corrida em seu lugar. Ficou meio assustado com a atitude, mas até
que entendeu. Ele estava pressionado. Época de dificuldades com a Ferrari,
se saísse dali poderia pegar o boné e pedir carona para uma daquelas
novas categorias que surgem nos Estados Unidos a cada dia. Ficou imaginando
João o coitado levando bronca no ponto enquanto se esforçava para manter
a cabeça no lugar devido à força da coluna de ar. Perdoou-o no fim das
contas.
Mas João não acreditava que Rubinho fosse capaz de fazer a mesma coisa
novamente. A decepção era abusrda após ver seu compatriota andar o tempo
todo na frente e, nas últimas curvas, tirar o carro para deixar o alemão
passar. Foi como se João tivesse pego seu herói de infância fazendo
conchavos com o vilão. Era impossível acreditar que aquela cena novamente
se repetira.
Naquela manhã, João, que precisava tirar uma soneca a mais antes que
a castigadora semana recomeçasse, chorou ainda com os olhos remelentos.
Chorou de raiva. Não simplesmente por se sentir derrotado. Mas por se
sentir humilhado em ser um entre os milhões que presenciaram a cena
patética. "Como eu sou idiota", pensou o trabalhador.
***
A história de João é fictícia, mas baseada em fatos reais. Por sorte,
ele ainda vai poder caçoar do piloto brasileiro na manhã de segunda,
quando chegar ao trabalho. Rubinho não terá a mesma sorte. Desde que
se levantou de seu cockpit ao final da prova, precisa encarar todos
os olhares inquisidores: torcida, imprensa, colegas, mecânicos. Terá
de desviar seu olhar de vergonha até mesmo do faxineiro que limpa as
privadas do circo da Fórmula 1.
Que não se engane: Rubinho provou que pode ser o piloto mais rápido
de quando em vez. Simplesmente seguiu regras que seus patrões lhe sopraram
ao ouvido. Pensou, provavelmente, no recém assinado contrato milionário
de dois anos. Como quando eu e você quando somos obrigados a acatar
ordens idiotas de nossos superiores. É ridículo, mas são eles quem nos
pagam nossos salários. Se seu orgulho é maior que isso, a porta da rua
é serventia da casa.
Acontece que nossos empregos não dependem de audiência. Digo, em alguns
casos, até dependem. Mas não sobrevivem necessariamente devido a uma
relação passional com o público como é o caso da indústria esportiva.
Você assiste aos jogos de futebol porque torce. Se seu time perde, xinga
a todos. Depois, aos poucos, vai retomando a paixão, conforme for o
desempenho da equipe. Com a Fórmula 1 não é diferente. Aos fãs que sobreviveram
à morte de Senna, ver Rubinho nas cabeças de vez em quando fazia renascer
a emoção que se sentia ao ver nossos pilotos - sempre campeões - vencendo
provas e campeonatos.
Mas nesse domingo, definitivamente, Rubinho traiu a confiança de seu
público. Optou por assegurar seus milhõezinhos por mais algum tempo
e renegar definitivamente o carinho que a torcida sentia por ele. Não
que ele, pessoalmente, devesse a qualquer um de nós satisfações pelo
seu trabalho. Não fomos nós que o colocamos lá - foi a condição financeira
de sua família, e, no máximo, o empurrão de alguns dirigentes. Mas Rubinho,
repetindo a façanha anterior, exibiu de forma nua e crua que aquele
circo só está ali para movimentar aquela montanha de dinheiro e não
para pôr em prática uma competição que é a paixão de milhões de pessoas.
E o dinheiro, infelizmente, é dado por essas mesmas milhões
de pessoas, indiretamente, quando (novamente) depoistamos nossa confiança
nos seus patrocinadores. Em última instância, Rubinho cuspiu no prato
que comeu.
***
Só os mais ingênuos ainda acreditavam que esporte era coisa de apaixonados.
Não é. Virou um negócio. E se é um negócio, nós, como consumidores,
deveríamos fazer valer nossos direitos.
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A edição de hoje não tem propriamente a ver com a Fórmula 1. A única
referência distante é a de Ricardo Garrido, que comenta a importância
da convocação de Vampeta para a Copa do Mundo. Ademais, vamos também
de knäckebrots, com Ellen Aprobato escrevendo direto da Suíça (Graubünden),
e dos Minicontos do Desconforto do carioca André Machado.
Há ainda outras contribuições não menos valiosas. E aguardem: em breve,
o especial FUTIBA, comandado por nosso co-editor Orlando Tosetto Jr.
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o
hospital
Eu moro perto de uma estação aonde chegam e partem pessoas todos os
dias. É um hospital imenso.
Às vezes, à noite, olho pela janela, acordado que estou ao lado da
minha inseparável companheira insônia, e vejo tanta movimentação no
seu interior com todas aquelas luzes meio opacas, que não é difícil
imaginar que ali alguém está morrendo, ou nascendo.
É um hospital público e o seu expediente é único e muito corrido.
Na sua maioria são movimentações de vidas que entram na fila para
se extinguirem, pois, tão carentes de médicos, quando vêm até um hospital
é porque a saúde já suportou de tudo e finalmente sucumbiu e, já aconteceu,
abandonam seu corpo debilitado ali mesmo nas suas dependências, porque
morrer não espera. Há as vidas que entram na fila para darem à luz
outras vidas. Algumas prorrompem sua presença nos corredores, porque
nascer não espera.
Invariavelmente percebo crianças nas janelas esboçando um tchauzinho,
entre um sorriso e um muxoxo, inocentes das coisas que acontecem,
como se estivessem no banco traseiro de um carro a passeio ou simplesmente
indo para a escola.
Há momentos em que pressinto algo incomum, quando os quartos estão
vazios e dando a impressão de que a qualquer momento alguém ali vai
chegar para definitivamente partir. Poucos entram nos quartos e saem
pela mesma porta que entraram. Muitos partem madrugada afora pelas
janelas, pelos vãos dos prédios, leves e tranqüilos e talvez até me
olhem envolvidos n'algum mistério que não posso ver.
Serão somente pessoas todos aqueles seres de branco que observo? Serão
apenas doentes ou enfermeiros que andam pra lá e pra cá, alguns tão
levemente, outros tão pesadamente, mas todos correndo tanto num mesmo
lugar? Ademais, flutuarão perto da minha janela as alminhas encantadas
de bebês que aportam ali tão cheias de esperanças? Subirão almas de
pessoas que deixaram a sua história para trás, bebendo o espaço numa
outra dimensão, pois estaria certo Fernando Pessoa quando escreveu:
"A vida é uma estrada. Só porque você fez uma curva e ninguém
mais o vê não quer dizer que você deixou de existir"?
A partir de hoje colocarei flores na minha janela.
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