SpamZine_______________
045
31 de
dezembro de 2001
são paulo
rio de janeiro são josé do rio preto curitiba
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n
e s t a e d i ç ã o:
as
seitas o tempo recomeço entrelinhas
amor tristes fins gorilas memórias
>>>
editorial
Réveillon é tempo de
suicídios.
Nunca li nenhuma estatística
a respeito dos suicídios de final de ano. Eu sei que tem gente que faz essas
coisas – essas estatísticas, digo – mas nunca vi. Nunca fiquei sabendo, por
exemplo, se os homens se matam mais que as mulheres; se a preferência é por
enforcamento, pular da janela ou meter a cabeça no forno; se o horário de
pico é antes ou depois dos fogos e da champanhe.
Mas sei que muita gente
se mata nessa hora angustiosa em que, vejam, “raia o novo ano”.
Acho que boa parte
das pessoas se matam porque se dão conta de que vão viver de novo o mesmo
ano que vêm vivendo há anos. Difícil de suportar, se for um ano chato. Impossível,
se for um annus horribilis. Aí vão lá, se matam, e começam o ano novo assim:
não começando.
Que não seja esse o
seu caso, gentil leitor(a).
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Se 2001 tivesse corrido
segundo o estabelecido, um certo David Bowman estaria se transformando numa
coisa esquisita numa lua de Saturno, provavelmente ao som do "Danúbio
Azul" ou de "Assim Falou Zaratustra", depois de ter desligado
um maligno HAL 9000. Seria um ano interessante, com roteiro do Arthur Clarke
e direção do Stanley Kubrick. Mas 2001 não foi assim; Saturno está em paz
e nós, com nossos microclones do HAL, continuamos na Terra. Pra variar, estamos
em guerra.
Se 2001 nos ensinou
alguma coisa, foi que não somos mais inteligentes que éramos há mil, dois
mil ou cinco mil anos. Temos sim mais recursos; nossa voz vai mais longe,
nos movemos mais depressa e ficamos sabendo das coisas mais cedo; vivemos
mais, comemos melhor e somos relativamente mais cheirosos. Mas ainda não nos
libertamos de La Fontaine nem de Marx e de seus lobos. Somos os mesmos macacos
de sempre, só trocamos a selva pelo fliperama. Um fliperama que, como nós,
move-se mais depressa, vai mais longe, e mata muito mais gente.
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Cássia Eller. George
Harrison. Gilbert Bécaud. John Lee Hooker. Marcelo Frommer. E. G. Gombrich.
Jorge Amado. Douglas Adams. Maria Clara Machado. Pauline Kael. John Gielgud.
Cláudio Mamberti. Roni Rios. Jack Lemmon. Anthony Quinn. Nigel Hawthorne.
William Hanna. Walter Avancini. Ademar “Pantera”. Ademar Ferreira da Silva.
Didi. Luís Bonfá. Luís Carlos Vinhas. Milton Santos. Mário Covas. Roberto
Campos. COL.
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Andréa Del Fuego é
nossa querida amiga de Falaê!, de curtas metragens e de bate-papo alcoólico
no Oasis. Ela vem estrear aqui e deixar no ar um cheiro do que deve ser seu
livro de estréia, que sai sem falta em 2002. Também das hostes falaenses vem
a Crib Tanaka, de dedos nervosos e letras espertas. E do Butantã vem Hilário
Bispo, poeta da carne e dos olhos. E dos bytes da Enloucrescendo vem o Reisangue.
Todos estreantes. Dois mil e um se vai (toc, toc, toc!), mais gente vem.
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Vamos esperar que,
à meia-noite de hoje, 2001 acabe mesmo.
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Quando a chuva molha
os secos da terra, o interior das cavernas só a sente se há, da superfície
visível ao seu interior, alguma fissura por onde a chuva resvale pra dentro
da escuridão. O mesmo se faz com aquela que ama, a chuva é sua tempestade,
sua paixão.
A caverna seu sexo
escuro inundado pela luz vez ou outra trazida por um homem.
O líquido que escorre,
o destilado das delícias provenientes da ponte amor, o licor de mulher que
faz do sexo um encantado.
Só há amor se, e somente
se, uma linha liga dois pontos.
Não existe amor de
um só que ama outro. Sem o elo, há a vastidão humana de fantasias. Amor não
é fantasia, é a estrada prum mesmo destino.
Ontem amei uma flor,
suas pétalas abertas ao céu exibiam seu sexo, filamentos fálicos que esperavam
a ponte, que talvez fosse um pequeno pássaro, mas eu estava em seu caminho
e fomos juntas, eu e a flor, prum mesmo destino. Meu toque assombrado em seu
delicado pólen desenhou a linha mestra. Querendo mais, mais que a estrada,
arranquei do caule seu sexo delicado.
Hoje, passando por
seu arbusto não senti mais o cheiro, me deixou de castigo em represália ao
meu infinito desejo, me fez saber que não avistarei mais, sobre a ponte, o
impressionante jardim de Monet.
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Chega esta época do
ano e começa um acúmulo de calendários no meu quarto. Recebo por correio,
quando gasto uma pequena fortuna na farmácia, de livrarias, clínicas de medicina
chinesa, açougues, corretor de seguros, uma loucura.
Alguns são até bonitinhos,
mas todos são iguais na essência. Têm a ridícula função de nos localizar no
tempo para que não esqueçamos reuniões de trabalho, os aniversários (ah, o
meu aniversário quero esquecer), os feriados prolongados, as consultas e sessões
de psicoterapia, os vencimentos das contas a pagar, os fins-de-semana e os
dias úteis.
Bah. Dias úteis. Quem
foi o palerma que instituiu os dias úteis? Será um domingo mais inútil que
uma quarta-feira? Ou um sabadão mais besta que uma sexta-feira útil?
E por falar em utilidade...
Qual a utilidade dos calendários senão as que acabei de enumerar acima? Ding-dong:
fazer com que nos lembremos da existência absoluta e inexorável do TEMPO,
que não pára, não tem dó nem perdão, passa espartanamente sempre nos mesmos
minutos, horas, dias, semanas, meses e anos, sempre ali, imóvel no seu supremo
lugar, como um buda que entoa sempre os mesmos mantras?
Toda essa divagação
tão inútil quanto um dia útil tem uma razão de ser: está chegando o dia em
que enterraremos o ano de 2001. E coisa esquisita essa relação tempo - passagem
de ano. O TEMPO não deve nem sentir cócegas na virada do ano. E nós aqui,
pobres mortais, ficamos todos acordados, vestidos de branco, usando calcinhas
vermelhas, brancas e amarelas (na dúvida, vista as três), nos empanturrando
de comida, champagne, sidra, de unhas feitas e cabelos armados, esperando
um grande acontecimento: a chegada da meia-noite, do primeiro segundo do primeiro
dia do ano de 2002.
Fazemos listas com
resoluções para o ano novo, contando, ainda que inconscientemente, com uma
ajudinha do TEMPO para que o regime comece mesmo na segunda-feira; o saldo
bancário esteja no azul na data de vencimento do cartão de crédito, luz, telefone;
haja muitos feriados (e dinheiro) prolongados para viajarmos; a menstruação
chegue pontual e religiosamente nas devidas datas; as namoradas não se atrasem
nos encontros; cheguemos a tempo em casa ou no trabalho antes do início do
rodízio municipal de carros; consigamos bons lugares nos cinemas; acordemos
felizes com o despertar do rádio-relógio, sem nem antes ter tomado o primeiro
gole de café ou ter fumado o primeiro cigarro matinal.
E mais tantas outras
coisas...
E nem lembramos que
o TEMPO não está nem aí para nossos pequenos grandes problemas. E ele será
o mesmo velho de barbas longas e cabelos brancos quando acordarmos na manhã
do dia 1º de janeiro, com uma puta ressaca ou o estômago queimando, e nos
enganarmos com um sorriso bobo nos lábios mentalizando "neste ano, tudo
vai ser diferente".
Sim, tudo vai ser diferente,
porque inevitavelmente já fizemos parte da comoção geral da virada do ano.
E não vamos perceber que o sol nasceu igual no dia 1º de janeiro de 2002,
o cabelo cresceu os mesmos milímetros, tal qual as unhas, as pessoas continuam
com as mesmas caras, a cidade igualmente feia, acordando na mesma casa, com
o mesmo TEMPO cronometrando cada átimo de nossas vidas.
Não, não pensem que
sou pessimista ou uma xiita anti ano novo. Apenas fico aqui a constatar que,
de alguma forma, o TEMPO se faz mais presente e vivo nas viradas de ano, nos
imbuindo da tal comoção geral do "tudo vai ser diferente agora".
Não percebemos, porém, que os vários cronômetros com que vestimos o TEMPO
nos fazem escravos deles mesmos, quando este disciplinado e infalível senhor
deveria estar passando livre e sem prenomes, sobrenomes e adjetivos por nossas
vidas. Os dias seriam mais preciosos, os momentos especiais mais freqüentes,
a vida muito mais livre. E acordaríamos todas as manhãs (ou noites) pensando
que "neste dia, tudo vai ser diferente, porque assim eu quero e desejo
e consigo".
>>>
r
á p i d a s r a s t e i r a s
"Países da Europa
adotam moeda única e revivem a história de Roma".
(Manchete do New York Times, viajando na batatinha e
esquecendo que César agora está lá do lado deles)
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Uma vez mais tenho
de recordar
de como empunhava a pena.
A tinta, onde está?
Terá sido levada pelo vento?
Terá secado no tinteiro?
Ou terá sido o tempo,
este velho companheiro,
que a fez perder-se
da mesa onde, debalde,
dorme o tinteiro?
Falha minha memória antiga.
Que amores cantava eu?
Não me recordo mais que livro fazia,
Conto, poesia...
O papel amarelado
Do tomo predileto...
A escrivaninha de madeira escura...
Nada disso assoma à minha memória.
Resta-me agora tecer o novo,
recordar o que não houve
nem há.
Resto-me de costas para minha velha mesa.
Os livros sobre a escrivaninha.
E a velha cadeira grande,
Almofadada... vazia.
O vento que me as trouxe
as levou.
O tempo empunhou
a lamina fina
por entre a bruma.
Eis-me sem fadiga.
Eis-me para tecer um novo tomo.
Novos campos, nova vida.
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As entrelinhas. Sempre
elas para nos atrapalhar. Sempre elas para nos confundir, massacrar. Cada
um com suas entrelinhas arma um destino, traz um desatino, uma outra interpretação.
Ele dizia ver-se nos
olhos dela, e nesse exercício de narcisismo um pouco de sua alma entrava na
dela. Sentia-se espelho dele. Ele, reflexo do que havia nela. Falavam muito
com o olhar. Mas no olhar também há entrelinhas. Há códigos nem sempre óbvios
de decifrar.
A ela incomodava a
ambigüidade. Mais ainda, a feria a contradição. Um dia, transformou tudo em
palavras. Não seriam mais os gestos nem os olhos os veículos de comunicação.
Receptor aberto, canais
no ar.
Erro de comunicação.
Ruídos e chiados interferindo
na sinalização.
A relação precisava
ser editada.
Fade.
Fim das entrelinhas.
Dead line da relação.
>>>
p
e r g u n t a r n ã o o f e n d e
"Se você pudesse falar em cadeia mundial de televisão
durante um minuto, o que você diria?"
ana maria
tomei [email protected]
Já que 1 minuto é muito pouco para falar um assunto importante, eu colocaria
um porta-voz enrolando por 50 segundos, e depois faria meu discurso: "Tipo
assim... ah... sei lá, tá ligado? Tipo... falar pra vocês é show de bola,
entendeu?"
fernanda cabral [email protected]
Se eu tivesse 1 minuto para falar na TV, eu diria apenas: "Que tal cada
um de nós usar esse minuto para parar e perceber o que está sentindo a pessoa
que está do seu lado e como ajudá-la?".
naira marcatto
[email protected]
Cantaria "Her Majesty" dos Beatles por 2 vezes e ainda me restariam
seis segundos para respirar....
paula pfeifer
[email protected]
Diria tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic
tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac
tic tac tic tac tic tac e BUUUUUUUUUUUUUUUUUM!
pergunta
da próxima semana:
"Se você pudesse matar alguém com as próprias mãos, quem
seria?"
Escreva: [email protected]. As
respostas mais infames, sarcásticas, líricas e/ou dociamargas serão publicadas
na próxima edição.
>>>
então... então ela
pegou no pé do coelho pra ele não descer as escadas. O coelho tinha pés grandes
e um nariz pontudo, meio estranho para um coelho... ainda assim, era um coelho
disso a menina tinha certeza
queria comer um coelho
queria comer AQUELE coelho
branquinho e de pés sujos
carne
pêlo
e tudo
mas de repente o pé dele se desparafusou e o coelho se foi, pulando feito
saci
a menina se deu por contente
tinha um pé
sentou num canto e pôs-se a brincar
ficou com pena de comer aquele pé que nem carne tinha
colocou-o na sua casinha de bonecas
e todos os dias o pé acordava a menina para brincar.
e a menina lavava aquele pé...
e penteava os pêlos... coçava a sola...
mas ele (o pé) estava muito triste porque sentia falta do outro pé, afinal
eles haviam crescido juntos...
e ele chorava e chorava
um dia a menina se cansou de tanto ver o pé chorar
arrancou as próprias orelhas e guardou-as no armário
mas aí o pé vinha cutucar a menina de noite
cutucou tanto que a menina não sabia mais o que fazer
colocou as orelhas de volta e perguntou pro pé:
-- o que você quer pé?
-- eu quero o outro pééééééé buáááááááááá
-- humpf...
-- snif...
-- ...
a menina então arrancou um de seus pés e colocou o pé do coelho no lugar
o pé e o pé da menina viveram felizes para sempre
o outro? pulou a janela.
mas estava frio e ele (o outro pé) começou a chorar
-- buááááááááááááá
mas aí um menininho que estava passando ouviu tudo e levou o outro pé pra
casa.
e todos os dias o pé da menina acordava o menino para brincar...
>>>
n
a v e g a r i m p r e c i s o
Millôr Fernandes
http://www.uol.com.br/millor
a gente não sai de lá, mas nunca tinha dado a dica. antídoto pro mau-humor
e praquela tendência inata que temos de sair acreditando em tudo. o sítio
é grande, tem muita coisa, inclusive uns belos desenhos pra se usar como papel
de parede. vão com tempo e calma conhecer o "escritor sem estilo"
(mas sem, hein?).
Daniel Piza
http://www.danielpiza.com.br
você pode não concordar com ele (muita gente, aliás, não concorda), mas dê
graças a Deus por termos um comentarista cultural como ele por aí. sóbrio,
educado, e principalmente sabendo do que fala.
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1982 - 1983
Uma tartaruga. Era
o que estava embrulhado naquele velho jornal de domingo. Meu pai ouviu dizer
que Tartaruga fazia bem para crianças com Asma. Eu continuei com a Asma e
com a tartaruga, que eu apelidei Tarugo, igual aquele da turma do Jotalhão,
pois era macho, com o casco inferior côncavo. E eu sempre o escondia quando
a Tia Lourdes aparecia lá em casa. Dizia a mãe que ela adorava sopa de Tartaruga.
Os anos passaram-se o tarugo ficou enorme, e conseguia me carregar por todo
o quintal em cima do seu casco. No natal de 1982, fomos todos para a casa
da minha avó no interior paulista passar o natal, e o tarugo ficou em casa
sozinho. Minha mãe deixou um bocado de comida e de água para que ele não passasse
necessidades. Mas quando voltamos, ele não estava lá no nosso quintal. Fui
chorando reclamar com a minha mãe, que disse que ele poderia estar ali no
quintal escondido. Então eu passei três dias procurando o tarugo até que meu
pai tentou conformar-me dizendo que ele poderia ter fugido. Mas eu não conseguia
tirar da minha cabeça a idéia de que a Tia Lourdes havia feito sopa com o
Tarugo, e eu não comi nada naquele reveillon com medo de comer o meu melhor
amigo.
1994 - 1995
Meu pai fazia a manutenção
de várias antenas de emissoras de rádio que ficavam na Avenida Paulista, e
uma delas inventou de dar problema justamente no dia 31 de Dezembro, devido
ao temporal que caia em São Paulo. Meu pai, que nunca gostou de dirigir, pediu
para que eu o levasse até lá no meu carro, já que eram raras as linhas de
ônibus naquele dia, principalmente para quem, como nós, mora em Embu das Artes.
Fiquei esperdando até
às 23:17 que meu pai terminasse o serviço, e corremos para o carro numa pressa
só. O aumento da força do meu pé contra o acelerador era justificada pela
vontade de ver meu irmão mais novo esperando-nos com uma garrafa de champanha
em punho, pronta para espirrar todo o líquido gelado nos nossos rostos suados.
Foi a última coisa
que eu me lembro daquele dia. Acordei 45 dias depois, numa cama de hospital,
com minha mãe, olhos cansados e vermelhos, ao meu lado.
Disseram que o carro
que eu dirigia desgovernou-se e capotou três vezes no quilômetro 4 da Régis
Bittencourt, sentido Curitiba. Meu pai morreu na mesma noite, devido a hemorragias
internas.
1998 - 1999
Patrícia me ligou há
pouco e estava chorando. Havia terminado seu namoro de três anos com o Antônio,
e agora estava em sua casa, onde passaria o Réveillon sozinha. Patrícia, além
de ser minha ex-namorada, sempre foi uma ótima foda, o que fez com que eu
arrumasse uma briguinha com a Adriana, minha atual namorada, para ir à casa
da Patrícia consolá-la (e tentar comê-la, óbvio). Brigas arrumadas e camisinhas
preparadas, chego até o prédio da Patrícia. O porteiro já me conhece de outras
épocas e não impede a minha entrada. Chego até o décimo primeiro andar, e
logo após apertar a campanhia do apartamento 113, encontro uma Patrícia sorridente.
Ela pega a minha mão e me puxa até a sala, aonde o Antônio está arrumando
os presentes junto à arvore. Ela disse que haviam chegado a um entendimento
naquela tarde. Além da gafe de amante-falido e de ver a possibilidade de trepar
com a Patrícia transformar-se em futuras punhetas, ainda fiquei escutando
as histórias românticas do casal e suas maravilhosas trepadas. Então, aproveitei
o momento de reconciliações e corri para a casa da Adriana para remanejar
a minha foda de ano novo.
Dei um tchau e feliz
ano-novo para o casal e corri até a casa da Adriana. Sua mãe disse que ela
estava na casa da Cláudia, sua melhor amiga. Como era ali perto, resolvi deixar
o carro na frente da sua casa e ir a pé, apesar da garoa. Ao me aproximar,
percebi um casal encostado no poste, e estavam se beijando. Chegando perto,
percebi que a Adriana estava com os olhos fechados, e seus olhos nem imaginavam
que encontrariam os meus logo que terminasse de beijar o Luciano, o irmão
da Cláudia.
>>>
Era domingo, um domingo
chuvoso, 31 de dezembro. Domingo, ainda mais último dia do ano, é um dia péssimo
para se ficar em casa. Não tem nada na tevê, no rádio é só futebol ou especiais
estranhos de flash-back, e, como Mallarmé, já lemos todos os livros.
Foi por volta do meio-dia
que um entediado Guilherme deixou seu apartamento na Rangel Pestana.
"Onde vou hoje?"
Ligou pro Lucas. Atendeu
a mãe dele.
"Dona Maria, o
Lucas está?"
"Não, saiu com
a Lúcia."
A Lúcia tinha 16 anos
e estava sendo comida pelo Lucas lá no porão onde ele dormia. Quando a família
estava em casa, ele saía com ela para outro lugar, geralmente os matos pro
lado de Jurubatuba. "Você come ela no mato, Lucas?", perguntavam
todos. "Como. Ela gosta de aventura."
"Vamos tentar
o Toninho."
O Toninho tinha fotografado
umas vinte namoradas nuas, pré ou pós coito, e tinha deixado as fotos com
Guilherme, para que ele as escondesse. Guilherme não escondeu: todo mundo
viu as moças. Toninho era eclético, comia gostosas e barangas na mesma proporção.
Toninho não estava.
"Saiu com a Marta."
"Todo mundo metendo,
hoje", pensou desconsolado.
A garoa apertava, e
com ela vinha o frio. Guilherme meteu a mão no bolso, e contou a grana: doze
mil nambiquaras (a moeda vigente). Podia ir até o Itaim ver o Paulo, ou até
a Vila Mariana ver Tato Carvalho...
"Vejamos o Alfeu."
Quem atendeu à porta
foi Nolzer, o irmão maníaco depressivo de Bill. Guilherme estendeu a mão para
ele, que demorou trinta segundos para estender a sua.
"O Alfeu tá aí?"
Nolzer ficou olhando
para ele, apertando os olhos. Quando Guilherme começou a temer que ele perguntasse
"quem é Alfeu?", veio a resposta:
"Aaaaa... o Alfeeeeeu,
ele... saiu com aaaaaa... Viviane."
"Obrigado."
Guilherme afastou-se
pelo corredor. Nolzer permaneceu olhando-o pela porta aberta até o elevador
chegar. Guilherme saiu pelo Belenzinho declamando em voz alta pela rua:
- Domingo é o dia nacional
do sexo! Domingo é o dia universal de "ver a mulher"!
"Vamos ao Nando."
Chegou lá com os cabelos
molhados, assim como a jaqueta de escoteiro cheia de badges e alfinetes de
pressão. Havia badges da Kate Bush, do Genesis e do Exploited. Badges do PT,
mais a vassourinha do Jânio. E um badge pró monarquia. A mãe do Nando abriu
a porta.
"O Fernando está?"
"Foi na Ana."
"Certo. Obrigado."
Ensopado, Guilherme
foi descendo a rua. Havia uma feira. Pastel: dois mil e quinhentos tupinambás
(era esse o nome do dinheiro). Comeu um, sentado na guia. A água da chuva
entrava, esfriando a carne.
"Preciso de mulher",
decidiu. Repassou na cabeça as mulheres que conhecia; nenhuma o animou.
"Quem sabe uma
puta...?"
Contou o dinheiro.
Não havia ursas maiores (acho que era esse o nome da moeda) suficientes.
Chovia mais. Comeu
outro pastel, olhando as poças d'água, pensando num gibi.
De repente, algo mais
pesado bateu em seu ombro. De cima dos fios, uma pomba ensopada tinha cagado
em cima dele. Olhou para cima, e plof! a pomba cagou em sua testa.
"É um aviso divino",
pensou. "Devo me recolher e meditar."
No caminho para casa,
parou para comprar um litro de Sangue de Boi.
"Que é isso na
sua testa?", perguntou o dono da adega.
"Acabo de fazer
amor."
O homem não riu. Tem
gente que não tem mesmo senso de humor.
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O Rio é lindo... quando
tem sol e céu azul, triste e melancólico quando chove. Ontem era lindo, hoje
não, e eu não saio de casa – detesto minha Cidade Maravilhosa cinza. Li o
JB com calma, escrevi mails para a minha irmã em Roma, para minha prima em
Sidney, para outra prima em Tel Aviv, a família espalhada pelos cantos do
Mundo, ainda como efeito da última guerra. Se não morri nos campos de extermínio,
perdi a família. Tantos anos passados e ainda entristeço, mas não é disso
que quero falar... Liguei a TV, gosto de perambular de um canal pro outro,
não me guio pela programação, gosto de ser surpreendido; às vezes um bom programa
de esporte, sou tarado por esportes, pratiquei todos eles, fui bom em alguns,
coisa do passado – agora apenas assisto. Dei sorte, a final de tênis em Stuttgart,
Guga venceu; tour de France no ciclismo, uma das minhas paixões, aliás duas:
ciclismo e França. Segui caminho pelos canais, adoro cinema e às vezes dou
sorte e acho um bom filme. Sou louco por cinema, tive a sorte de assistir
o primeiro filme falado aos 11 anos, eu acho, Al Jolson de menestrel negro...
deparei com a obra de Woody Allen, a Era do Rádio, sou fissurado em Woody,
diálogos e fundo musical. Outra paixão que tenho é musica, em especial jazz:
possuo uns 1200 CDs só de jazz. Ouvir Carmen Miranda trouxe-me de volta à
década de 40 do século passado: Glenn Miller, Duke Ellington, Cole Porter,
puxa, quanta saudade dos anos quarenta. Renasci em 41 desembarcando no Rio...
Tenho muita saudade daquela época. Como a vida era mais "limpa".
Talvez eu assim a achasse por ser adolescente. Tudo muito educado, a grosseria
de hoje me choca, nos trajes, na música, no falar... Coisa de velho. Não me
acostumo com o palavrão na boca das crianças, das mulheres; deve ser besteira,
coisa de velho ainda, mas quem pode me recriminar? Fui feliz... Em algum momento
da minha longa vida deixei de ser, talvez quando descobri a necessidade de
trabalhar pra sobreviver; talvez no contato com a face miserável da existência,
sei lá eu. Com o tempo meu sorriso transformou-se, em todas as fotos que tiram
de mim nunca sorrio, meu olhar é triste... O filme de Woody me fez sorrir
um pouco... Termina com ele dizendo: "nunca me esqueci daquele ano novo
de 44: ainda vejo os rostos, ouço as vozes, aos poucos fica mais difícil a
cada ano..." E eu também, tudo desapareceu, vozes e rostos... Falo pouco
e não me olho no espelho... É ruim, muito ruim ter memória.
Envelhecer é desagradável
por que é lento, dia a dia, aos poucos. Ninguém se dá conta, é assustador:
há pouco com quarenta anos, num piscar de olhos, setenta. Vão te comendo pelas
beiradas, como um mingau: os prazeres sumidos, nada de uísque ou cerveja (a
antiga icterícia pode dar problemas), nada de doces (hiperglicemia vigiada),
nada de andar vigoroso na orla (artrose se manifesta, os dentes quebram, dentadura
a caminho), a pele sem elasticidade, pequenas hemorragias, nada de sol (câncer
de pele surge), nada de mergulho no mar (perdida a intimidade com as ondas)...
A bronquite renitente me fez desistir do cigarro, um amigo inseparável – fez
a faculdade comigo, poeira e lama com ele, and now nem uísque antes, nem cigarro
depois. A nostalgia dos encontros amorosos há tempo sumidos por total impossibilidade
(eis a idade de novo) me era lembrada com uma tragada no Hollywood; agora
nem isso mais. Companheiro fiel nas angústias de um primeiro encontro, ao
falar ao telefone com um amor distante, ao escrever poemas dilacerantes, ao
receber mensagens "rasga coração", ao ler nos chats palavras inebriantes.
O dia inteiro, até alta madrugada, cigarro entre os lábios, depois do café,
do almoço, do jantar, ao sair do cinema, a aplacar a tristeza, minorar o medo,
enfrentar a incerteza, cigarro que me acompanha na solidão, nas angústias
dos poucos dias que me restam, que mergulha junto comigo no buraco preto da
fossa, companheiro na despedida dos entes queridos...
Que eu seja enterrado
com um cigarro entre os lábios.
>>>
f
a l a q u e e u t e e s c u t o
às vezes no silêncio da noite a gente liga o computador e escreve
pro Spam Zine, que não dorme, não reclama e tem uma paciência de Jó. primeiros
socorros sentimentais: [email protected].
"Eu visito 'sites',
eu mando 'e-mails', eu gosto de 'rock'. Eu sei que centenas de termos foram
incorporados à nossa língua por não existir palavras equivalentes em Português.
O problema é que tem gente que exagera. Pior, muitos acham bonito e passam
a imitar essa conduta nojenta. Essa merda contagia, vamos ficar de olho. Eu
gosto do Spam Zine, e peço, por favor, escrevam sempre em Português!!! Obrigado".
Carlos Une
orlando responde:
Carlão, eu também gosto do Spam Zine, eu também gosto da língua portuguesa,
e eu também acho que tem gente que exagera. agora, por mais que nos doa a
todos, cultores da última flor do lácio, o fato é que cada um escreve como
bem quiser. a gente lamenta, mas não impedimos nem patrulhamos ninguém que
queria botar lá seus "thanx, babe" no meio da escrita. por irritante
que isso seja, é uma liberdade fundamental que o escrevinhador tem. se o texto
dele presta ou não presta, se é inteligível ou não, são outros quinhentos.
mas com liberdade não se mexe.
>>>
c
r é d i t o s f i n a i s
>>>
Spam
Zine - fanzine por e-mail
>>>
p.
s.
orlando:
toda religião é, por definição, intolerante. Para elas, não há duas verdades.
Quem não sai convertendo, à força ou na lábia, lamenta a cegueira vigente.
Mas não arreda pé.