SpamZine_______________
040
25 de novembro de 2001
são paulo  curitiba  porto alegre  rio de janeiro  goiânia  londrina  são josé dos campos
 
>>>
 
CONHEÇA O NOVO SITE &
ATUALIZE SEU BOOKMARK:
http://www.spamzine.net
 
>>>
 
n e s t a   e d i ç ã o:
 
amor carnal - vidas possíveis - flerte no metrô - cidade dos clones - a viagem - velho de pijama no bar - sangue e brinquedos - tubaínas - publicidade sincera - pequenos prazeres
 
>>>
 
editorial
alexandre inagaki  [email protected]
 
"Casa dos Artistas" é a versão brasileira de "Friends". Uma espécie de "Enemies" dos pobres, só que sem os risos gravados e o Central Perk. Em ambos os programas temos balzaquianos que se recusam a crescer, presos nos mesmos cenários de sempre, afundados em infindáveis blablablás sobre relacionamentos, vide o casal do ano Supla "Chandler Bing" e Bárbara "Mônica" Paz.
 
Se Bin Laden foi capturado, se o São Caetano lidera o campeonato ou se a Argentina já foi pro buraco, ninguém na casa das ex-capas da Sexy e G Magazine sabe, e nem parece se interessar muito. Casa e comida pagas, festas quase diárias, preocupações existenciais tão superficiais quanto acnes no rosto. O fato de Supla, 34 anos, ser considerado o "novo ícone da juventude brasileira" pelo mestre de cerimônias Sílvio Santos, é o símbolo de uma geração que não saiu da casa dos pais, lê Nick Hornby e Helen Fielding, é politicamente cética, raramente ideologizada e preocupada muito mais com o próprio umbigo do que com o caderno Mundo.
 
Mas enfim, cada um busca sua felicidade pessoal e segue os seus próprios caminhos. Como Denise Mara Cardoso, 20, que deu entrevistas, foi a programas de TV e foi reconhecida nas ruas depois de ter feito um strip-tease no meio da rua, segundo ela um ato de protesto contra a desorganização de uma seleção de modelos. Ou como Marcelo Tosatti, 18, curitibano escolhido por Linus Torvalds, o criador do Linux, para decidir os futuros caminhos do sistema operacional que mais ganha usuários no mundo.
 
Certa vez perguntaram a Nélson Rodrigues que conselho ele gostaria de passar aos jovens, e o dramaturgo vaticinou, sem pestanejar: "envelheçam!". Não sei se essa é a solução. Para mim, se um homem aos 18 anos é um imbecil, aos 35 anos não vai passar de um imbecil mais experiente. A única coisa que espero é não ouvir das crianças, ao responderem à pergunta-clichê "o que você quer ser quando crescer", respostas como "dançarina do Tchan" ou "apresentador do Piores Clipes".
 
>>>
 
A vida segue o seu eterno ciclo: a voz engrossa, os pêlos aparecem, desejos novos começam a pulular na cabeça, espinhas surgem na mesma proporção de dúvidas existenciais. Pois é, meus caros: o Spam Zine cresceu e precisou se acomodar em novas instalações. Amigos leitores, ATUALIZEM SEUS BOOKMARKS!!!
 
http://www.spamzine.net
 
TODOS os textos das 38 primeiras edições, em três formatos: html, download das versões zipadas ou em índices por autor. F.A.Q. especialmente preparado pelo co-editor Ricardo Sabbag, com tudo que você gostaria de saber sobre o Spam Zine, mas não tinha a quem perguntar. FOTOS dos editores & colaboradores menos tímidos, com pequenos resumos biográficos e links para textos de cada um. Uma AMOSTRA do que saiu do Spam na imprensa por aí. Seleção de LINKS repleta de sites legais da turma que ajuda a fazer, semanalmente, o Spam Zine. VISITEM, NAVEGUEM, RECOMENDEM!!!
 
http://www.spamzine.net
 
>>>
 
Para marcar esta edição de lançamento do novo site, nada melhor do que textos de pessoas especiais. Tenho o orgulho de abrir o Spam de hoje com um conto de Indigo Girl, escritora particular (confira maiores detalhes em seu site - http://www.jhendrix.net/indigo) sem dúvida nenhuma um dos melhores textos disponíveis na Web. Outro convidado é Gustavo de Almeida, jornalista do Lance e co-responsável, com Alessandra Archer, do Blogus (http://gustones.blogspot.com), weblog de visita diária mais do que recomendável. Deliciem-se ainda com as estréias de dois gaúchos, Marcelo Firpo (contista e poeta de apurado senso de humor) e Homera Cristalli (excelente contadora de histórias), e uma bela crônica do londrinense Paulo Briguet. Fora, é claro, os excelentes textos dos suspeitos de sempre: Suzi Hong, Daniela Abade, Carlos Edu e Sara Fazib.
 
>>>
 
Compre Batom... Divulgue http://www.spamzine.net... Compre Batom... Divulgue http://www.spamzine.net... Compre Batom...
 
 
breve história de amor carnal
indigo girl  [email protected]
 
Disse Vladimir Nabokov, na mais cruel história de amor já escrita, que só mesmo um louco ou um gênio para reconhecer uma Lolita num grupo de meninas brincando. Fui igualmente louca, embora não tão genial, na minha descoberta.  Passados os anos, vejo que beiraria a perversão, se não fosse a inocência que me conduzia. O amor mais verdadeiro que existe é este que se sente por um estranho. Soube que a ele eu pertencia, mesmo antes de saber seu nome. Sempre inatingível, embora cordial. Não sei o que esperava de mim, talvez as palavras, que nunca disse. Tantas frases prontas, diálogos ensaiados, todos censurados na sua presença. E dos versos que para ele compus, cartas que lhe escrevi, nenhuma palavra conheceu. Eu apenas esperava. Eu na fila, ele atrás do balcão. E hoje só me resta escrever esta triste e breve história do amor que eu não vivi, com o açougueiro do Carrefour.
 
Como disse, eu aguardava pacientemente na fila. Aguardava minha vez de ser atendida por ele. Tomava meu lugar, sempre com um livro na mão. Fingia ler. Ele me via, eu disfarçava, até que ele retomasse sua rotina. Então fechava o livro para acariciá-lo com o olhar. Conhecia suas manias e seu ritmo. Executava seu ofício com esmero e agilidade. Um facão e um paninho, agressivo e delicado. Com movimentos redondos e perfeitos esfregava o balcão enquanto anotava mentalmente o pedido. De olhos baixos, escutava, como um servo fiel e discreto. Então dobrava o pano ao meio uma vez, levantava os olhos, dobrava uma segunda vez. Homem prestativo, ponderava a escolha. Estando de acordo, executava. Caso contrário, orientava com toda sua sabedoria gastronômica, suas freguesas. Conhecia a carne como se fosse ele mesmo seu criador divino. Os mistérios da anatomia humana ou bovina, ele decifrava com um bater de olhos. E como a manuseava!
 
Para isso dava as costas ao seu público, por pudor. Deitava a peça sobre o balcão frio, acomodando-a numa posição repousante. Com a ponta dos dedos lhe apertava, pressionando em certos pontos com determinação. Então a esticava, desabrochando, alongando, relaxando a carne. Esta, como não poderia deixar de ser, cedia. Nesse ponto ele apoiava as mãos na beira do balcão para observá-la apenas. Olhava intensamente de uma ponta a outra, sem pressa, um olhar prazeroso de satisfação. Ela estava no ponto.
 
Estirada, a peça vermelha aceitava docilmente que ele lhe cortasse. Era no momento do corte, precisamente quando a carne se desfazia ao encontro da lâmina, que seu lábio inferior tremia muito rapidamente, um tremor quase imperceptível, mas que ele não controlava.
 
E ele cortava; o primeiro pedaço, com um movimento contínuo e lento. Estando a lâmina prestes a encontrar o balcão, reprimia sua faca por um átimo de segundo, e então, com mais força, chegava ao fim. Cortada a primeira fatia. Afastava-a para o lado e tomava a peça novamente em suas mãos. A massageava novamente, desta vez com mais vigor. No seu rosto, nem mais um indício. Agora o olhar sem expressão. Possivelmente seu pensamento nem estivesse mais ali. Cortava mecanicamente fatia após fatia, acumulando-as numa pilha, embrulhando-as e jogando o pacote na balança. Era nessas horas que me flagrava observando-o, livro abandonado. Chegava a sorrir e levantar uma sobrancelha sugestiva. Mas sobrancelha não se levanta assim, a troco de nada. Perguntava ele, com aquele gesto descarado, se eu o aprovava. Eu fingia uma certa indignação e empurrava o carrinho, fazendo a fila andar.
 
Voltava toda semana, para mais. A cada fila descobria mais sutilezas, até entender sua rotina por completo, ao ponto de adivinhar o movimento seguinte. Suas mãos já me eram conhecidas, as sentia me puxando, esticando, batendo, até me deixar no ponto. Eu estava no ponto.
 
- O que vai ser hoje, freguesa?
 
Precisava dizer-lhe então, aproveitar que a fila se desfizera, sobrando apenas eu. Uma fila só minha. Sabia exatamente o que falar, estava ensaiado, pronto. Antes de mais nada, ele era um básico. Usaria palavras básicas e isso bastaria. O resto viria naturalmente, aquele delicioso resto, que era tudo.
 
- Maminha. Bem macia.
 
 
p e r g u n t a r   n ã o   o f e n d e
"Se você pudesse escolher outra vida para si mesmo(a), como essa vida seria?"
 
nicole lima  [email protected]
eu escolheria uma vida onde não existissem caminhões de mudança.
escolheria uma casa onde eu pudesse dormir na cama em que nasci.
uma casa casca que fosse ficando menor a cada centimetro meu que tomasse seu
espaço.
uma cidade onde todas as esquinas fossem amigas de infância, onde eu pudesse
apontar as origens das cicatrizes no meu joelho.
 
ricardo nishizaki  [email protected]
Escolheria viver como cachorro. Um boxer, lógico, que é feião, fortão e simpaticão (sem trocadilhos), exatamente o oposto do que sou como humano. Ou planta. Vida sem saber que se vive. Sem consciência. A ignorância é a resposta para aqueles que não querem sofrer.
 
Eu seria uma fêmea bonobo. O bonobo é um tipo de chimpanzé menor que vive na África. O local onde vivem é farto de comida. Por isso tudo que os bonobos fazem é trepar e comer. Trepam vários machos com várias fêmeas. E sem ciumeira. Quando bate a fome, catam umas frutas, comem e voltam ao sexo. São animais que não têm cio: vivem no cio, tal qual o humano. Não têm frescuras com virgindade, não têm disputas por território e/ou poder, são pacíficos e, acima de tudo, trepam pra caramba.
 
marcus amorim  [email protected]
Eu seria um índio que morasse nas terras brasileiras lá pelo ano de 1200, uns 300 anos antes do descobrimento, e viveria "pelado, pintado de verde, num eterno domingo". Qual era mesmo a tribo que habitava ali a Baía de Guanabara? ;-)
lu vianna  [email protected]
Eu seria solteira. Compraria aquela caixa de sabão em pó que vem cheia de maridos dentro... mas depois, pensando bem, o que eu faria com tanto marido? Deve ter uma outra caixa cheia de sogras por aí... Então, eu abriria a caixa de maridos e despejaria dentro da caixa de sogras. Pronto. Seria solteira e eternamente solteira. Tudinho meu: controle remoto, 200 canais, Internet livre, rock pesado rachando as paredes do apartamento e meu amigo Johnny Walker dando risada comigo. Seria absolutamente solteira, sem sabão em pó, sem luvas de borracha, sem horário e sem vergonha. Tá escolhido... alguma fada madrinha quer encarar?
 
mário r. mendes júnior  [email protected]
Seria sem a "sistematização das ações que induzem a rotina"; sem a masturbação mental que somos obrigados a praticar todos os dias sem direito a gozo no final. Seria sem barulhos desagradáveis e sem os eternos "acordar cedo". Agora se pudesse mesmo escolher outra vida, teria como único vício a prática de valores relacionados a "ser" e não a "ter". E não me pergunte o motivo!
 
naira marcatto  [email protected]
Eu seria um pouco Caetano Veloso que pode dizer o que quiser que todo mundo acha "lindo!"; seria um pouco John Lennon para ser alvo das mais apaixonantes críticas no melhor estilo "falem mal, mas falem de mim", ou talvez um pouco Luciana Gimenez, a burra, mas gostosa. Seria esse misto de merda com boa vontade...
pergunta da próxima semana:
"Qual será o seu epitáfio?"
Escreva: [email protected]. As respostas mais inusitadas, pungentes e/ou embaraçosas serão publicadas na próxima edição.
 
 
prato
marcelo firpo  [email protected]
 
Como quem escolhe feijões
Separo amor e neurose
Depois te convido pra jantar.
 
 
lado de baixo
gustavo de almeida  [email protected]

Tudo, tudo porque a vida se tornou comum. Ou menos que isso, ou outra palavra mais entediante do que "tediosa", enfim, tudo isso, e que às vezes o levava a dizer a frase "O mundo não é o melhor lugar que existe para se viver", ou coisa assim - ou seria "não é um lugar legal"?

- Você tem uma pinta bonita aqui no pescoço - ele disse, diante da estranheza dela, quem era esse que ficava olhando-a, ela que estava tão infeliz? Não, não olhe para os infelizes, eles têm vergonha do seu estado indiferente e banal. Mas ele olhava diferente.

- Quer uma bala? Essa é daquelas fortes, heim?

Ela só olhava, recusando com a cabeça. No Metrô tem cada maluco, ela pensou, mas esse até que era simpático, bonito, branco, ocidental, bem vestido, todas essas coisas que fazem a gente perder o medo do nosso semelhante. Principalmente da parte dela, arquivista cansada, aos 40 anos, separada e sem filhos, sabendo que a vida acabou ficando isso mesmo, tudo parou, não dá mais para sonhar - férias de 12 em 12 meses, o Natal, a família, o Carnaval e está bom assim, pouca coisa muda. E de vez em quando comprar o último CD do Roberto.

"Próxima estação, Uruguaiana, desembarque pelo lado direito, atenção
para o vão entre o trem e a plataforma".

- Você vai saltar aqui no Centro? A gente podia tomar um sorvete.

Ela lembrou que devia ter uns dez anos que ela não tomava um sorvete. Talvez porque tivesse tirado férias no inverno, e aí perdeu a vontade, o frio a intimidou - como tudo, no mais. Tinha sido um dia quente de verão no Rio de Janeiro, ela bem que sentiu vontade, mas ainda estava com medo do rapaz.

- Por que você não fala nada?

Ela sorriu, pensando em dizer algo, e com o sorriso acabou dizendo muita coisa, no fundo a vida tinha uma finalidade ali, naquele momento. O sorriso de uma mulher para um homem, no final acabava tudo em líquidos, gozo, ejaculação, mas se o caminho fosse o mais tortuoso - diria romântico - a dor da racionalidade vital seria
superada. Ela sorriu, e ele também.

- Me dá um beijo?

Ele estava ousado, mas era assim que se sonhava. Ela, triste, chamou a atenção dele, que viajava em pé, tinha entrado na estação Afonso Pena. Começou a olhar pelo vagão, viu diversos tipos, homens rudes, rapazes simples, negros com roupas de oficinas, senhoras idosas, e de repente a viu, com uma sacola de loja na mão, onde levava suas coisas e pastas, e uma bolsa na outra, e no rosto apenas uma desesperança sem alarme, um sentimento mais neutro ainda que o conformismo. Era aquilo mesmo, seu emprego, sua casinha, a TV, a novela. E se fosse no século retrasado, quando não tinha TV? Seria o que? Ela não pensava nisso, tudo está bem diante da TV.

- Ah, vai? Dá um beijo?

O hálito do rapaz era fresco, talvez por causa da bala. Seus olhos eram castanhos - há muito tempo ela não via os olhos de um homem assim tão de perto. Ela não sabe se por causa dos olhos, mas sentiu vontade de trepar com ele, abrir as pernas e deixar ele invadir, dominar, dizer palavras sujas. Com todo esse pensamento, sua calcinha ficou molhada.

"Próxima estação, Flamengo, desembarque pelo lado direito".

- Fica com meu telefone?

Ela até concordou, ele anotou o telefone no papel da bala, ela guardou. Antes de saltar no Flamengo, ele foi mais ousado e deu um beijo no pescoço dela, perto da pinta. Ela fez uma cara de desagrado, não gostou dele ter roubado um beijo.

Naquela noite, ela ficou olhando para o papel em cima da mesa solitária da sala. Nem ligou a televisão. Se masturbou como há muito não tinha coragem de fazer, e foi dormir.

Quando acordou, não achou o papel com o telefone do rapaz. Tudo bem, pensou. A vida é essa mesmo, meu emprego, minha tv, minha casinha. Olhou para o relógio. Era domingo e não tinha Metrô.
 
 
flash contemporâneo número 1
(arlã()  [email protected]

Você não sabe, mas tudo começou em 1983.
 
O Secretário das Finanças do Município mandou o seu clone também. Ora, era apenas mais uma festa imbecil.
 
Assim, em pouco tempo as festas estavam repletas de clones e um original era logo notado. E expulso.
 
Uma cidade nova foi criada ao lado da cidade velha e clone virou sinônimo de novo e original sinônimo de velho.
 
Houve revoluções silenciosas e os clones aos poucos foram tomando a cidade velha.
 
Caso você veja alguém com a sua cara, fuja. Você está sendo procurado.
 
 
r á p i d a s   r a s t e i r a s
 
"Droga pior que a maconha é a hipocrisia".
(OTTO, músico pernambucano, resumindo em poucas palavras o dispensável imbróglio causado pela demissão de Soninha, ex-apresentadora da TV Cultura, por causa de suas declarações pró-cannabis à revista Época.)
 
"O time que quiser jogar com beleza tem que entrar em campo com um pavão".
(MARCELINHO CARIOCA, em um arroubo puxa-saquista do estilo Felipão de futebol, necessitando assistir urgentemente "Amarcord", filme de Fellini, pra ver aprende algo a respeito de pavões, imaginação e vida.)
 
 
viagem
daniela abade  [email protected]
 
Primeiro foi o sol. Aquela luz que era luz tamanha que olho nenhum suportava, só alma. Aquele calor que obrigava meu rosto a ficar vermelho sem que eu tivesse vergonha, a menor vergonha de nada. Um calor que me despia de roupa, de medo. Que desidratava todas as minhas inseguranças.

Depois foram as nuvens. Cachorros, gatos, montanhas, amantes. Todos flutuando  na minha frente, contando histórias, devassando suas vidas, convidando a novas jornadas. Aquele monte de ar palpável, de algodão voador, de escultura de anjo olhava pra mim e me provava que o céu era possível.

Logo após foi o vento. Ah, o vento. Carinho, prazer, abraço, força. Tudo num só elemento. Eu sorria e ele me envolvia. Eu fechava os olhos e ele soprava mais forte meu rosto (talvez para eu não esquecer que ele estava por lá). Eu abria os braços e ele mexia nos meus cabelos. Brincava com meus cachos, criava nós que chegavam em minha cabeça e que me deixavam quase sem sentido. Naquele instante o vento foi homem. Naquele instante o vento foi meu.

Daí veio o chão.
 
 
velho de pijama no bar
paulo briguet  [email protected]

Não quero riqueza, fama, glória ou sabedoria. Dispenso as honrarias, os aplausos e os prêmios. Não cobiço a modelo mais curvilínea e não invejo o luminar da ciência. Não pretendo escrever Em Busca do Tempo Perdido nem Memórias Póstumas de Brás Cubas. Jamais pensei em receber salário em dólar ou fazer parte da alta diretoria. Poder? Nunca me atraiu. E se um dia me abrirem a porta do Céu, sei que terá sido após muitos séculos de Purgatório.

Só invejo uma pessoa neste mundo: o velho que ia de pijama ao bar.

Não sei onde ele está, nunca mais o vi. Mas, para mim, o velho que ia de pijama ao bar representa o único modelo de felicidade completa.

Ir ao bar é bom. Colocar pijama é bom. Mas, por motivos ainda misteriosos, instituíram que é condenável ir de pijama ao bar. O velho, porém, estava acima desses regulamentos estúpidos.

Morava na pensão ao lado do boteco. Provavelmente era sozinho na vida. Às seis horas da tarde, abria a porta da pensão, dava quinze passos e sentava-se a uma das mesas de metal do bar (na verdade, um estabelecimento muito simples, daqueles que têm vidros de tremoço e quibes de anteontem na estufa).

De pijama, pedia uma cerveja, que lhe era prontamente servida. Bebia em paz e solidão. Não o incomodavam, e ele não incomodava ninguém. Depois de algumas cervas, voltava para a pensão.

O pijama era velho como o velho. De flanela, com bolinhas azuis: uma segunda pele. Estava sempre limpo, o pijama - um fato estranho; desconfio que o velho tivesse dois ou três modelos iguais. Ah, e também havia as sandálias Franciscanas, com uma quilometragem que possivelmente superava o Trópico de Capricórnio.

A tarde caía; as pessoas deixavam o trabalho, passavam pelo bar. No canto, à sua mesa predileta, o velho bebia o líquido amarelo e borbulhante. Às vezes, novos clientes o olhavam com estranheza. Mas logo se acostumavam.
Nós estávamos lá, vestidos e munidos com a roupa da vida cotidiana: camisas, calças, sapatos, cintos, cuecas, blusas, lenços, carteiras, celulares, pastas, agendas. Falávamos de tanta coisa: trabalho, política, esporte, religião, sexo, música, literatura, piadas.

O velho, não. Jamais ouvi uma palavra de sua boca. Ele vivia no silêncio completo de um tempo que não era tempo: sua vida era sono, espuma, solidão e memória. Um leve sorriso nos lábios (e me diga: qual é o sorriso que não vem dos lábios?). Uma certeza serena do mais simples. O conhecimento do elementar.

Um dia, venderam o bar, que passou por uma reforma e modernizou-se. Na mesma época, a pensão fechou as portas. Nunca mais tive notícias do velho, do seu pijama e das sandálias Franciscanas.

É por isso que eu não quero sair daqui, meus amigos. Tenho medo. Não quero sair desta casa, desta cidade, deste pijama, deste boteco de palavras, deste silêncio. Recuso-me a sair desta crônica.

Eis a minha única ambição: ficar, para não desaparecer.
 
 
insight
sara fazib  [email protected]
 
Num barco à deriva
um homem divaga
os rumos da vida.
 
No horizonte
uma questão vertical
 há mais além?
 
O morcego acorda
e vê de ponta-cabeça
o sentido enfim.
 
 
brinquedos
homera cristalli 
[email protected]
 
Na rua onde eu moro as pessoas se conhecem, sabem quem vai pra cama com o marido de quem, e quem perdeu o emprego recentemente. Minha mãe está entre os que perderam o emprego, por isso lá em casa o clima não está dos melhores. Eu saio do colégio e vou jogar bola na frente da casa do seu Jonas. Só volto à noite, e minha mãe está contando pra vizinha, pela enésima vez, do dia em que meu pai sofreu aquele acidente fatal na obra onde trabalhava.
 
Aqui no bairro não passam muitos carros, ninguém tem dinheiro para comprar um, então tem bastante espaço livre e as ruas são nossos campos de futebol. A frente da casa do seu Jonas é o melhor lugar porque ele nunca nos incomoda, mesmo quando a bola cai na varanda dele. Ele é legal, ficou viúvo, como a mãe, mas eu acho que deve ter um bom emprego porque a casa dele é a melhor da vizinhança. Uma vez o seu Jonas me chamou pra dentro da casa dele, para me mostrar a coleção de aviões em miniatura que ele tem. Foi a coisa mais linda que eu já vi, por isso não resisti e coloquei um na mochila, para levar pra casa.

Bom, o fato é que eu não consegui tirar da cabeça a culpa por ter roubado o aviãozinho e decidi devolver. Bati na porta da casa do seu Jonas, mas ninguém abriu. Então eu empurrei de leve e ví que a porta estava aberta, entrei. Recoloquei o avião no lugar e resolvi tomar um copo d’agua na cozinha. Foi então que eu vi o pé, saindo debaixo do fogão, com manchas roxas e azuis. Me abaixei e toquei no dedão. Estava grudento, por causa do sangue.

- Você não tem medo? - meu coração gelou quando ouvi a voz do seu Jonas. Me virei e ví ele parado na porta da cozinha - Você não tem medo? - repetiu ele.

- Não. - respondi.

- Você não gostaria de saber como isto veio parar aqui? - perguntou.

- Não - repeti.

- Então... se você me ajudar eu compro uma bicicleta para você - falou seu Jonas.

Minha mãe está desempregada e eu queria uma bicicleta, então eu cortei a perna, que estava embaixo do fogão, em três partes; primeiro com um facão e depois com uma serra, quando o facão perdeu o fio. Coloquei os pedaços num saco de lixo, botei na mochila e enterrei no mato atrás da escola.

Como uma pessoa não tem uma perna só, e também tem braços e todo o resto, eu passei todas as tardes daquela semana na casa do seu Jonas, trabalhando com a serra.

Agora tenho uma bicicleta, e os aviões em miniatura também são meus. Acho que logo vou ganhar um vídeo game, porque eu vi uns pingos de sangue na varanda da casa do seu Jonas.

(publicado originalmente no site
Não)
 
 
n a v e g a r   i m p r e c i s o
  
no mundo das tubaínas
http://www.revista2k.com.br/vida/tubaina/abertura.asp
Os especiais da Revista 2K são sempre muito bons, mas este supera todas as expectativas. Trata-se de uma reportagem completíssima sobre tubaínas: aqueles refrigerantes adocicados e baratos que o Seu Zé do mercado vende pra gente a fiado. Você já tomou Arco-Íris, Vedete, Celina ou Soberana? Já experimentou Jesus, o guaraná mais vendido no Maranhão, e que tem coloração ROSA? Ah, pensar que você achava que Fanta Uva era o refrigerante mais exótico do mundo...
 
eu acho que vi um gatinho
http://www.geocities.com/gatoquemia
A página é simples, mas vale pelo inusitado: uma compilação de links estranhos sobre gatos. Como cozinhar um gato, o gato morto-vivo de Schrödinger, fotos de mulheres nuas com gatos, uma teoria da estética em pinturas de gatos, imagens de gatos mumificados, a lenda urbana da mulher que tentou secar seu gato usando o microondas... Depois dessas, Bonsai Kitten vira pinto.
 
 
quem tem luvas não precisa de dignidade
gaspar santos  [email protected]
 
(Um roteiro para comercial de luvas de limpeza destinado a uma sociedade sem hipocrisia. Se a sinceridade fosse presente em nossas vidas, mais ou menos assim seriam os comerciais.)
 
Um homem grisalho, com luvas amarelas reluzentes e com olhar transbordante de sabedoria que só pode ser granjeada ao longo de anos de vivência:
 
- Do alto de meus muitos crepúsculos, olho ao redor e só vejo inimigos. Os que não são declarados são os mais poderosos, suas adagas estão untadas com o ácido do desprezo e atingem com impacto irresistível os ossos de meus esforços. Torno-me um guerreiro cada vez mais solicitado pelos ardores dessa chama fétida que grita meu nome. Olho em volta e só posso ver inimigos. Todos querem minha derrocada, todos lutam por assistir minha queda dos camarotes da falsidade e da...
 
Chega homem com uniforme azul, chapéu com brasão de time de futebol. Traz escrito "encarregado de limpeza" nas costas. O foco da câmera aumenta e mostra o ambiente do encontro, banheiro aparentemente de hotel ou estabelecimento grande, banheiro público mas muito bem cuidado.
 
- Tá caducando mesmo né velho? Fale menos para si e limpe direito essa privada, tem jeito?
 
Aparece tela negra com letreiro vermelho, letras médias no alto da tela com a marca da luva. Ao centro, em letras maiores a seguinte frase:
 
"porque dignididade não é sinônimo de higiene"
 
Letras miúdas na base da tela:
 
"Qualquer semelhança é mera coincidência. O uso de luvas [nome da luva] por pessoas alergênicas deve ser realizado sob orientação médica".
 
 
cacos e super-bonder
suzi hong  [email protected]
 
É tudo que preciso para fazer uma festa com as lembranças que quero reconstruir. Vamos começar por partes.

Primeiro, solte-se das amarras do que hoje é considerado "cool, fashion, in, up, indie, brit-pop, yada, yada, yada"... Forget it. Desencanai-vos. Esses conceitos e rótulos são mais voláteis do que os índices da Bovespa, muito menos duradoures do que os romances da loira Adriane Galisteu e mais imprevisíveis do que menstruação de adolescente.

Depois, dê-se ao prazer, pelo simples e mero prazer de se divertir descompromissadamente, dançando Twist and Shout enquanto você faz aquela faxina no seu quarto; leia um livro light e engraçado (se você ainda não leu "O Diário de Bridget Jones" ou qualquer livro da coleção Harry Potter, não perca mais tempo); alugue uma fita de comédia ou romance com final feliz (sugestão: Máfia no Divã ou Corações Apaixonados, respectivamente); jogue palavras cruzadas do jornal; assista Friends; capriche no visual e saia para dançar em pleno dia-de-semana...

Ouça uma música que um amigo indicou e você REALMENTE GOSTOU. Não se apegue a modismos. Não tenha vergonha de gostar de Verônica Sabino (quedé a mulé) ou de babas made in USA como I'll be there e You've got a friend.
 
Faça declarações de amor inusitadas para pessoas potencialmente apaixonantes.
 
Sacanaie os spammers, conceda-se uma noite fazendo arte entrando no site www.spamdevil.com.

Faça swatshia yoga ou tai-chi-chuan (este último é de graça no Parque da Aclimação e acho que no Ibirapuera também, aqui em Sampa).

Aprenda a respirar corretamente (para os iniciantes: ao inspirar, coloque de leve a mão esquerda sobre o umbigo e sinta-o crescer de ar; depois, expirando, sinta seu umbigo contraindo) - isto melhora a oxigenação e, consequentemente, o bom funcionamento de todos os órgãos.
 
Não se deixe abater porque os "entendidos" te acham parte da X-Generation. Balelas. Ligue mais pro seu perfume, para seus talentos e convicções.

Deixe de abrir seu outlook por um dia inteirinho. E só acesse a Internet para visitar os sites do
Millôr.
 
Faça orações e rezas como se você estivesse batendo um plá descompromissado com Deus numa mesinha de bar ao ar livre.

Não, tudo isso não faz parte de um livro de auto-ajuda, sobretudo quando escrito como uma pessoa como eu. Mas com um pouco de boa vontade e FÉ costuma dar certo.
 
 
f a l a   q u e   e u   t e   e s c u t o
a seção de cartas mais versátil da paróquia: também somos mural de recados, correio elegante, lavamos e passamos. participe você também:
[email protected].
 
"e aí? Só assinar e pronto? rs
Não precisa de ficha completa ou algo parecido???
Nome do cachorro, do papagaio... não quer saber quantas TVs eu tenho em casa? Então firmeza..."
Carol
 
inagaki responde: para assinar o Spam Zine não é necessária prática nem tampouco habilidade. Basta visitar http://www.spamzine.net, preencher o formulário da página, agitar antes de abrir e prontim: cá estamos em seu mailbox. Agora, se você quiser nos informar seu número de cartão de crédito e o telefone da Marina Person, não se faça de rogada, ok? Beijão procê e juízo (ma non troppo).
 
"Just for your information: não sei como fui parar na página; gostei; assino... o detalhe é que eu moro em Barcelona (Espanha); na internet não há distância (¡¡Bien!!)
Pili Benito
 
inagaki responde: quem tem boca vai a Roma, quem tem mouse vem parar aqui. Só espero que você não tenha digitado no Altavista termos de pesquisa como "gisele bündchen pelada" ou "tourist guy" para chegar até o Spam. Seja bem-vindo, e... hasta la vista, baby!
 
 
c r é d i t o s   f i n a i s
 
charadas brasileiros (editores)
Alexandre Inagaki [[email protected]]
Ricardo Sabbag [[email protected]]
Orlando Tosetto Junior [[email protected]]
 
new kids on the block (estreantes desta edição)
Gaspar Santos [[email protected]]
Homera Cristalli [[email protected]]
Indigo Girl [[email protected]]
Marcelo Firpo [[email protected]]
Paulo Briguet [[email protected]]
 
friends (staff de colaboradores)
(arlã() [[email protected]]
Daniela Abade [[email protected]]
Gustavo de Almeida [[email protected]]
Lau Siqueira [[email protected]]
Nicole Lima [[email protected]]
Sara Fazib [[email protected]]
Suzi Hong [[email protected]]
 
gente inocente (special guest stars)
Marcus Amorim [[email protected]]
Mário R. Mendes Júnior [[email protected]]
Naira Marcatto [[email protected]]
Lu Vianna [[email protected]]
Lyanna [[email protected]]
Ricardo Nishizaki [[email protected]]
 
>>>
 
Spam Zine - fanzine por e-mail
 
conheça, leia, assine:
http://www.spamzine.net
 
colaborações, sugestões, críticas, pedidos de números antigos:
[email protected]
 
>>>
      
p. s.
 
lau: Especialmente aos amigos de João Pessoa: alguns de vocês já sabem, participei com alguns poemas na Agenda da Tribo 2002, e a editora costuma pagar os direitos autorais com as próprias agendas. Bueno... a parte que me toca, se vendida ao preço de R$ 20,00 a unidade, pode financiar o meu livro (SEM MEIAS PALAVRAS). Por sugestão do meu amigo e editor, o poeta Antônio Mariano, proponho que a pessoa que comprar uma agenda ganhe um bônus para receber um exemplar do livro quando publicado. Se não quiser o livro, pode comprar a agenda por R$ 15,00. O que eu estou pedindo? Bem, eu quero ter noção da viabilidade desse projeto. Por isso, queria que, se possível, você informasse para meu e-mail, [email protected] a quantas pessoas, por indicação sua (compradores em potencial) eu poderia oferecer a agenda. Esse recado não vale para pessoas de outras cidades, porque as agendas são pesadas e as despesas com o Correio fariam com que as mesmas se tornassem demasiadamente caras. Brigadão! Muita poesia e muita leveza na alma procês!
 
orlando: quando não existe amor, tudo é provisório.
 
inagaki: concordo, porém... Tudo (inclusive a vida) é provisório neste mundo.
 
orlando: Sim, mas a gente não pode viver com a sensação de que a espada de Dâmocles está prestes a cair em cima da nossa cabeça. Mesmo que esteja - e está - precisamos dar um jeito de ignorá-la.