SpamZine_______________
040
25 de novembro de 2001
são paulo curitiba porto alegre rio de janeiro
goiânia londrina são josé dos campos
>>>
CONHEÇA O
NOVO SITE &
ATUALIZE
SEU BOOKMARK:
>>>
n
e s t a e d i ç ã o:
amor carnal - vidas possíveis - flerte no metrô - cidade dos clones -
a viagem - velho de pijama no bar - sangue e brinquedos - tubaínas - publicidade sincera
- pequenos prazeres
>>>
"Casa dos
Artistas" é a versão brasileira de "Friends". Uma espécie
de "Enemies" dos pobres, só que sem os risos gravados e o Central
Perk. Em ambos os programas temos balzaquianos que se recusam a crescer,
presos nos mesmos cenários de sempre, afundados em infindáveis blablablás
sobre relacionamentos, vide o casal do ano Supla "Chandler Bing"
e Bárbara "Mônica" Paz.
Se Bin Laden foi
capturado, se o São Caetano lidera o campeonato ou se a Argentina
já foi pro buraco, ninguém na casa das ex-capas da Sexy e G Magazine sabe,
e nem parece se interessar muito. Casa e comida pagas, festas quase diárias, preocupações
existenciais tão superficiais quanto acnes no rosto. O fato de Supla,
34 anos, ser considerado o "novo ícone da juventude brasileira"
pelo mestre de cerimônias Sílvio Santos, é o símbolo de uma geração que
não saiu da casa dos pais, lê Nick Hornby e Helen Fielding, é politicamente
cética, raramente ideologizada e preocupada muito mais com o
próprio umbigo do que com o caderno Mundo.
Mas enfim, cada
um busca sua felicidade pessoal e segue os seus próprios caminhos.
Como Denise
Mara Cardoso, 20, que deu entrevistas, foi a programas de TV
e foi reconhecida nas ruas depois de ter feito um strip-tease no meio
da rua, segundo ela um ato de protesto contra a desorganização de
uma seleção de modelos. Ou como Marcelo
Tosatti, 18, curitibano escolhido por Linus Torvalds, o criador do
Linux, para decidir os futuros caminhos do sistema operacional
que mais ganha usuários no mundo.
Certa vez perguntaram a
Nélson Rodrigues que conselho ele gostaria de passar aos jovens, e o dramaturgo
vaticinou, sem pestanejar: "envelheçam!". Não sei se essa é
a solução. Para mim, se um homem aos 18 anos é um imbecil, aos 35 anos
não vai passar de um imbecil mais experiente. A única coisa que espero
é não ouvir das crianças, ao responderem à pergunta-clichê "o que
você quer ser quando crescer", respostas como "dançarina do
Tchan" ou "apresentador do Piores Clipes".
>>>
A vida segue o
seu eterno ciclo: a voz engrossa, os pêlos aparecem, desejos novos começam
a pulular na cabeça, espinhas surgem na mesma proporção de dúvidas existenciais.
Pois é, meus caros: o Spam Zine cresceu e precisou se acomodar em novas
instalações. Amigos leitores, ATUALIZEM SEUS BOOKMARKS!!!
TODOS
os textos das 38 primeiras edições, em três formatos: html, download das
versões zipadas ou em índices por autor. F.A.Q. especialmente preparado
pelo co-editor Ricardo Sabbag, com tudo que você gostaria de saber sobre
o Spam Zine, mas não tinha a quem perguntar. FOTOS dos editores &
colaboradores menos tímidos, com pequenos resumos biográficos e links
para textos de cada um. Uma AMOSTRA do que saiu do Spam na imprensa por
aí. Seleção de LINKS repleta de sites legais da turma que ajuda a fazer,
semanalmente, o Spam Zine. VISITEM, NAVEGUEM, RECOMENDEM!!!
>>>
Para marcar esta
edição de lançamento do novo site, nada melhor do que textos de pessoas
especiais. Tenho o orgulho de abrir o Spam de hoje com um conto de Indigo
Girl, escritora particular (confira maiores detalhes em seu site - http://www.jhendrix.net/indigo)
sem dúvida nenhuma um dos melhores textos disponíveis na Web. Outro convidado
é Gustavo de Almeida, jornalista do Lance e co-responsável, com Alessandra
Archer, do Blogus (http://gustones.blogspot.com),
weblog de visita diária mais do que recomendável. Deliciem-se
ainda com as estréias de dois gaúchos, Marcelo Firpo (contista e poeta
de apurado senso de humor) e Homera Cristalli (excelente contadora de
histórias), e uma bela crônica do londrinense Paulo Briguet. Fora, é claro,
os excelentes textos dos suspeitos de sempre: Suzi Hong, Daniela Abade,
Carlos Edu e Sara Fazib.
>>>
Disse
Vladimir Nabokov, na mais cruel história de amor já escrita,
que só mesmo um louco ou um gênio para reconhecer uma Lolita num grupo
de meninas brincando. Fui igualmente louca, embora não tão genial, na
minha descoberta. Passados os anos, vejo que beiraria a perversão,
se não fosse a inocência que me conduzia. O amor mais
verdadeiro que existe é este que se sente por um estranho.
Soube que a ele eu pertencia, mesmo antes de saber seu nome. Sempre inatingível,
embora cordial. Não sei o que esperava de mim, talvez as palavras, que
nunca disse. Tantas frases prontas, diálogos ensaiados, todos censurados
na sua presença. E dos versos que para ele compus, cartas que lhe escrevi,
nenhuma palavra conheceu. Eu apenas esperava. Eu na fila, ele atrás do
balcão. E hoje só me resta escrever esta triste e breve história do amor
que eu não vivi, com o açougueiro do Carrefour.
Como
disse, eu aguardava pacientemente na fila. Aguardava minha vez de ser
atendida por ele. Tomava meu lugar, sempre com um livro na mão. Fingia
ler. Ele me via, eu disfarçava, até que ele retomasse sua rotina. Então
fechava o livro para acariciá-lo com o olhar. Conhecia suas manias e seu
ritmo. Executava seu ofício com esmero e agilidade. Um facão e um paninho,
agressivo e delicado. Com movimentos redondos e perfeitos esfregava o
balcão enquanto anotava mentalmente o pedido. De olhos baixos, escutava,
como um servo fiel e discreto. Então dobrava o pano ao meio uma vez, levantava
os olhos, dobrava uma segunda vez. Homem prestativo, ponderava a escolha.
Estando de acordo, executava. Caso contrário, orientava com toda sua sabedoria
gastronômica, suas freguesas. Conhecia a carne como se fosse ele mesmo
seu criador divino. Os mistérios da anatomia humana ou bovina, ele decifrava
com um bater de olhos. E como a manuseava!
Para
isso dava as costas ao seu público, por pudor. Deitava a peça sobre o
balcão frio, acomodando-a numa posição repousante. Com a ponta dos
dedos lhe apertava, pressionando em certos pontos com determinação. Então
a esticava, desabrochando, alongando, relaxando a carne. Esta, como não
poderia deixar de ser, cedia. Nesse ponto ele apoiava as mãos na beira
do balcão para observá-la apenas. Olhava intensamente de uma ponta a outra,
sem pressa, um olhar prazeroso de satisfação. Ela estava no ponto.
Estirada,
a peça vermelha aceitava docilmente que ele lhe cortasse. Era no momento
do corte, precisamente quando a carne se desfazia ao encontro da lâmina,
que seu lábio inferior tremia muito rapidamente, um tremor quase imperceptível,
mas que ele não controlava.
E
ele cortava; o primeiro pedaço, com um movimento contínuo e lento. Estando
a lâmina prestes a encontrar o balcão, reprimia sua faca por um átimo
de segundo, e então, com mais força, chegava ao fim. Cortada a primeira
fatia. Afastava-a para o lado e tomava a peça novamente em suas mãos.
A massageava novamente, desta vez com mais vigor. No seu rosto, nem mais
um indício. Agora o olhar sem expressão. Possivelmente seu pensamento
nem estivesse mais ali. Cortava mecanicamente fatia após fatia, acumulando-as
numa pilha, embrulhando-as e jogando o pacote na balança. Era nessas horas
que me flagrava observando-o, livro abandonado. Chegava a sorrir e levantar
uma sobrancelha sugestiva. Mas sobrancelha não se levanta assim, a troco
de nada. Perguntava ele, com aquele gesto descarado, se eu o aprovava.
Eu fingia uma certa indignação e empurrava o carrinho, fazendo a fila
andar.
Voltava
toda semana, para mais. A cada fila descobria mais sutilezas, até entender
sua rotina por completo, ao ponto de adivinhar o movimento seguinte. Suas
mãos já me eram conhecidas, as sentia me puxando, esticando, batendo,
até me deixar no ponto. Eu estava no ponto.
-
O que vai ser hoje, freguesa?
Precisava
dizer-lhe então, aproveitar que a fila se desfizera, sobrando apenas eu.
Uma fila só minha. Sabia exatamente o que falar, estava ensaiado, pronto.
Antes de mais nada, ele era um básico. Usaria palavras básicas e isso
bastaria. O resto viria naturalmente, aquele delicioso resto, que era
tudo.
-
Maminha. Bem macia.
p
e r g u n t a r n ã o o f e n d e
"Se
você pudesse escolher outra vida para si mesmo(a), como essa vida seria?"
eu
escolheria uma vida onde não existissem caminhões de mudança.
escolheria uma casa onde eu pudesse dormir na cama em que nasci.
uma casa casca que fosse ficando menor a cada centimetro meu que tomasse
seu
espaço.
uma cidade onde todas as esquinas fossem amigas de infância, onde eu
pudesse
apontar as origens das cicatrizes no meu joelho.
Escolheria
viver como cachorro. Um boxer, lógico, que é feião, fortão e simpaticão
(sem trocadilhos), exatamente o oposto do que sou como humano. Ou
planta. Vida sem saber que se vive. Sem consciência. A ignorância é
a resposta para aqueles que não querem sofrer.
Eu
seria uma fêmea bonobo. O bonobo é um tipo de chimpanzé menor que
vive na África. O local onde vivem é farto de comida. Por isso tudo
que os bonobos fazem é trepar e comer. Trepam vários machos com várias
fêmeas. E sem ciumeira. Quando bate a fome, catam umas frutas, comem
e voltam ao sexo. São animais que não têm cio: vivem no cio, tal qual
o humano. Não têm frescuras com virgindade, não têm disputas por território
e/ou poder, são pacíficos e, acima de tudo, trepam pra caramba.
Eu
seria um índio que morasse nas terras brasileiras lá pelo ano de 1200,
uns 300 anos antes do descobrimento, e viveria "pelado, pintado
de verde, num eterno domingo". Qual era mesmo a tribo que habitava
ali a Baía de Guanabara? ;-)
Eu
seria solteira. Compraria aquela caixa de sabão em pó que vem cheia
de maridos dentro... mas depois, pensando bem, o que eu faria com tanto
marido? Deve ter uma outra caixa cheia de sogras por aí... Então, eu
abriria a caixa de maridos e despejaria dentro da caixa de sogras. Pronto.
Seria solteira e eternamente solteira. Tudinho meu: controle remoto,
200 canais, Internet livre, rock pesado rachando as paredes do apartamento
e meu amigo Johnny Walker dando risada comigo. Seria absolutamente solteira,
sem sabão em pó, sem luvas de borracha, sem horário e sem vergonha.
Tá escolhido... alguma fada madrinha quer encarar?
Seria
sem a "sistematização das ações que induzem a rotina"; sem
a masturbação mental que somos obrigados a praticar todos os dias sem
direito a gozo no final. Seria sem barulhos desagradáveis e sem os eternos
"acordar cedo". Agora se pudesse mesmo escolher outra
vida, teria como único vício a prática de valores relacionados a "ser"
e não a "ter". E não me pergunte o motivo!
Eu
seria um pouco Caetano Veloso que pode dizer o que quiser que todo mundo
acha "lindo!"; seria um pouco John Lennon para ser alvo das
mais apaixonantes críticas no melhor estilo "falem mal, mas falem
de mim", ou talvez um pouco Luciana Gimenez, a burra, mas gostosa.
Seria esse misto de merda com boa vontade...
pergunta
da próxima semana:
"Qual
será o seu epitáfio?"
Escreva:
[email protected].
As respostas mais inusitadas, pungentes e/ou embaraçosas serão
publicadas na próxima edição.
Como quem escolhe
feijões
Separo amor e
neurose
Depois te convido
pra jantar.
Tudo, tudo porque a vida se tornou comum. Ou menos que isso, ou outra
palavra mais entediante do que "tediosa", enfim, tudo isso,
e que às vezes o levava a dizer a frase "O mundo não é o melhor
lugar que existe para se viver", ou coisa assim - ou seria "não
é um lugar legal"?
- Você tem uma pinta bonita aqui no pescoço - ele disse, diante da
estranheza dela, quem era esse que ficava olhando-a, ela que estava
tão infeliz? Não, não olhe para os infelizes, eles têm vergonha do
seu estado indiferente e banal. Mas ele olhava diferente.
- Quer uma bala? Essa é daquelas fortes, heim?
Ela só olhava, recusando com a cabeça. No Metrô tem cada maluco, ela
pensou, mas esse até que era simpático, bonito, branco, ocidental,
bem vestido, todas essas coisas que fazem a gente perder o medo do
nosso semelhante. Principalmente da parte dela, arquivista cansada,
aos 40 anos, separada e sem filhos, sabendo que a vida acabou ficando
isso mesmo, tudo parou, não dá mais para sonhar - férias de 12 em
12 meses, o Natal, a família, o Carnaval e está bom assim, pouca coisa
muda. E de vez em quando comprar o último CD do Roberto.
"Próxima estação, Uruguaiana, desembarque pelo lado direito,
atenção
para o vão entre o trem e a plataforma".
- Você vai saltar aqui no Centro? A gente podia tomar um sorvete.
Ela lembrou que devia ter uns dez anos que ela não tomava um sorvete. Talvez
porque tivesse tirado férias no inverno, e aí perdeu a vontade, o
frio a intimidou - como tudo, no mais. Tinha sido um dia quente de
verão no Rio de Janeiro, ela bem que sentiu vontade, mas ainda estava
com medo do rapaz.
- Por que você não fala nada?
Ela sorriu, pensando em dizer algo, e com o sorriso acabou dizendo
muita coisa, no fundo a vida tinha uma finalidade ali, naquele momento.
O sorriso de uma mulher para um homem, no final acabava tudo em líquidos,
gozo, ejaculação, mas se o caminho fosse o mais tortuoso - diria romântico
- a dor da racionalidade vital seria
superada. Ela sorriu, e ele também.
- Me dá um beijo?
Ele estava ousado, mas era assim que se sonhava. Ela, triste, chamou
a atenção dele, que viajava em pé, tinha entrado na estação Afonso
Pena. Começou a olhar pelo vagão, viu diversos tipos, homens rudes,
rapazes simples, negros com roupas de oficinas, senhoras idosas, e
de repente a viu, com uma sacola de loja na mão, onde levava suas
coisas e pastas, e uma bolsa na outra, e no rosto apenas uma desesperança
sem alarme, um sentimento mais neutro ainda que o conformismo. Era
aquilo mesmo, seu emprego, sua casinha, a TV, a novela. E se fosse
no século retrasado, quando não tinha TV? Seria o que? Ela não pensava
nisso, tudo está bem diante da TV.
- Ah, vai? Dá um beijo?
O hálito do rapaz era fresco, talvez por causa da bala. Seus olhos
eram castanhos - há muito tempo ela não via os olhos de um homem assim
tão de perto. Ela não sabe se por causa dos olhos, mas sentiu vontade
de trepar com ele, abrir as pernas e deixar ele invadir, dominar,
dizer palavras sujas. Com todo esse pensamento, sua calcinha ficou
molhada.
"Próxima estação, Flamengo, desembarque pelo lado direito".
- Fica com meu telefone?
Ela até concordou, ele anotou o telefone no papel da bala, ela guardou.
Antes de saltar no Flamengo, ele foi mais ousado e deu um beijo no
pescoço dela, perto da pinta. Ela fez uma cara de desagrado, não gostou
dele ter roubado um beijo.
Naquela noite, ela ficou olhando para o papel em cima da mesa solitária
da sala. Nem ligou a televisão. Se masturbou como há muito não tinha
coragem de fazer, e foi dormir.
Quando acordou, não achou o papel com o telefone do rapaz. Tudo bem,
pensou. A vida é essa mesmo, meu emprego, minha tv, minha casinha.
Olhou para o relógio. Era domingo e não tinha Metrô.
flash
contemporâneo número 1
Você não sabe, mas tudo começou em 1983.
O
Secretário das Finanças do Município mandou o seu clone também.
Ora, era apenas mais uma festa imbecil.
Assim,
em pouco tempo as festas estavam repletas de clones e um original
era logo notado. E expulso.
Uma
cidade nova foi criada ao lado da cidade velha e clone virou sinônimo
de novo e original sinônimo de velho.
Houve
revoluções silenciosas e os clones aos poucos foram tomando a
cidade velha.
Caso
você veja alguém com a sua cara, fuja. Você está sendo procurado.
r
á p i d a s r a s t e i r a s
"Droga
pior que a maconha é a hipocrisia".
(OTTO,
músico pernambucano, resumindo em poucas palavras o dispensável
imbróglio causado pela demissão de Soninha, ex-apresentadora da
TV Cultura, por causa de suas declarações pró-cannabis à revista
Época.)
"O time
que quiser jogar com beleza tem que entrar em campo com um pavão".
(MARCELINHO CARIOCA, em um arroubo puxa-saquista do
estilo Felipão de futebol, necessitando assistir urgentemente "Amarcord",
filme de Fellini, pra ver aprende algo a respeito de pavões, imaginação
e vida.)
Primeiro
foi o sol. Aquela luz que era luz tamanha que olho nenhum
suportava, só alma. Aquele calor que obrigava meu rosto a
ficar vermelho sem que eu tivesse vergonha, a menor vergonha
de nada. Um calor que me despia de roupa, de medo. Que desidratava
todas as minhas inseguranças.
Depois foram as nuvens. Cachorros, gatos, montanhas, amantes.
Todos flutuando na minha frente, contando histórias,
devassando suas vidas, convidando a novas jornadas. Aquele
monte de ar palpável, de algodão voador, de escultura de anjo
olhava pra mim e me provava que o céu era possível.
Logo após foi o vento. Ah, o vento. Carinho, prazer, abraço,
força. Tudo num só elemento. Eu sorria e ele me envolvia.
Eu fechava os olhos e ele soprava mais forte meu rosto (talvez
para eu não esquecer que ele estava por lá). Eu abria os braços
e ele mexia nos meus cabelos. Brincava com meus cachos, criava
nós que chegavam em minha cabeça e que me deixavam quase sem
sentido. Naquele instante o vento foi homem. Naquele instante
o vento foi meu.
Daí veio o chão.
Não quero riqueza, fama, glória ou sabedoria. Dispenso as honrarias, os
aplausos e os prêmios. Não cobiço a modelo mais curvilínea e não invejo
o luminar da ciência. Não pretendo escrever Em Busca do Tempo Perdido nem
Memórias Póstumas de Brás Cubas. Jamais pensei em receber salário em dólar
ou fazer parte da alta diretoria. Poder? Nunca me atraiu. E se um dia me
abrirem a porta do Céu, sei que terá sido após muitos séculos de Purgatório.
Só invejo uma pessoa neste mundo: o velho que ia de pijama ao bar.
Não sei onde ele está, nunca mais o vi. Mas, para mim, o velho que ia de
pijama ao bar representa o único modelo de felicidade completa.
Ir ao bar é bom. Colocar pijama é bom. Mas, por motivos ainda misteriosos,
instituíram que é condenável ir de pijama ao bar. O velho, porém, estava
acima desses regulamentos estúpidos.
Morava na pensão ao lado do boteco. Provavelmente era sozinho na vida. Às
seis horas da tarde, abria a porta da pensão, dava quinze passos e sentava-se
a uma das mesas de metal do bar (na verdade, um estabelecimento muito simples,
daqueles que têm vidros de tremoço e quibes de anteontem na estufa).
De pijama, pedia uma cerveja, que lhe era prontamente servida. Bebia em
paz e solidão. Não o incomodavam, e ele não incomodava ninguém. Depois de
algumas cervas, voltava para a pensão.
O pijama era velho como o velho. De flanela, com bolinhas azuis: uma segunda
pele. Estava sempre limpo, o pijama - um fato estranho; desconfio que o
velho tivesse dois ou três modelos iguais. Ah, e também havia as sandálias
Franciscanas, com uma quilometragem que possivelmente superava o Trópico
de Capricórnio.
A tarde caía; as pessoas deixavam o trabalho, passavam pelo bar. No canto,
à sua mesa predileta, o velho bebia o líquido amarelo e borbulhante. Às
vezes, novos clientes o olhavam com estranheza. Mas logo se acostumavam.
Nós estávamos lá,
vestidos e munidos com a roupa da vida cotidiana: camisas, calças, sapatos,
cintos, cuecas, blusas, lenços, carteiras, celulares, pastas, agendas. Falávamos
de tanta coisa: trabalho, política, esporte, religião, sexo, música, literatura,
piadas.
O velho, não. Jamais ouvi uma palavra de sua boca. Ele vivia no silêncio
completo de um tempo que não era tempo: sua vida era sono, espuma, solidão
e memória. Um leve sorriso nos lábios (e me diga: qual é o sorriso que não
vem dos lábios?). Uma certeza serena do mais simples. O conhecimento do
elementar.
Um dia, venderam o bar, que passou por uma reforma e modernizou-se. Na mesma
época, a pensão fechou as portas. Nunca mais tive notícias do velho, do
seu pijama e das sandálias Franciscanas.
É por isso que eu não quero sair daqui, meus amigos. Tenho medo. Não quero
sair desta casa, desta cidade, deste pijama, deste boteco de palavras, deste
silêncio. Recuso-me a sair desta crônica.
Eis a minha única ambição: ficar, para não desaparecer.
Num
barco à deriva
um
homem divaga
os
rumos da vida.
No
horizonte
uma
questão vertical
há
mais além?
O morcego
acorda
e
vê de ponta-cabeça
o
sentido enfim.
brinquedos
homera cristalli [email protected]
Na rua onde eu moro as pessoas se conhecem, sabem quem vai pra cama com
o marido de quem, e quem perdeu o emprego recentemente. Minha mãe está
entre os que perderam o emprego, por isso lá em casa o clima não está
dos melhores. Eu saio do colégio e vou jogar bola na frente da casa do
seu Jonas. Só volto à noite, e minha mãe está contando pra vizinha, pela
enésima vez, do dia em que meu pai sofreu aquele acidente fatal na obra
onde trabalhava.
Aqui no bairro
não passam muitos carros, ninguém tem dinheiro para comprar um, então tem
bastante espaço livre e as ruas são nossos campos de futebol. A frente da
casa do seu Jonas é o melhor lugar porque ele nunca nos incomoda, mesmo quando
a bola cai na varanda dele. Ele é legal, ficou viúvo, como a mãe, mas eu acho
que deve ter um bom emprego porque a casa dele é a melhor da vizinhança. Uma
vez o seu Jonas me chamou pra dentro da casa dele, para me mostrar a coleção
de aviões em miniatura que ele tem. Foi a coisa mais linda que eu já vi, por
isso não resisti e coloquei um na mochila, para levar pra casa.
Bom, o fato é que eu não consegui tirar da cabeça a culpa por
ter roubado o aviãozinho e decidi devolver. Bati na porta da casa do seu Jonas,
mas ninguém abriu. Então eu empurrei de leve e ví que a porta estava aberta,
entrei. Recoloquei o avião no lugar e resolvi tomar um copo d’agua na cozinha.
Foi então que eu vi o pé, saindo debaixo do fogão, com manchas roxas e azuis.
Me abaixei e toquei no dedão. Estava grudento, por causa do sangue.
- Você não tem medo? - meu coração gelou quando ouvi a voz
do seu Jonas. Me virei e ví ele parado na porta da cozinha - Você não tem
medo? - repetiu ele.
- Não. - respondi.
- Você não gostaria de saber como isto veio parar aqui? - perguntou.
- Não - repeti.
- Então... se você me ajudar eu compro uma bicicleta para você
- falou seu Jonas.
Minha mãe está desempregada e eu queria uma bicicleta, então
eu cortei a perna, que estava embaixo do fogão, em três partes; primeiro com
um facão e depois com uma serra, quando o facão perdeu o fio. Coloquei os
pedaços num saco de lixo, botei na mochila e enterrei no mato atrás da escola.
Como uma pessoa não tem uma perna só, e também tem braços e
todo o resto, eu passei todas as tardes daquela semana na casa do seu Jonas,
trabalhando com a serra.
Agora tenho uma bicicleta, e os aviões em miniatura também
são meus. Acho que logo vou ganhar um vídeo game, porque eu vi uns pingos
de sangue na varanda da casa do seu Jonas.
(publicado originalmente no site Não)
n
a v e g a r i m p r e c i s o
no mundo
das tubaínas
Os especiais da Revista
2K são sempre muito bons, mas este supera todas as expectativas. Trata-se
de uma reportagem completíssima sobre tubaínas: aqueles refrigerantes
adocicados e baratos que o Seu Zé do mercado vende pra gente a
fiado. Você já tomou Arco-Íris, Vedete, Celina ou Soberana? Já experimentou
Jesus, o guaraná mais vendido no Maranhão, e que tem coloração ROSA? Ah,
pensar que você achava que Fanta Uva era o refrigerante mais exótico
do mundo...
eu acho
que vi um gatinho
A página é simples,
mas vale pelo inusitado: uma compilação de links estranhos sobre gatos.
Como cozinhar um gato, o gato morto-vivo de Schrödinger, fotos de mulheres
nuas com gatos, uma teoria da estética em pinturas de gatos, imagens de
gatos mumificados, a lenda urbana da mulher que tentou secar seu gato usando
o microondas... Depois dessas, Bonsai Kitten vira pinto.
(Um roteiro para comercial
de luvas de limpeza destinado a uma sociedade sem hipocrisia. Se a sinceridade
fosse presente em nossas vidas, mais ou menos assim seriam os comerciais.)
Um homem grisalho,
com luvas amarelas reluzentes e com olhar transbordante de sabedoria que só
pode ser granjeada ao longo de anos de vivência:
- Do alto de meus muitos
crepúsculos, olho ao redor e só vejo inimigos. Os que não são declarados são
os mais poderosos, suas adagas estão untadas com o ácido do desprezo e atingem
com impacto irresistível os ossos de meus esforços. Torno-me um guerreiro
cada vez mais solicitado pelos ardores dessa chama fétida que grita meu nome.
Olho em volta e só posso ver inimigos. Todos querem minha derrocada, todos
lutam por assistir minha queda dos camarotes da falsidade e da...
Chega homem com uniforme
azul, chapéu com brasão de time de futebol. Traz escrito "encarregado
de limpeza" nas costas. O foco da câmera aumenta e mostra o ambiente
do encontro, banheiro aparentemente de hotel ou estabelecimento grande, banheiro
público mas muito bem cuidado.
- Tá caducando mesmo
né velho? Fale menos para si e limpe direito essa privada, tem jeito?
Aparece tela negra
com letreiro vermelho, letras médias no alto da tela com a marca da luva.
Ao centro, em letras maiores a seguinte frase:
"porque dignididade
não é sinônimo de higiene"
Letras miúdas na base
da tela:
"Qualquer semelhança
é mera coincidência. O uso de luvas [nome da luva] por pessoas alergênicas
deve ser realizado sob orientação médica".
É
tudo que preciso para fazer uma festa com as lembranças que quero reconstruir.
Vamos começar por partes.
Primeiro, solte-se das amarras do que hoje é considerado
"cool, fashion, in, up, indie, brit-pop, yada, yada, yada"...
Forget it. Desencanai-vos. Esses conceitos e rótulos são mais voláteis do
que os índices da Bovespa, muito menos duradoures do que os romances da
loira Adriane Galisteu e mais imprevisíveis do que menstruação de adolescente.
Depois, dê-se ao prazer, pelo simples e mero prazer
de se divertir descompromissadamente, dançando Twist and Shout enquanto
você faz aquela faxina no seu quarto; leia um livro light e engraçado
(se você ainda não leu "O Diário de Bridget Jones" ou qualquer
livro da coleção Harry Potter, não perca mais tempo); alugue uma fita
de comédia ou romance com final feliz (sugestão: Máfia no Divã ou Corações
Apaixonados, respectivamente); jogue palavras cruzadas do jornal; assista
Friends; capriche no visual e saia para dançar em pleno dia-de-semana...
Ouça uma música que um amigo indicou e você REALMENTE
GOSTOU. Não se apegue a modismos. Não tenha vergonha de gostar de Verônica
Sabino (quedé a mulé) ou de babas made in USA como I'll be there e You've
got a friend.
Faça
declarações de amor inusitadas para pessoas potencialmente apaixonantes.
Sacanaie
os spammers, conceda-se uma noite fazendo arte entrando no site
www.spamdevil.com.
Faça swatshia yoga ou tai-chi-chuan (este último
é de graça no Parque da Aclimação e acho que no Ibirapuera também, aqui
em Sampa).
Aprenda a respirar corretamente (para os iniciantes:
ao inspirar, coloque de leve a mão esquerda sobre o umbigo e sinta-o crescer
de ar; depois, expirando, sinta seu umbigo contraindo) - isto melhora
a oxigenação e, consequentemente, o bom funcionamento de todos os órgãos.
Não
se deixe abater porque os "entendidos" te acham parte da X-Generation.
Balelas. Ligue mais pro seu perfume, para seus talentos e convicções.
Deixe de abrir seu outlook por um dia inteirinho.
E só acesse a Internet para visitar os sites do Millôr.
Faça
orações e rezas como se você estivesse batendo um plá descompromissado
com Deus numa mesinha de bar ao ar livre.
Não, tudo isso não faz parte de um livro de auto-ajuda,
sobretudo quando escrito como uma pessoa como eu. Mas com um pouco de
boa vontade e FÉ costuma dar certo.
f
a l a q u e e u t e e
s c u t o
a seção de cartas mais versátil da paróquia: também somos
mural de recados, correio elegante, lavamos e passamos. participe você também:
[email protected].
"e aí? Só assinar
e pronto? rs
Não precisa de ficha
completa ou algo parecido???
Nome do cachorro, do
papagaio... não quer saber quantas TVs eu tenho em casa? Então firmeza..."
Carol
inagaki responde:
para assinar o Spam Zine não é necessária prática nem tampouco habilidade.
Basta visitar http://www.spamzine.net,
preencher o formulário da página, agitar antes de abrir e prontim: cá estamos
em seu mailbox. Agora, se você quiser nos informar seu número de cartão de
crédito e o telefone da Marina Person, não se faça de rogada, ok? Beijão procê
e juízo (ma non troppo).
"Just for your
information: não sei como fui parar na página; gostei; assino... o detalhe
é que eu moro em Barcelona (Espanha); na internet não há distância (¡¡Bien!!)
Pili Benito
inagaki responde:
quem tem boca vai a Roma, quem tem mouse vem parar aqui. Só espero que
você não tenha digitado no Altavista termos de pesquisa como "gisele
bündchen pelada" ou "tourist guy" para chegar até o Spam. Seja
bem-vindo, e... hasta la vista, baby!
c
r é d i t o s f i n a i s
charadas brasileiros
(editores)
new kids on
the block (estreantes desta edição)
friends (staff
de colaboradores)
gente inocente
(special guest stars)
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Spam
Zine - fanzine por e-mail
>>>
p.
s.
lau:
Especialmente aos amigos de João Pessoa: alguns de vocês já sabem, participei
com alguns poemas na Agenda da Tribo 2002, e a editora costuma pagar os direitos
autorais com as próprias agendas. Bueno... a parte que me toca, se vendida
ao preço de R$ 20,00 a unidade, pode financiar o meu livro (SEM MEIAS PALAVRAS). Por
sugestão do meu amigo e editor, o poeta Antônio Mariano, proponho que a pessoa
que comprar uma agenda ganhe um bônus para receber um exemplar do livro quando
publicado. Se não quiser o livro, pode comprar a agenda por R$ 15,00. O que
eu estou pedindo? Bem, eu quero ter noção da viabilidade desse projeto. Por
isso, queria que, se possível, você informasse para meu e-mail, [email protected] a
quantas pessoas, por indicação sua (compradores em potencial) eu poderia oferecer
a agenda. Esse recado não vale para pessoas de outras cidades, porque as agendas
são pesadas e as despesas com o Correio fariam com que as mesmas se tornassem
demasiadamente caras. Brigadão! Muita poesia e muita leveza na alma procês!
orlando:
quando não existe amor, tudo é provisório.
inagaki: concordo,
porém... Tudo (inclusive a vida) é provisório neste mundo.
orlando:
Sim, mas a gente não pode viver com a sensação de que a espada de Dâmocles
está prestes a cair em cima da nossa cabeça. Mesmo que esteja - e está - precisamos
dar um jeito de ignorá-la.