n e s t a  e d i ç ã o:
 
couro e frio auto-exílio muletas famosas assumindo personagens infinitas coisas bordeaux e chianti jesus cristo no berço desabitação anyway auto-engano recuerdos 
 
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editorial
suzi hong  [email protected]
 
Nunca foi tão difícil escrever como hoje. Masoquista, eu. E sabia, logo quando a idéia surgiu para mim, como uma necessidade urgente, que trabalhar esta edição do Spam Zine seria algo difícil e desgastante.

O tempo não poderia estar pior: nublado, abafado, arrastado. O ato de escrever, quase sempre prazeroso e por vezes catártico, aparece-me hoje como nudez indesejada, uma obrigação penosa. Porque meus dedos estão cansados e minha insegurança perante os leitores do Spam Zine e de quem mais for ler esta edição pretensiosa (sim, pretensiosa porque desde o início sabia-me incapaz de lidar com seu tema de forma imparcial, ou por assim dizer, "profissional") me causa tremores. E acendo um cigarro atrás do outro.

Por que este medo de se expor? Por que a violação do meu direito à catarse?

Porque hoje é um daqueles raros dias em que me vejo desprovida da principal muleta em que me apóio para não chegar à loucura. Vejo-me incapaz de lidar com as palavras sem associá-las a todas as minhas horríveis dores que me dominam sem que eu nada possa fazer. Lembrar delas remete-me a vivê-las novamente. Vivê-las novamente traz um acometimento de compaixão imbecil por mim mesma, ao mesmo tempo em que todas as dores embaralhadas em mim me reduzem ao saco de pancadas que arrasto vida afora.

E por assim dizer, numa tentativa patética de não mais vasculhar os entremeios e pontos de todas as marcas que a vida nos dá sem direito de recusas, socorro a mim mesma buscando conforto nas desconfortáveis e rudimentares muletas (nada anatômicas) que acabei me dando para não pirar.

E acendo mais um cigarro.
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Um turning point: minha crença em Deus mudou. Não acredito mais na sua perfeição, grandeza, onisciência, e blá blá blá. Por que se fomos criados à Sua imagem e semelhança, devo-lhes dizer: Ele é imperfeito, tão imperfeito quanto nós. Tão impotente como nós somos. Criar-nos foi sua grande sacada para Ele próprio preencher seus espaços em branco quando tudo era nada e tão somente o verbo. Ver-nos cheios de defeitos, afoitos em buscar alguma razão para viver (perdoem-me o jargão brega, como lhes disse, hoje desaprendi a escrever) como formigas desnorteadas ao verem o formigueiro sendo impiedosamente destruído pela chuva, traz a Ele uma certa paz - a da certeza de que Ele está melhor do que nós. A da certeza de que vamos, ingênuos e tolos, gritar por socorro: Pai!

Ou incorrer em pequenos delitos, cuja existência Ele próprio consente, pois sabe, em sua onisciência e sabedoria distorcidas, que vamos precisar deles para caminhar. Caminhar para algum lugar. E em sua arrogância e crueldade divina, nem sequer se digna de nos revelar para onde caminhamos.

Pai, perdoa-me porque pequei e não gosto mais de Ti tanto quanto antes. Não há amor incondicional, não há tropeço sem hematoma, não há passos sem muletas. Somos todos, afinal, grandes colchas de retalhos que necessitam constantemente de arremedos. Tudo isso só para nos mantermos inteiros, só por causa deste único e inexorável motivo.

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A edição de hoje está densa. Arrisco dizer que é uma das edições mais indigestas do Spam Zine. Se as letras pesarem sobre vocês, respirem fundo, tomem um copo d'água (ou de whisky) e parem se for necessário. Apóiem-se onde puderem se, assim como eu, tiverem que lembrar de suas próprias dores e problemas. Tratem com carinho das suas muletas emocionais, nem sempre tão visíveis e óbvias, como percebemos nos belos textos que vêm a seguir. Cuidem bem delas. Elas merecem, sempre.

(ilustração da página: Henrick Manreza)

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as muletas da vida...
eduardo ferreira-santos*  [email protected]
 
Algo que sempre me fez parar para pensar foi a diferença injusta e ingrata que se faz entre um problema claramente físico e um supostamente psíquico.

Quando as pessoas vêem uma outra com uma perna quebrada, engessada e obrigada a usar uma muleta ou cadeira de rodas, agem na mais completa naturalidade, se não solidariedade, e compreendem de forma absolutamente normal que aquele outro, ferido, precisa se locomover e que, para tal, nada mais natural que se utilize de artefatos (ou artifícios) que o auxiliem em sua jornada.

Já, quando a questão envolve o desconhecido e assustador plano do psíquico, há, de modo geral, entre as pessoas, um certo e aberto desconforto em relação à própria compreensão do fenômeno e dos meios para a sua resolução.

Se alguém com câncer toma morfina para amenizar sua dor, todos aceitam e apóiam... se alguém ansioso toma ansiolítico para amenizar sua dor, todos se revoltam e insistem para que a pessoa deveria "andar pelas próprias pernas". Por que isto?

Terá mais pernas o deprimido ou o psicótico do que o politraumatizado ou o canceroso? Será menos dolorosa a dor da alma do que a dor do corpo? E por quê? Será pela sua imprevisibilidade e impossibilidade concreta de palpação?

Ou por nossa absoluta impotência ou, pior, pela nossa prepotência e onipotência frustrada e projetada no outro que (acreditando-se voluntariamente) se deixa abater por um processo psíquico.

A própria expressão "deixar-se abater" não encontra eco, por exemplo, no "deixar-se atropelar", a não ser que se associe a algum transtorno na esfera psíquica e, aí sim, surge a raiva que acompanha o ansiolítico, acompanhando a muleta...

E quando esta "muleta" então, não é uma medicação, mas o conforto de uma relação de encontro, solidariedade e emocionalmente corretiva?

Causa pavor e profundo mal-estar em quem se defronta com o outro que busca em si a muleta que o faz conseguir andar.

Reconheço que, para o leigo, e mesmo para quem supostamente tenha algum  conhecimento nesta área, ter que suportar (em todos os seus sentidos) a dor da alma é uma tarefa algo hercúlea e que exige mais do que força física, sobretudo força moral e espiritual (entenda-se este espiritual até mesmo como a simples transcendência intelectual que distingue um bom livro de um perfume francês).

Assim, continuo pasmo e incrédulo quando percebo seres humanos incapazes de reconhecer a necessidade de ajuda que outros seres humanos (talvez até mais humanos que os primeiros) têm de uma ajuda externa para seu penoso processo de viver.
A Medicina moderna já encontra explicações lógicas e bioquimicamente palpáveis para comparar uma depressão a um, digamos, enfisema pulmonar, mas ainda são muito poucos os que sabem ou acreditam nisto.

Continuam a ver àqueles que têm suas almas feridas como seres de "segunda classe", pessoas "fracas" em sua índole e não sabem reconhecer a si mesmas refletidas escandalosamente na dor de quem, paradoxalmente de forma corajosa, a manifesta.

Mesmo que hoje, neste momento, a força e a saúde estejam aparentemente com quem não precisa de muletas, nada garante o amanhã. E isto sempre me faz lembrar de uma antiga música sertaneja (bem anterior aos "ai, ai, ai, oi, oi, oi" de hoje em dia), que fala de um garoto que corre atrás de seu velho avô carregando um pedaço de couro (para se cobrir no frio das madrugadas), expulso de casa pelo pai do menino. O menino pede ao velho um pedaço deste couro. Quando o pai, surpreso, pergunta a ele por que pegou o pedaço de couro do avô, ingenuamente o menino lhe responde que, talvez no futuro, ele, seu pai, também não se dê bem com sua futura nora, e ele, menino, se veja obrigado a mandar o pai embora. Pensando em tal possibildade, o menino, portanto, já teria o pedaço de couro que o abrigaria do frio...

Isso sempre me faz chorar...

[*nota da editora manca: Eduardo Ferreira-Santos é psiquiatra, psicoterapeuta, mestre em psicologia clínica, e médico supervisor no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP]
 
 
quero  uma  carta  somente
danilo russo de andrade  [email protected]
 
morde com força este pedaço de carne, este naco de pão
bebe feroz esta taça de vinho, este copo de água, esta gota de suor
corre e não olhe pra trás, não volte, saia sem pedir permissão
vista logo esta bermuda e calce fácil este par de chinelos
o todo mais está na mochila que eu te preparei e nas muletas que lhe esculpi
 
não lamente por aqueles imbecis que você vai deixar
não cuide de mais ninguém, não abrace quem tiver saudade
não se iluda, não faça planos, não banque  o culto
                                                             o macho
                                                             o indie
                                                             o nick hornby
                                                             a bridget jones
                                                             o eremita cool
 
toma vergonha na cara e some
seu rumo eu já tracei e é longo pra que nunca mais volte
pare se cansar, descanse e pense em mim e respire por estar indo
para um lugar que nem sabe como é, apenas um lugar que eu escolhi
 
não morra no meio do caminho
morrer é uma forma covarde de dizer adeus
mas covarde que é, sei que irá flertar com tanatos
não ceda, não morra, lembre de tudo que ensinei
continue a andar ainda que fodido, com fome e  os joelhos inchados
                                                                   os ombros pesados
                                                                   o sangue espesso
                                                                   os pés em chamas
 
e console-se por saber que a alma está leve e a mente quase desabitada
 
quando chegar a seu destino me escreva dizendo
como é este lugar que eu lhe escolhi para ficar
como é envelhecer sozinho sem nada ter deixado como
rastro, resto... só um trajeto que o vento vai apagar
como é ser esquecido como é se esquecer como é viver longe de mim
 
e depois, não me escreva, não me escreva nunca mais, danilo.
 
 
muletas famosas - primeiro par
cazuza
 
"Tem gente que recebe Deus quando canta. Tem gente que canta procurando Deus. E eu sou assim com minha voz desafinada. Peço a Deus que me perdoe no camarim. Eu sou assim, canto pra me mostrar... de besta, de besta". (em Quando estiver cantando).
 
 
manual
paulo salles*  [email protected]
 
As três maiores questões da humanidade: quem somos, de onde viemos e o que devemos fazer com nossas mãos quando estamos nervosos. Cigarro é sempre um bom começo: a lenta cerimônia de retirá-lo do maço, escolher um canto da boca onde encaixá-lo, acendê-lo com aquele Zippo clássico, dar a primeira tragada, expelir a fumaça de uma das 52 maneiras do seu repertório - tudo isso, é claro, sem fazer pose demais. "Fumar es un placer genial, sensual"; fumando você mantém o charme indispensável em qualquer dúvida e, principalmente, as mãos ocupadas por algum tempo (não muito: cinco minutos é o tempo máximo de duração de um cigarro numa situação tensa).

Vários cigarros depois, vem o subterfúgio favorito, de todos os que a vida lhe ensinou: literatura. Existe sempre, é claro, a possibilidade de você se deparar com uma doutoranda em poesia russa, mas, fora isso (que, aliás, nunca aconteceu na prática), quase todo mundo que você encontra entende menos do assunto do que você. Cuidadosamente, você introduz alguns dos temas favoritos, quando a finalidade é impressionar: aquelas peças curtas, que "ninguém" conhece, de Samuel Beckett, um pouco do simbolismo da Divina Comédia, trechos dos diários de Kafka, a diferença entre o haikai e o senryu. E arremata com alguma das muitas frases engraçadas que você provavelmente leu no Paulo Francis ou no Ivan Lessa. Um papo já exercitado tantas vezes que se tornou tedioso.

Falar do seu trabalho nunca vale a pena, principalmente quando o seu emprego não passa de um ganha-pão e de um erro de percurso vocacional; quando lhe perguntam o que você "faz", sua resposta vem acompanhada de um sentimento de estar mentindo. Mas nada pode ser pior do que, sempre que a intimidade fica um pouco maior, chamar a si mesmo de "escritor". Como assim, "escritor"? Sem livro publicado? (Ah, a Grande Tara do Livro Publicado! Ah, o Fetiche do Nome na Capa! Ah, as multidões de escritores semiprofissionais que se masturbam todas as noites imaginando um convite da Companhia das Letras!) Sem nada além de meia dúzia de artigos na Internet?

É neste momento que você, no desespero, começa a bancar o Artista Piradão. Você, é claro, não tem a menor pinta de Artista Piradão, mas ainda assim a conversa pode dar certo, se você tiver preparado o terreno (e bebido o suficiente). Você pode fazer com que acreditem que o seu total fracasso financeiro não se deve à incompetência, mas àquele desprezo típico de quem se interessa pelas superiores coisas do espírito. Ou que a mediocridade de sua produção literária, até o momento, se explica pelo fato de que você ainda está "aprendendo o ofício" para vôos maiores, no futuro. Se tudo der errado, sobra a possibilidade de fechar a noite declamando, para você mesmo, um dos monólogos de Shakespeare que você conhece de cor. As palavras ressoam como os três acordes de abertura uma sinfonia dedicada à sua própria insignificância: "Tomorrow, and tomorrow, and tomorrow". E você entende, afinal, que seu ego em pedaços nada importa. Pode funcionar, pode não funcionar. Mas um segredo você deve manter a todo custo: o fato de que o personagem que você assumiu é, na verdade, o que você sempre desejou ser, mas nunca teve coragem. Ou estava ocupado demais com o que fazer com suas mãos.

[*nota da editora engessada: Paulo Salles, é colunista do Digestivo Cultural, revista eletrônica sobre música, cinema, literatura e outras guloseimas. Visite djá: http://www.digestivocultural.com]
 
 
(sem)motivos
clarice m.  [email protected]
 
Quando tirei minha primeira nota baixa, despejei minha indignação em um diário.
Quando eu tinha 11 anos e o menino dos olhos meus pediu minha melhor amiga em namoro, inventei minha primeira história que não terminava com "e eles viveram felizes para sempre".
Quando eu dei meu horrível primeiro beijo fiz uma poesia.
Quando eu perdi a virgindade e o cara me trocou por uma braquela, baixinha, com cabelos lisos, eu fiz uma "Carta-pedido a seja lá quem for pela exterminação dos canalhas".
Quando minha avó morreu, criei versinhos que ninguém leu.
Quando eu vi minha mãe chorando pela primeira vez, fiz um poema desesperado.
Quando eu achei que meu pai iria embora, escrevi um desabafo com letras trêmulas e manchado por lágrimas.
Quando eu senti minha melhor amiga cada vez mais longe, escrevi e-mails que nunca foram enviados.
Quando eu entrei em depressão eu chorava por não conseguir colocar as palavras no papel.
Quando eu percebi que tudo desabava ao meu redor, criei um blog, porque descobri também que gostaria de ser lida.
Não que as palavras sejam boas e as frases harmoniosas. Nunca tive o dom da escrita, mas até isso me serviu como mais um motivo para escrever.
Eu escrevo por sentir conforto em ver traços da caneta formando idéias, porque nem sempre uma imagem vale mais do que mil palavras.
Escrevo porque preciso, nem que seja para riscar logo depois. Porque sou uma desesperada e não quero perder os pensamentos.
Escrevo porque não há nada mais que me complete.
Porque meu coração não é maior que o mundo e meus sentimentos mal cabem em mim.
É onde me apóio, sem me preocupar se estou incomodando.
É como eu me mostro, como eu me solto. É como eu sou cada vez mais eu.
Porque também preciso de todos.
Por infinitas coisas.
Porque sim.
 
 
muletas famosas - segundo par 
paulo leminski
 
"tenho andado fraco
 
levanto a mão
é uma mão de macaco
 
tenho só
lembrando que sou pó
 
tenho andado tanto
diabo querendo ser santo
 
tenho andado cheio
o copo pelo meio
 
tenho andado sem pai
 
yo no creo en caminos
pero que los hay
                        hay"
 
 
encontro
fabio danesi rossi*  [email protected]
 
Era sempre assim. Eles entravam no carro e ele dizia:
- Dessa vez você escolhe. Onde quer jantar?
 
Ela respondia:
- Que tipo de comida você quer comer?
 
Ele retrucava:
- Exijo uma resposta de resposta. Não vale responder pergunta com pergunta.
 
Ela sorrindo perguntava:
- Por quê?
 
Era sempre assim. Pelo menos dez minutos, o carro parado em frente a casa dela, a discussão de onde comeriam. Daí ele ligava o carro e dizia:
- Vamos comer uma pizza então. Vou te levar no...
 
Ela interrompia:
- Você já foi no XXX?
 
Ele respondia:
- Não, mas lá não tem pizza.
 
Ela perguntava:
- Você gostaria de ir lá?
 
Ele acendia um cigarro e tocava o carro pro restaurante sugerido:
- Por que não?
 
E ela brincava:
- Não vale responder pergunta com pergunta.
 
Era sempre assim, mas nesse dia havia uma diferença fundamental. Era a primeira vez que saiam a sós desde a volta dela. Ela morara um ano em Londres. Passaria um tempo em São Paulo. Talvez um mês. Talvez três. Ela não sabia ainda. Tinha que fazer uma pesquisa por aqui, não podia prever o tempo que duraria. Mas uma coisa estava definida: ela voltaria pra Londres assim que a pesquisa terminasse.
 
Ele parava o carro de modo que a porta do lado dela sempre dava para uma cesta de lixo. Ou uma árvore. Ou um poste. Era sempre assim. Ele tinha que tirar o carro da vaga para que ela conseguisse descer, e estacionar de novo. Por algum motivo, era sempre assim.
 
No restaurante discutiam em que mesa sentar. Isso demorava uns dois minutos. Depois o que iriam beber. Vamos começar com uísque? Cerveja? Vinho? Tinto ou branco? Talvez um espumante caia bem. Lambrusco,  prosecco ou champagne?
 
Isso tomava o tempo de mais um cigarro. Ele acabava decidindo pelo uísque. Ela dizia:
- Eu vou pedir uma taça de vinho. Você sugere algum?
 
Ele desistia do uísque e pedia uma garrafa de Chianti. Ou de Bordeaux. Desta vez foi Chianti.
 
Daí vinha o silêncio. Até o garçom chegar com o vinho, eles não se falavam. Era sempre assim. Ele experimentava o vinho e perguntava:
- Como você está?
 
Ela respondia:
- Bem. E você, como está?
 
Ele dizia:
- Não sei. Essa é uma pergunta difícil.
 
Ela retrucava:
- A resposta é difícil. A pergunta é fácil.
 
Eles riam. Era sempre a mesma conversa, mas eles sempre riam. Começavam a falar sobre amenidades e iam subindo. Iam do "fez um dia bonito, não?" até o impasse Israel/Palestina. 
 
Dois pratos e um vinho e meio depois, eles conversavam sobre eles. Ele dizia que ela estava cada vez mais linda, que ela era a prova que a perfeição se aperfeiçoa. Ela dizia que eram os seus olhos que viam coisas demais. Ele dizia que ela estava cada vez mais charmosa, com movimentos que pareciam ao mesmo tempo naturais e minuciosamente pensados, estudados e repetidos à exaustão. Ela não respondia. Ele dizia que a amava mais do que tudo. Ela dizia que era o seu coração, que sentia demais. Ele retrucava que era racional o seu amor:
 
- Não conheço ninguém mais brilhante. Ninguém mais bonita. Com você tenho tudo. A beleza da Capela Sistina, a densidade de Proust, a variedade de Shakespeare, a ternura e a melancolia de Mozart. Como posso não amá-la? Só uma besta não se apaixona por você. Dizem que Van Gogh nunca vendeu um quadro em vida. A maioria das pessoas não percebe a grandeza quando a vê. Eu percebo. E não posso deixar de amá-la. Seria irracional.
 
Os olhos dela perdiam o brilho. Ficavam tristes. Ela não conseguia mais olhar diretamente para ele. Ele pegava uma de suas mãos e a segurava com força. Ela perguntava se ele queria café. Ele dizia que não e perguntava se ela queria ir. Ela dizia que sim.
A conta chegava e eles discutiam quem ia pagar. Era inevitável. Era sempre assim. Ele sempre acabava pagando, mas desta vez foi ela quem pagou.
Ele tinha que tirar o carro da vaga, para que ela pudesse entrar sem ter que pular o lixo, a árvore ou o poste.
 
Eles iam em silêncio até a casa dela. Ele parava o carro em frente ao portão. Falava algumas bobagens, ela ria, mas uma risada com pitadas de lágrimas. Ele a abraçava e dizia:
 
- Vai. Antes que eu tente beijá-la.
 
Ela sorria, lhe dava um beijo no rosto, abria a porta do carro e ia embora em silêncio. Era sempre assim. Mas desta vez ele perguntou:
 
- Quando nos veremos de novo?
 
Ela respondeu:
- Quem sabe?
 
Ele reclamou:
- Não vale responder pergunta com pergunta.
 
Ela sorriu triste e abriu a porta de casa. Antes de entrar se virou e acenou adeus.
 
[*nota da editora paralítica: Fabio Danesi Rossi, assim como Monsieur Paulo Salles, é colunista do Digestivo Cultural - http://www.digestivocultural.com]
 
 
teoria da evolução
fernando goulart  http://www.mutantesonline.cjb.net
 
Yumi deu um grito surdo e gemeu baixinho quando encontrou Christian desfalecido, pernas e bracinhos em pose de Jesus Cristo no berço. Tinha certeza que um dia isso iria acontecer, avisara Pedro logo no início do namoro, minutos depois da primeira transa. Era sua sina, apesar de bióloga experiente, 10 anos de profissão, era incapaz de manter um ser vivo por mais de uma semana, por isso a genética, células são simples de cuidar, quem sabe história não fosse melhor opção... Felizmente peixes são animais fáceis de esconder, sempre que morriam enterrava seus bettas no vasinho de flores da avó, formando um adubo milagroso, maneira de continuar na cadeia produtiva ao invés de ser apenas parte da estatística. Os cachorros já davam maior trabalho, razão pela qual sempre optou pelos menores, quase ratos, porém de dificuldade ínfima na hora de dar um sumiço nos corpos. O jardim da casa de sua mãe daria um terreno fértil para Stephen King trabalhar, só de porquinhos da índia escreveria um romance, sem final feliz, é claro. Mas chega de divagar, o marido ia chegar em duas horas e em hipótese alguma aceitaria aquilo, não importa o quanto estivesse vaticinado, Yumi tornar-se-ia uma mulher solteira novamente. Pensou no tapete, porém o volume com certeza chamaria a atenção, mesmo que colocasse o pufi por cima. Depois lembrou do DNA do pequenino, congelado na firma, mas realidade não é novela e crescer demora meses. Apelou e fez uma lista mental com as paixões de Pedro, pequenas muletas para o coitado se escorar depois da notícia: musiquinha do Jesus And Mary Chain cantada pela Hope Sandoval; cinema novo; camisa do Palmeiras autografada pelo Edmundo; geléia de mocotó e gibis do Cascão. Por último rezou para Santa Edwiges, empacatou o que conseguiu encontrar numa caixinha e esperou o marido de calcinha preta com rendinha. Ao menos uma boa trepada antes do fim de tudo!
 
 
muletas famosas - terceiro par 
r.e.m.
 
"This one goes out to the one I love
This one goes out to the one I've left behind
A simple prop to occupy my time
This one goes out to the one I love"
 
 
por dentro de mim
isabella benicio  [email protected]
 
Fecho a cortina, não quero sol.
Quero meu quarto nublado, cinza.
Não quero ar puro,
Quero a fumaça dos cigarros
Que acendo um no outro.
Não quero chá que me acalme,
Quero porre de vinho tinto.
Não quero vozes que não
Sejam de canções rascantes.
Não quero risos,
Não combinam com a
Convulsão do meu choro.
Não quero disfarces
Nem máscaras,
Pelo menos hoje.
Quero me olhar no espelho
E dar de cara
Com todas as minhas rugas
E meus defeitos.
Quero ficar quieta no meu canto,
Feito bicho acuado,
Feito menor abandonado,
Feito cd arranhado,
Feito poema amassado.

Esse quarto é meu.
Essa solidão é minha.
Esse coração é meu.
Me respeita e sai!
Devolve meu mapa e
Me desabita!
Você me deve isso.
 
 
sem título
kazi  [email protected]

A Ju tinha mania de escrever em inglês. Ela achava que manjava tudo de inglês. Vivia me corrigindo e tirando uma da minha cara. A Ju tirava uma da minha cara quase todo dia. Era aquela coisa de superioridade intelectual, sabe? A Ju nem era assim tão boa de cama, mas eu tinha essa tara por aquela bunda. Anyway, eu bem que tentei, mas a Ju nunca achou que eu valesse a pena. E sempre fez questão de me dizer isso. De preferência com duas outras expressões em inglês. Aquele chavão.

Ju Chavão, eu falava. Pelas costas, claro.

Ju demorou cinco anos para me dar um pá-na-bunda. E deixou um bilhetinho.

"And then there was no more sunshine, for the 'bitch who were pestering you' is long gone and she took your will with her. No, really, it's not like you've got something to celebrate.
"Anyway, you keep things going until there's no more turning back or tunring away. Then you blame yourself (indeed reasonably) and do nothing to change or to better the situation. It's almost like if you take pleasure in being miserable. Oh, yeah, for you seem to make everything worse than it is, everytime. And you complain. A lot. Oh, how I'm
miserable, oh, how my heart hurts, oh how the world treats me, oh, what have I done to deserve this, oh, nobody loves me. Fuck, you don't love yourself. You panic at the sight of happiness.
"Oh, but there's more. All you do is daydream about changes, magical changes in your life that you know will never happen. Basically, you have the emotional maturity of a 12-year old boy.
 "In fact, you're a control freak and a low-life manipulator. And you're an emotional blackmailer, You've got to have people around just to hear how you're good, how you're intelligent, how hot you are. It all boils down to your humongous ego. Maybe you even let people down to get attention. You're a fucking emotional black hole.
"Maybe you really shoulda kill yourself."

Ju, eu te amo, porra.
 
 
ouvido seletivo: o meu, o seu, o nosso
josé vicente  [email protected]

Os seres humanos só ouvimos o que nos interessa. É o fenômeno do Ouvido Seletivo. Quando o assunto é ruim, ou quando a ofensiva é ininterrupta - click, não se ouve mais nada.

Recorta-se o texto onde seja mais prejudicial. Com os rebotalhos, constrói-se novo discurso. Invariavelmente apologético.

As coisas que o auto-engano faz por nós, meus amigos, nem a nossa vovó faria.

(O fim do namoro. Raiva e frustração. A garota abre o berro.)

GAROTA - discurso real: "Eu não te amo mais, você tem cada babaquice, é um porco chauvinista com um coração insensível. Esse seu ego enorme, é, esse ego acabou com tudo. Mas não me conta com quem você andou saindo, não. Não fode. Vai embora. Agora!"

GAROTA - ouvido seletivo: "Eu (bléblblé) te amo mais. (blé blé) Você tem (bléblé) um coração enorme. Mas me fode. Agora!"

É o mesmo raciocínio que serve para legitimar horóscopos e picaretagens afins. "Eu sempre me consulto com Zarah Zoga. Não erra nunca".

Espiemos por detrás da cortina a atuação de Zarah.

(A consulente está com problemas com o marido.)

ZARAH: "Você é impulsiva, agressiva, às vezes pacata, às vezes irritada. Você não leva desaforo para casa. Já foi traída pelos amigos. Convém deixar de acreditar tanto nas pessoas. No amor, às vezes você se sente insegura, briga sem motivo, às vezes se sente amada e completa. Personalidade em constante transformação, você é dinâmica e rejeita os estereótipos. Vejo um problema, é um homem, humm, é homem, dinheiro ou saúde. O problema é seu marido?"

Zarah Zoga não erra nunca. Seu cadinho de generalidades abraça um novo desesperado a cada dia.

Auto-engano. Não saia de casa sem ele.
 
 
pangloss e as muletas
orlando tosetto junior  [email protected]

Era patchouli. Vocês vão me compreender e me perdoar quando souberem que sou um sujeito meio velho, e que aquela parte da adolescência em que se descobre as mulheres para mim aconteceu entre 1981 e 1982. Então ela passava patchouli atrás da orelha, o que estava em voga entre as meninas de 16 ou 17 anos, e, quando eu enfiei a cara lá pra beijar o pescoço dela, foi esse o cheiro que eu senti.

Tinham me dito - ou eu tinha lido - que beijar o pescoço é que era o quente. Era madrugada de domingo, estávamos num lugar escuro, e eu não tinha a menor idéia do que faria se ela, por algum milagre, resolvesse dar; acho que sairia correndo, ou diria algo como "puxa, será que não podemos deixar isso pra quando a minha mãe for viajar?". Sempre fui ruim nisso.

O que ouvíamos? "Waiting On A Friend", dos Rolling Stones; e "Bandolins", Oswaldo Montenegro. A cada vez mais rara mistura de patchouli com uma dessas duas músicas me põe de novo naquela noite. Muleta emocional? Depois dela, o patchouli ainda guiou minhas narinas na "busca incessante".

Depois foi a etiqueta da calça Lee, aquela de couro, que ela arrancou da calça e me deu, "tu rimembamí". Estava escura  sempre escurecia  e com aquele cheiro agradável do couro em cima do qual nunca se suou. Ficou pelo meu bolso e por uma ou duas das minhas carteiras um bom tempo ("ai laiqui iú sô mâtchi"). Muleta emocional? Porque tinha dias em que eu olhava aquela etiqueta pra me lembrar que fui bem quisto. Tinha dias que só assim.

Depois, era sabão em pó (eu sou um sujeito muito olfativo). De uma jaqueta que emprestei pra ela numa noite fria, que ela me devolveu lavadinha. Disse que tinha dó de devolver, que era quentinha, mas era tão maior do que ela, e depois, ficava bem em mim, e ainda estava frio, não estava? Ela coube ali dentro junto comigo, mas depois eu voltei pra casa e era o cheiro do sabão em pó que eu ia sentindo. Muleta emocional?

E houve as fitas do Supertramp. Não eram minhas, mas mesmo assim eu emprestei pra ela, e voltaram perfumadas. Eu, meio tonto, mostrava pros meus amigos e perguntava: "na sua opinião, o que significa isto?". Ela morava muito longe, no Limão, e eu ia pouco lá - dela só ficou mesmo o cheiro. Muleta emocional?

E houve o bodum. A sovaqueira. Coitada dela, não é que fosse suja: ela transpirava. O que se há de fazer? Ela me disse que tinha uma motocicleta (mentira), uma guitarra (mentira também) e um irmão mais velho que era uma espécie de gênio financeiro (mentira indeed). E suava muito. Uma vez recebi dela uma carta confusa, que dizia que os canalhas também envelhecem. Me conformei. E a carta tinha o bodum anexado. Muleta emocional? Ó homem-perdigueiro.

Bom, também houve canções. E filmes, e lugares, e livros, e conversas. Enfim. Mas o que eu faço repetidamente é cheirar, igual a um cachorro. Muleta emocional? Houve os pulsos - tem gente que deixa o perfume na gente; ela segurou os meus pulsos, e o cheiro ficou lá. Será que ela lavava as mãos com o perfume? Sempre tive vergonha de perguntar. Ela que era tão feia - isso não se diz, mas ela era, e, sem demagogia nem pedido de voto, importava tão pouco.

E houve, em alguns finais, cheiro de merda. Às vezes vinha de mim, às vezes dela, às vezes dos dois. Não havia cheiro de cinismo, de traição, de desamor, cheiro de acabou: havia cheiro de bosta. Algumas vezes; em outras o final cheirou a água fervida. Que é o cheiro da chuva, mas sem romantismo nenhum. Que é o cheiro sem cor. O cheiro desbotado.

Isso tudo são recuerdos. Nada disso é muleta emocional; são coisas que vêm e vão ao comando do nariz, esse sujeito independente, que parece que tem um cérebro só dele. São as memórias.

A verdadeira, a única muleta emocional, é escrever sobre elas.

 
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