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Novelinha barata em alguns capítulos - Capítulo VII
. trilha sonora .
|+| garagem 69; convidado: o mala do Supla - precariamente via real audio
direto de www.garagem.net.
|+| jimi hendrix: first rays of the new rising sun.
|+| itamar assumpção: beleléu e banda isca de polícia.
|+| sepultura: beneath the remains.
alguma coisa diferente ia acontecer naquele dia, definitivamente. peguei
o elevador com esta determinação e fiquei me olhando no espelho, bem nos
olhos, dizendo mentalmente a mim mesmo "não seja um bunda-mole, Chico.
você pode, você vai". não sabia o que, mas eu ia. seria insubmisso,
arrumaria uma briga, seria simplesmente diferente do que era sempre. e um
ímpeto auto-destrutivo (ou auto-preservativo, sabe-se lá) dentro de mim
torcia secretamente para que isso acabasse em demissão.
subiram comigo pelo elevador mais duas pré-adolescentes. uma era gordinha
e atarracada, com tranças que a deixavam parecendo um personagem de seriados
infantis mexicanos. a outra era mais alta e apesar do excesso de roupa por
causa do frio era possível notar que o corpo já tomava as formas de mulher.
eu fiquei no canto dos botões e elas se encostaram do outro lado, em frente
ao espelho.
minha barba estava grande naquela época e talvez isso contrastasse um pouco
com o gato embaixo do meu braço. sei lá. o fato é que, quando percebi, instaurou-se
aquele silêncio tremendamente constrangedor de elevadores. nem com vários
anos de rotina, subindo e descendo inúmeras vezes pelo mesmo elevador, se
consegue evitar a sensação ruim, quando ela vem.
as duas garotas deram uma olhada ao mesmo tempo para mim, enquanto eu ainda
mirava o espelho. percebi pelo reflexo que a mais alta fez algum comentário
olhando em minha direção, possivelmente a meu respeito. elas não perceberam
que eu as via e deixei que continuassem por mais uns segundos. virei-me,
então, de uma vez, e as garotas abaixaram a cabeça. a gordinha deu uma olhada
de lado para a mais alta, que quis começar a rir, mas segurou. como era
de se esperar, a gordinha foi a primeira a não agüentar. começou a soltar
o riso pelo nariz. em seguida, foi a vez da outra, que virou de costas para
o canto do elevador em uma última tentativa inútil de esconder o riso.
logo as duas gargalhavam abertamente. a gordinha chegou a perder a força
nas pernas e se ajoelhou no chão, chorando de rir. riam tanto que ecoava
pelo fosso do elevador. eu também ri, que remédio. ataques de riso são a
melhor reação possível ao contrangimento de elevadores.
*
sétimo andar, como sempre. fui até a porta, respirei e dei uma olhada geral
no ambiente. porra, que deprimente. entrei, a Sandrinha me viu primeiro,
e franziu a testa em descrença, apontando para o gato.
- o que é isso, Chiquito?
- hmn... me venderam como sendo um gato.
- sério? meu Deus, eu jurava que fosse um laptop!
- hah.
- mas por que você trouxe um gato pro trabalho, Cristo?
- ih, história longa. outra hora eu te conto.
- sei. onde você arrumou?
- arrumei o quê, eu comprei. numa feira de animais lá do shopping.
- comprou?! meu Deus, a Paula realmente acabou com você. mas é isso aí,
depois do que você fez ela tinha mais é que te foder mesmo, já faz tempo
que eu venho te dizendo isso. por que os homens sempre fodem com tudo, meu
Deus? ... [enquanto a Sandrinha ia falando, e ela falava muito, e muito
rápido, pus calmamente o gato no chão, arrumei um papel e coloquei um pouco
de areia-de-mijar-e-cagar em cima. o gato abaixou-se na hora e expeliu um
troço(ô) pequeno, mas fedorento como só os filhotes são capazes de fazer.
peguei um copinho de plástico e deixei um pouco de leite quente também.
durante todo o tempo ela me seguia e de vez em quando eu ouvia alguma palavra
como "lição", "injustiça", "cachorrada", "ridículo"
e "colheu o que plantou", coisas que cabiam a uma garota franca
como a Sandra dizer naquela hora e a um cara bacana e sensível como eu fazer
de conta que ouvia]... e se a gente for ver, no final das contas o Abbey
Road é o melhor disco dos Beatles, mesmo.
- o quê?!
- o Abbey Road é o melhor, no final das contas.
nisso, entra o chefe. o chefe chefe, da redação. a Sandra pára de falar.
ele me chama, "Chico, externa pra você". o repórter do Cidades
tinha sido mandado embora, então eles queriam que eu fosse cobrir um estupro
seguido de duplo homicídio no Parque Universidade. ele já vai me dando as
coordenadas, Rua Florindo Baú, número tal. eu não quero ir, não é certo
que eu vá. não tenho nada contra esse tipo de matéria, aliás foi por ali
que comecei. mas desde 1990 fui promovido para a editoria de cultura e não
faço mais reportagens assim. é uma disputa ideológica, sobretudo. "eu
não vou". o chefe não escuta, e continua explicando como faço pra chegar
no lugar. ele, contudo, pára quando seguro suas duas mãos, olho em seus
olhos e digo alto e claramente:
- EU-NÃO-VOU.
- como assim, não vai?
- não indo. eu sou repórter cultural, e tenho um monte de trabalho pra fazer
na minha editoria. arruma outro.
- ah, meu Deus, essa agora. não tem outro, e você é o único aqui com experiência
neste tipo de matéria. sua cultura vai ter que esperar.
- escuta aqui, Jener, se vocês querem acabar com o jornal não sou eu quem
vai pagar o pato. tô fora, completamente fora.
- estão acabando com o jornal, me tira dessa. olha, eu também não acho certo
isso, Chico. todo mundo tá puto com essa situação. mas você não tem escolha,
é ir ou ir.
fiquei quieto. ele continuou tentando me convencer, mas eu estava pronto
para mandá-lo tomar no cu. dei um tempo, respirei fundo. esse foi o tempo
exato para eu ter uma idéia genial. o crime foi no Parque Universitário,
que fica... ao lado do Shopping Catuaí! eu poderia passar lá, ir a uma certa
feira de animais e tal. um sorriso abriu-se em meu rosto. o chefe ficou
feliz, porque achou que eu tinha me convencido com todo aquele papo de fazer
como nos velhos tempos, pegar o cavalo no laço, etc.
- tudo bem, caralho. eu vou. mas com uma condição.
- tá, fala.
- quero levar um estagiário comigo.
- pra quê? ô complicação, Chico! eu tô tirando você daqui e já tá sendo
muito, imagina se tirar um estagiário. você sabe que eles tão segurando
as bombas por aqui.
- então não vou, porra.
- tá bom, tá bom. vai um estagiário. mais alguma coisa?
- não, tá ótimo.
era isso. eu dava as coordenadas pro estagiário, jogava na cabeça dele alguma
idéia sobre ser a sua grande chance e vazava pro shopping. perfeito. deixei
o gato com a Sandrinha, peguei o estagiário e descemos pra pegar a Kombi.
o dia ainda tinha salvação, ah sim.
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F a l a q u e E u t e E s c u t o