Em
1972, São Paulo era para mim “a cidade”, o centro velho. Saíamos a pé da
Maria Marcolina, no Brás, aos domingos, cerca de oito e meia da manhã. Íamos
a pé. Kinema. Subíamos a Rangel Pestana, passando pelas porteiras, e logo
à esquerda havia o Cine Piratininga, “a maior sala do Brasil” (hoje é um
estacionamento). Antes, no Largo da Concórdia, à nossa direita ficava o
Teatro Colombo, no mesmo lugar em que hoje se ergue a Caixa Econômica; e
a uma quadra, na Firmino Whitaker, esquina com Saião Lobato, o cine-teatro
Oberdan (onde Bill Halley e seus cometas tocaram numa tarde de sábado, nos
anos 50, e a platéia ainda achou forças para quebrar umas cadeiras, e que
hoje é loja da Zelo).
Se a gente descesse a Celso Garcia no sentido do Belenzinho, teríamos a
cinelândia do Brás diante de nós. Em frente à Pirani (falida em 1972 – em
1989 ainda havia, pendurado numa parede, um anúncio de “baralhos a Cr$ 3,00”)
havia o Fontana, quatro salas com a melhor programação (hoje um pedaço é
igreja, outro é shopping de outlets com barbearias e outras besteiras).
Na mesma calçada da Pirani, quase esquina com a Bresser, havia o Cine Universo,
onde vi com a minha mãe, num sábado aterrorizante, “Marcelino Pão e Vinho”,
e depois o primeiro Super-Homem. Mas antes do Universo, na esquina da Carlos
Botelho com a Costa Valente, havia o cine-teatro onde era gravado “Astros
do Ringue”, cujo nome eu nunca soube, e do qual resta, além de um suntuoso
balcão externo, uma lira estilizada no telhado. É um belo posto de gasolina.
Passando a Bresser, e do outro lado da avenida, estava o Cine Roxy. Hoje
é a sede da Universal, que aproveitou e arrasou todo o lado esquerdo do
quarteirão para fazer um estacionamento a céu aberto. E, no quarteirão seguinte,
esquina com João Boemer, havia o infausto Cine Brás, que tem lugar de proeminência
nas minhas futuras memórias pornográficas, e que, depois de cinema, foi
casa noturna, bailão, e hoje parece ser centro de estoques de algum magazine.
Mas nós não descíamos a Celso Garcia, e sim subíamos a Rangel, pra “cidade”.
Passando a Praça Clóvis, geralmente entrávamos na Roberto Simonsen onde,
quase esquina com a Venceslau Brás, do ladinho mesmo do Solar da Marquesa,
havia um cinema cujo nome também não lembro, e que também foi transformado
em estacionamento. Dali contornávamos a Sé, e havia duas opções: Rua Direita,
com o Viaduto do Chá, ou XV de Novembro, passando ao lado do Martinelli.
Se o domingo fosse sem pressa, descíamos a Direita, passávamos pela Praça
do Patriarca, ganhávamos o Chá, e entrávamos pela Barão de Itapetininga,
onde havia o Cine Barão, na mesma galeria que abrigou a saudosa Wop Bop
Discos (já não há mais nenhum dos dois). Se, porém, escolhêssemos atravessar
o Anhangabaú, sobre o Buraco do Adhemar, teríamos quase de frente pra nós
o Cine Cairo (em cuja passarela, no quarto centenário, vários hollywoodianos
de sucesso desfilaram, e que passa hoje o trivial variado do sexo explícito)
e, já na São João, quase em frente aos correios, teríamos à nossa esquerda
o Cine Saci (mesma programação). Ainda não havia as salas dos cines Avenida
e Las Vegas, rebentos recentes do sexo, e que hoje lá estão, exibindo o
vigor possível.
Então cruzávamos pelo Largo do Payçandú (atenção, Inagaki: é essa mesma
a grafia correta, graças a Mr. Amauri, meu primeiro chefe, e seu histérico
dicionário de locações) e, esticando o pescoço, víamos à direita o suntuoso
saguão aberto do Cine Paysandu (escrito erradamente, e que hoje é um bingo).
À esquerda, estavam, pela ordem, o Art Palácio (sexo explícito), a saída
das três salas do Olido (que ainda resiste) e, passando a Dom José de Barros,
o Ritz, com seu salãozinho turco (ou de chá, com cadeirinhas de ferro –
fechado e para alugar). Na Dom José, só alguns metros pra cima, havia e
há o Cine Dom José (onde, numa inesquecível semana santa em 1983, havia
três cartazes de filmes – à direita, “As C... de C... Que Dão O C...”; à
esquerda, “Pervertidas e Depravadas”; e, no meio, a “Paixão de Cristo”).
Depois atravessávamos a Esquina do Caetano tendo à nossa esquerda, e no
mesmo quarteirão, o Cine Regina, o Ipiranga com suas duas salas, o Marabá,
com sua imensidão e o balcão (que hoje está fechado), e o Cine República
(sexo explícito). Se a gente seguisse mais pra frente, tinha chance de ir
parar no Cine Copan, em forma de anfiteatro e que hoje abriga mais uma malfadada
igreja (não sem antes passar pelo Cine São Luiz, escondidinho naquela galeria
que dá na Praça Dom José Gaspar - fechado). Ou, se contornássemos a Praça
da República e descêssemos a Vieira de Carvalho, saíamos no Largo do Arouche,
bem perto do Cine Arouche, onde, no inverno de 1990, acompanhado por um
LP do Sam Cooke, vi o “Cinema Paradiso”, pensando nela e chorando (hoje,
é boate de strip-tease). Mas não; nós seguíamos a São João no rumo do cine
Metro e sua matinée, com Tom & Jerry e Pato Donald.
Podíamos
continuar andando pela avenida e ver, mais à frente, o Cinespacial, redondo
e com quatro telas (fechado), e depois o Comodoro, com sua tela de Cinerama
(fechado). Mas não íamos. Ficávamos no Metro (que hoje também é igreja),
sem pipoca nem refrigerante (e sem nem pensar nisso). Eu era menino de 5
anos, fitava vidrado a tela onde o gato levava pauladas estrondosas e gritava
escandalosamente, sentindo a dor do bicho e esperando meu pai rir pra rir
depois. Meu pai, um sisudo senhor italiano que acreditava nas ruas e ia
de paletó a uma matinée dominical. Que começava por volta das dez, então
era a conta certa de um homem de cinqüenta e dois anos e um menino de cinco
andando uma hora e meia por avenidas e ladeiras.
Se
fôssemos à avenida da Liberdade, chegaríamos ao Cine Niterói, onde passavam
todas as produções japonesas que importavam (e todas as que não importavam
também – virou uma espécie de dancing para orientais). Ou na R. Silva, ver
o prédio neoclássico do Cine Liberdade (que é um restaurante desses de quilo,
misturado com academia de judô). Mas era raro irmos lá; íamos mais ao Pari,
esquina da João Teodoro com a Avenida Vauthier, onde havia o Cine Rialto
(na esquina diametralmente oposta funcionou, anos depois, O Templo, boate
punk da primeira hora). No Rialto vi, em 77, com o Pedro, “Guerra nas Estrelas”,
e alguma coisa do Mazzaropi com minha mãe, um que tinha aquela música sertaneja
que rezava assim: “Nestes versos tão singelos / minha bela, meu amor, /
vou cantar para você / o meu sofrer, a minha dor / Eu sou como o sabiá /
quando canta é só tristeza / Dá vontade de chorar”. Dava mesmo, e o povo
chorava direitinho. De cinema o Rialto virou casa de danças do Zé Bettio,
forró, e finalmente loja de pneus. Hoje não sei mais o que é.
Minha cidade é cruel. Há dúvidas de que seja mesmo uma cidade, e não prédios
e ruas que brotam a esmo e estão perenemente de costas uns pros outros,
esquecidos, isolados, sem relações. Ruas que não se falam, prédios que não
se bicam, assassinatos anônimos. Deve ser uma besteira a gente se entristecer
com a morte de um cinema, com a desaparição de uma sala escura onde apertamos
um peitinho, onde roubamos um beijo de língua e depois saímos à rua, todos
anchos, quase exclamando “eu também beijei uma mulher”, ou onde simplesmente
ficamos de cabeças encostadas chupando balas Van Melle. Tudo muda na cidade
cruel sem mais lamentações. As casas em que nascemos viram pó; as escolas
se transformam em lojas, as lojas em prédios, os prédios em nada. Andamos
por ruas quase escuras que na verdade não conhecemos, e que não nos conhecem.
Tudo se move na cidade cruel. Nós nos movemos. Kinema.