Sepultura e a codificação do nacional no heavy metal brasileiro

Por Idelber Avelarsegunda-feira, 18 de junho de 2012

Não é uma mera coincidência o fato de que Belo Horizonte começa a se consolidar como a capital latino-americana do heavy metal por volta de 1984-5, data de formação do Sepultura. A ascensão do metal tem muito a ver com o processo político que se desenrolava no país naquele momento.

Enquanto a “Nova República”, eleita indiretamente, sucedia o regime militar em 1985, bandas de heavy metal em Belo Horizonte, Santos, São Paulo, Rio de Janeiro e outras metrópoles começavam a fermentar um fenômeno cultural de consideráveis proporções. Influenciados por Motorhead, Iron Maiden, Slayer, Metallica, Megadeth, essas bandas levaram o gênero conhecido nos anos 1970 como “rock pauleira” a outro nível de distorção, volume e agressividade. Do improvável estado do Pará, distante dos centros culturais do país, a banda Stress viajou até o Rio de Janeiro em 1982 para gravar o memorável álbum que os fãs depois reconheceriam como o momento fundacional do metal brasileiro. Em Belo Horizonte, bandas como Sepultura, Sarcófago, Sagrado Inferno, Morg, Armaggeddon, Holocausto, Chakal e Overdose (além do Minotauro, de São Paulo), participaram de uma ou ambas edições do BH Metal Festival, eventos que catapultaram a maioria dessas bandas à gravação de seus primeiros compactos, EPs ou LPs. A intensa cena metal de Belo Horizonte congregava-se na Cogumelo Records, loja que foi fundada em 1980, se tornou um selo independente em 1985 e lançou o disco que o Sepultura dividiu com o Overdose, Bestial Devastation–Século XX. Lenda do underground mineiro, esse “split LP” ajudou a fazer da Cogumelo o primeiro selo de metal bem sucedido no Brasil. Em São Paulo, uma compilação intitulada Metal SP, lançada pelo selo roqueiro independente Baratos Afins, trouxe nomes como Salário Mínimo, Avenger, Vírus e Centúria. Na vizinha Santos, os pioneiros do Vulcano lançaram o compacto “Om Pushne Namah” (1982), o LP Live (1985), e o marcante Bloody Vengeance (1986), até hoje um objeto de culto entre os fãs. No Rio de Janeiro o heavy metal sempre teve menos seguidores que outros gêneros jovens como o funk e o hip hop, mas de lá vem uma das mais respeitáveis bandas de metal, a Dorsal Atlântica, ativa desde o EP Ultimatum (1985), passando pelo LP de estreia Antes do Fim (1986) e uma sequência de discos marcantes lançados ao longo de uma carreira que duraria até o final da década de 90.

A cena nacional recebeu um ímpeto maior com a primeira edição do mega-festival Rock in Rio (1985), um evento de dez dias onde todas as bandas heavy eram internacionais: Iron Maiden, Ozzy Osbourne, White Snake, Scorpions e AC/DC, os quatro últimos em uma única e longa noite de puro metal. Gigantes do death e do thrash metal, como Metallica, Slayer e Venom. Surgiram revistas como Heavy ou edições nacionais de fanzines estrangeiros como Rock Brigade. Seguindo a iniciativa da Cogumelo, outras lojas também investiram na produção de álbuns independentes e de baixo custo. Entre aquelas que consistentemente produziram álbuns de metal estão a Baratos Afins e a Devil Discos, em São Paulo, e a Heavy e a Point Rock, no Rio, responsáveis pelos primeiros lançamentos de dezenas de novas bandas. O bloqueio anti-metal nas rádios começou a ser suspenso semanalmente por uma hora em algumas estações, com programas como Comando Metal (na 89 FM, de São Paulo), Metal Massacre (na Liberdade FM, de Belo Horizonte), e Guitarras para o Povo (na Fluminense FM, no Rio). Tudo isso contribuiu para constituir a cena mais tarde descrita por um crítico como “formigueiro de camisas negras trocando informações por todo o Brasil”.

Não é uma mera coincidência o fato de que Belo Horizonte começa a se consolidar como a capital latino-americana do heavy metal por volta de 1984-5, data de formação do Sepultura. A ascensão do metal tem muito a ver com o processo político que se desenrolava no país naquele momento. Ali toma impulso a separação, marcante para a década de 1980, entre a música nacional e a música jovem, ou seja, a dissociação entre a canção popular entendida como genuinamente brasileira e a música consumida pela juventude do país. Ao longo do anos 70, a MPB havia hegemonizado o gosto da classe média, incluídos aí seus segmentos mais jovens, que viam na arte de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Milton Nascimento um canal de oposição à ditadura militar e também uma forma de distinção estética que os separava dos consumidores “cafonas” ou “popularescos”.  Essa coincidência entre o nacional e o jovem na música quebra-se nos anos 80. O maior emblema dessa ruptura me parece ser a rapidez com que a arte de Milton Nascimento perde vigência entre a juventude de Minas Gerais em meados da década, agora substituída na preferência jovem por várias tribos urbanas roqueiras. Em Belo Horizonte, sem dúvida, o heavy metal foi a mais poderosa dessas tribos.

A MPB se consolidara ao longo dos anos 70 não só pela sofisticação melódica, harmônica e poética, e não só pelas condições de censura em que vivia a música popular. Sua canonização também foi expressão de uma relação com o nacional já purgada do sectarismo exclusivista que foi parte da sigla em seu período de emergência, nos festivais dos anos 60. Nos anos 70, tratava-se de um ideal de sofisticação que operava como medida de distinção no sentido dado ao termo pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu: um produto cultural projetava a fábula de excepcionalidade de uma classe social e construía o cânone da música popular nacional. A facilidade com que, nos anos 80, punks, metaleiros, góticos e outras tribos viriam a dialogar e colaborar entre si tem algo que ver com a rejeição dessa distinção simbólica da MPB, e com a percepção comum de que as formas canônicas de música acústica no Brasil haviam sido cooptadas pela notável indústria do entretenimento desenvolvida no país sob a ditadura. Para aquelas tribos, “música brasileira” designava um mundo de estrelas dublando em algum programa da Rede Globo. A institucionalização de uma forma musical inicialmente percebida como contestatária alcançaria seu ápice com a bênção dada por estrelas da MPB à traição da campanha das diretas, quando o bloco PMDB + futuro PFL lançou as candidaturas de Tancredo e Sarney ao colégio eleitoral, em 1985.

A trilha sonora daquele bloco liberal-conservador, tal como sua legitimidade popular, foi roubada da campanha das diretas: com a péssima “Coração de Estudante”, Milton Nascimento e Wagner Tiso coroavam o processo de conversão do imaginário da cordialidade mineira em musak pop do Brasil decente e respeitável da Nova República. A sobre-instrumentação nitidamente tentava transformar uma banal balada pop em hino popular e épico. A letra levava a temática mineira do “amigo” a alturas de pieguice ainda não visitadas. O dado é importante porque nos anos 70 a música de Milton — com a rica textura de suas melodias, a alternância inaudita de contraltos e sopranos de sua voz, a melancólica e corrosiva poesia de Fernando Brant, Ronaldo Bastos ou Márcio Borges — havia sido referência obrigatória para a MPB “de oposição”. A arte de Milton também havia refletido e refratado uma certa iconografia católica das Minas Gerais dos carros de boi, igrejas barrocas e ladeiras de paralelepípedos, todos varridos pela modernização, mas preservados como objetos de luto em elegias musicais (esse luto musical pelo pré-moderno teve seu ápice na faixa “Beco do Mota”, do disco Milton Nascimento, de 1969). Na reserva poética de rituais de migração e abandono criada pela música de Milton, a imagem recorrente é a do matuto interiorano que parte e regressa com o diploma, num ritual em que Belo Horizonte é terra estranha, metonímia da modernidade e objeto de desejo. De lá o sujeito em geral volta como visita, de preferência com uma sinhá mocinha para apresentar.

O momento em que Milton, de mãos dadas com Tancredo e Sarney, coloca o imaginário fraternal-progressista a serviço dos palanques da Nova República coincide com o abandono definitivo, por parte da adolescência urbana mineira, de qualquer identificação com a MPB. Não por acaso, o ataque violento à iconografia católica é a pedra de toque do heavy metal que se articulava no mesmo bairro de Santa Teresa em que havia surgido, quinze anos antes, o Clube da Esquina (note-se que saem do mesmo bairro de Belo Horizonte as duas mais ilustres contribuições de Minas Gerais à música popular do planeta). Enganaram-se os que viram no satanismo do primeiro Sepultura uma mera cópia de Slayer. A resposta à pesada herança cristã de Minas Gerais era nítida.

A música de Milton havia se apropriado dos símbolos de caridade e fraternidade da herança católica de Minas Gerais, dotando-lhes de um sentido político e emancipatório, num processo que culmina nos discos Sentinela (1980) e Missa dos Quilombos (1982). O heavy metal, por outro lado, mergulharia na iconografia católica para articular não uma reapropriação, mas uma estratégia de radical negação, inversão e esvaziamento de seus conteúdos. Ao contrário de Milton, o metal não distinguia uma mensagem recuperável na religiosidade mineira. Cancelava-a através de um uso descontextualizador, que esvaziava seu aparato simbólico. As cruzes invertidas, as alusões satânicas e a obsessão escatológica negavam aquilo que a música de Milton ficou famosa por expressar: a esperança de que por trás do universo religioso, tradicional e conservador do catolicismo mineiro residisse um núcleo emancipatório e fraternal de compaixão politicamente disponível. O metal em Minas emerge não como cópia do satanismo de bandas europeias e americanas, mas como negação dessa disponibilidade. A aliança entre a MPB e uma Nova República rejeitada pela juventude foi a mola propulsora definitiva dessa negação.

* * *

P.S.: O texto acima é um trecho do capítulo 3 de Figuras da violência: Ensaios sobre ética, narrativa e música popular, livro do meu amigo Idelber Avelar com oito ensaios independentes, que têm em comum o tratamento da interseção entre as dimensões retórica e política da violência.

O texto deste post é só uma apetitosa amostra deste livro, cujo lançamento acontecerá nesta quinta-feira, dia 21/06, a partir das 18:30h, na Livraria da Vila da Rua Fradique Coutinho. Estarei lá, a fim de assegurar meu exemplar devidamente autografado e colocar as prosas em dia com os amigos. :)

Pense Nisso!
Idelber Avelar

Idelber Avelar (1968) é licenciado em Letras pela UFMG e doutor em literaturas latino-americanas e teoria literária por Duke University. É autor de Alegorias da derrota: A ficção pós-ditatorial e o trabalho do luto na América Latina (1993) e The Letter of Violence: Essays on Ethics, Narrative, and Politics (2004). Co-editou recentemente o volume Brazilian Popular Music and Citizenship (2011). É colunista da Revista Fórum e foi, durante seis anos, o responsável pelo blog O Biscoito Fino e a Massa.

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  • http://www.duniverso.com.br/ Tomé Ferreira

    Olá Idelber!

    Muito bom seu texto!
    Acrescento que de 1985 até 1987, o Overdose teve como integrante na batera o Hélio Eduardo Pinheiro um dos melhores bateristas que já vi tocar!Abraços!

  • http://www.facebook.com/gccavalcante Gabriel Celestino Cavalcante

    Espero não estar muito tarde pra opinar nesse… Muito interessante o texto, Idelber manja muito. É bem curioso pensar no contexto que guia a música, porque é geralmente muito difícil perceber, na hora, que o que está levando todas aquelas bandas a tocarem aquilo, e serem bem recebidas pelo seu público, é este ou aquele motivo… não pude comparecer ao lançamento, mas o livro está na minha lista…

Pense Nisso! Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista e consultor de comunicação em mídias digitais. É japaraguaio, cínico cênico. torcedor do Guarani Futebol Clube e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos. Já plantou semente de feijão em algodão, criou um tamagotchi (que acabou morrendo de fome) e mantém este blog. Luta para ser considerado mais do que um rosto bonitinho e não leva a sério pessoas que falam de si mesmas na terceira pessoa.

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