Observações ao léu

Por Alexandre Inagakiquarta-feira, 14 de dezembro de 2005

Detesto dirigir. Pedestre convicto, também sou assíduo freqüentador dos ônibus e metrôs de Sampa City. Em vez de me estressar na posição de motorista enfrentando os ziguezagues dos motoboys, os faróis altos ou as agruras dos congestionamentos que pipocam pelas ruas saturadas da metrópole, atenho-me à condição de passageiro que aproveita os olhos livres para ler revistas, tirar breves cochilos ou simplesmente vendo as pessoas que passam por meus olhos.

É claro que nem tudo são louros. No ônibus a caminho para o trabalho invariavelmente viajo de pé, espremido feito os livros nas prateleiras abarrotadas do meu quarto. Mas é nessas horas que percebo o quanto tornou-se fundamental andar com meu iPod, que uso com fones de ouvido comprados em camelô (os fones brancos originais do iPod são tão discretos quanto um ornitorrinco fazendo cambalhotas). Nada como uma boa trilha sonora (no caso, “Everything Flows” do Teenage Fanclub) para tornar uma insípida viagem de busão algo mais palatável.

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O mais poderoso slogan cunhado neste ano não foi criado por nenhum publicitário. O (dúbio) mérito deve ser creditado aos traficantes que mataram os incendiadores do ônibus no Rio, que deixaram um recado do lado de fora do carro em que jaziam os corpos dos quatro bandidos assassinados: “do lado certo da vida errada”. De quebra, arremataram tal frase com o complemento: “fé em Deus”. Não sou ateu, mas às vezes a metralhadora diária das manchetes de jornais me obriga a pensar se não estou enganado quanto às minhas convicções. Continue Lendo

A tira mais triste de todos os tempos

Por Alexandre Inagakiquarta-feira, 14 de dezembro de 2005

Em 21 de março de 2005 postei em meu endereço antigo no Gardenal.org uma tira desenhada por um fã de Bill Watterson que retratava o hipotético momento em que Calvin deixava de ver Hobbes como seu amigo (imaginário ou não), e o tigre tornava-se um mero bicho de pelúcia.

Na época houve uma certa repercussão, mas nada comparado ao que aconteceu quando a tira foi descoberta pelas comunidades no Orkut dedicadas ao personagem. Em uma comunidade de fãs de Calvin & Haroldo, por exemplo, um mero tópico com um link simples para o meu blog recebeu 154 postagens, com direito a um bate-boca dos mais exaltados entre os participantes, que discutiram a validade de uma tira que não havia sido desenhada pelo criador original do personagem. Mais recentemente, o post também acabou indo parar em uma comunidade em inglês, gerando novas discussões acerca de suas possíveis leituras.

Como meus arquivos no Gardenal sumiram, desapareceram, escafederam-se, e junto com eles todos os posts que publiquei em 2005, aproveito a ocasião para republicar aqui o texto original. Em tempo: a tradução da tira que ilustra este post foi feita por Eduardo Couto e publicada em 12 de abril.

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Bill Watterson, provavelmente acometido pela Síndrome de Bartleby, teve publicada sua última tira de Calvin & Haroldo em 31 de dezembro de 1995, e nunca mais publicou um desenho sequer de sua maior criação. Desde então Watterson vive recluso com a esposa em Chagrin Falls, Ohio. Não vai a convenções de quadrinhos, não assina autógrafos, não concede entrevistas e ainda solicitou à Universal Press Syndicate, que distribui mundialmente as tiras de Calvin & Haroldo, para que ela não lhe encaminhasse mais correspondências de fãs.

É inevitável comparar suas atitudes com as tomadas por escritores como J. D. Salinger, Raduan Nassar ou Juan Rulfo, que espontaneamente abdicaram da literatura e foram cuidar de suas próprias vidas; que eles sejam felizes, porque merecem. Quanto à tira publicada ao lado, é preciso dizer que ela não foi desenhada por Bill Watterson. Encontrei-a em uma comunidade de fãs de Calvin, e infelizmente desconheço o seu autor. É, para mim, a mais triste, mas também uma das mais belas tiras que já vi na vida, por toda a riqueza de significados que ela apresenta. Poderia tergiversar horas sobre o universo de Calvin, amigos imaginários, conformismo social ou as asas que desaprendemos a usar. Mas, por ora, limito-me a citar as últimas palavras do último quadrinho desenhado por Watterson:

- “It’s a magical world. Hobbes, ol’ buddy… let’s go exploring!”

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P.S.: Eis um blog brasileiro exclusivamente dedicado à publicação de tiras do personagem: Depósito do Calvin.

Rápidas rasteiras

Por Alexandre Inagakiquarta-feira, 14 de dezembro de 2005

Ótima a coluna mais recente de João Pereira Coutinho para a Folha Online, sobre Woody Allen. Mas sou obrigado a discordar do texto de JP Coutinho em três pontos:

a) à santíssima trindade de filmes woodyallenianos elencada por Coutinho (“Hannah e Suas Irmãs”, “Crimes e Pecados” e “Desconstruindo Harry”), eu acrescentaria “Annie Hall”, talvez o mais belo filme de todos os tempos a descrever um amor que nasce, cresce, morre e se transforma em amizade;

b) Peter Bognadovich dirigiu, na verdade, quatro longas excepcionais. Além dos citados “A Última Sessão de Cinema” e “Lua de Papel”, também foi o responsável por “Esta Pequena é uma Parada” (comédia com Barbra Streisand no melhor estilo das screwball comedies produzidas nos anos 30 e estreladas por atores como Cary Grant e Katharine Hepburn) e “Na Mira da Morte” (ótimo filme sobre um franco-atirador, com Boris Karloff no papel de um velho ator de filmes de terror que resolve se despedir do cinema por ojeriza à violência do cinema contemporâneo);

c) dizer que Truffaut só realizou três grandes filmes é uma enorme injustiça cometida por JP Coutinho. Tendo a imaginar que meu colega português não assistiu a “O Homem que Amava as Mulheres”, “A Sereia do Mississipi” ou “Fahrenheit 451″, por exemplo. Também não deve ter visto “Beijos Proibidos“, segundo longa-metragem protagonizado por Antoine Doinel, alter ego de Truffaut. É desse filme uma das minhas seqüências prediletas de todos os tempos. Nela, Antoine (Jean-Pierre Léaud) está sentado em um banco ao lado da mulher por quem está apaixonado, Christine (Claude Jade). Ela está sendo seguida semanas a fio por um misterioso homem, que, ao ver o casal sentado na praça, resolve finalmente lhe dirigir a palavra. Diz o estranho:

- Nunca havia provado o gosto do amor, até que conheci você. A vida é repleta de experiências provisórias, de pessoas provisórias. Mas eu sei que, para você, serei definitivo. Não estou pedindo para que você me diga “sim” neste momento. Eu lhe darei um tempo para pensar. Quero apenas que você saiba que eu a amo, muito. E que estarei aqui, para você, sempre.

O homem vai embora sem olhar para trás. Christine e Antoine se entreolham, ainda atordoados, em silêncio. Até que Christine desabafa:

- Esse homem é completamente louco!

Amor é como jazz ou zen-budismo: não é para ser explicado, vivencia-se.

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Ainda sobre cinema, saibam que continuo com minha coluna no site da Antena 1.

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Abram a porta, pelo amor de Deus! Minha filha é uma criança!“. O Rio de Janeiro continua lindo, mas saber de notícias como a do atentado contra o ônibus da linha 350 me obriga a ficar com os três pés atrás com relação ao meu projeto de um dia morar na Cidade Maravilhosa. Em meio à guerra urbana que assola o Rio, a governadora Garotinho permanece afastada por stress, enquanto seu marido ainda fomenta o plano de se candidatar à Presidência. Este país definitivamente não é para principiantes.

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Blog Tour. O post que a Viva publicou no dia 29 de novembro, na nova URL do Nós por Nós, é uma das mais belas declarações de amor que li nos últimos tempos. Luciana, mulher movida a paixões, acabou de passar no vestibular para Jornalismo (muita sorte pra você, mon ami!). Recomendação entusiástica da casa: conferir a poesia de Bruna Beber em sua Cutelaria & Chapelaria. Dois dos meus gurus na blogosfera: Mario AV e Zel. Manobra, 1979 é, com sobras, o melhor dos novos blogs surgidos nos últimos tempos. Por fim, a indefectível nota ególatra: segundo o Yahoo! Search, existem 33.103 links apontando para o domínio pensarenlouquece.com (servimos bem para servir sempre).

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Deus está na fé que ainda insistimos em ter no outro“. (Gabriela Franco)

Casa em obras

Por Alexandre Inagakidomingo, 11 de dezembro de 2005

Aos poucos os filhos pródigos do condomínio virtual Gardenal.org retornam à Terra Prometida. Por supuesto não foi uma jornada das mais serenas. Eu e outros colegas de imprudência perdemos todos os posts publicados em 2005 por um motivo deveras prosaico: não fizemos backup de nossos blogs. Pra vocês verem como a coisa foi feia, perdi até o template, que foi parar no buraco negro destinado a guarda-chuvas, promessas de campanha eleitoral, tampas de Bic e outros itens que somem para nunca mais. Não vou negar que senti o baque. Mas a vida tem dessas coisas, como diria o Ritchie. Às vezes é preciso levar uns jabs na alma a fim de mexer a bunda da cadeira e sacudir a apatia. E eu, que andava há algumas semanas de saco cheio do blog, de repente me vi novamente motivado a escrever. Nada como uma porrada pra tomar vergonha na cara (drink shame in the face) e acirrar ânimos, huh? Enfim.

Por enquanto estou me virando com o template básico do Movable Type. Consegui ao menos resgatar os textos da maior parte dos meus posts, que republicarei em doses homeopáticas, enquanto assimilo mais uma valorosa lição que provavelmente esquecerei daqui a duas semanas. Ao pessoal que durante esse ínterim acompanhou os textos publicados na barraca de camping que montei no Blogger Brasil, obrigado pela fidelidade. E bola pro mato que o jogo é de campeonato!

Como era gostoso o meu cinema brasileiro (lembranças da Sala Especial)

Por Alexandre Inagakisábado, 10 de dezembro de 2005

Nos anos 50 e 60, Carlos Zéfiro “catequizou” diversas gerações de adolescentes que fizeram muita justiça com as próprias mãos ao ler seus quadrinhos pornográficos. A partir da década de 70, foi o cinema brasileiro o (ir)responsável pela (des)educação sexual de muita gente, através das pornochanchadas produzidas em sua vasta maioria pela Boca do Lixo paulistana, região localizada no Centro velho de São Paulo. Se por um lado filmes como “O Grande Gozador”, “Xavana - uma Ilha do Amor”, “Aventuras Amorosas de Um Padeiro” ou “Reformatório das Depravadas”, lançados durante os tempos da ditadura, são acusados de despolitização e alienação, por outro é inegável constatar que foram produções que refletiram o zeitgeist de uma época marcada pelo surgimento da pílula anticoncepcional, na efervescência sexual de tempos pós-hippies e pré-discotecas.

O apelo popular das pornochanchadas provém de vários elementos, sendo o mais óbvio de todos a exibição dos corpos de musas como Vera Fischer (na época atriz iniciante, ingressando na carreira artística após ter sido coroada Miss Brasil em 1969), Aldine Müller, Helena Ramos, Zélia Martins, Nicole Puzzi, Zaira Bueno e Matilde Mastrangi. Ao erotismo, os produtores acrescentavam doses generosas de comédia, com vasta utilização de personagens estereotipados que até hoje fazem sucesso em programas como A Praça é Nossa ou Zorra Total. Por exemplo: o garanhão cafajeste, o velho tarado, a frígida gostosa, a moça “liberada”, o marido traído, a bicha histriônica, o safado engravatado e a empregada boazuda (sobre o assunto, confira o artigo A rica fauna da pornochanchada, de Ruy Gardnier).

Se nos primeiros anos as pornochanchadas não passavam de comédias de costume com uma e outra cena mais caliente (vide os sucessos de bilheteria “Como Era Boa a nossa Empregada” e “A Viúva Virgem”, ambos com mais de 2 milhões de ingressos vendidos), ao longo dos anos os filmes foram ficando mais apimentados. Um marco dessa virada foi a produção de 1977 “O Bem Dotado, o Homem de Itu“. Dirigido por José Miziara, definitivamente não pode ser considerado um filme para toda a família. Sua singela trama apresenta a história de um caipira chamado Lírio (Nuno Leal Maia) que é trazido para a cidade grande por senhoras da alta sociedade atraídas por sua “peculiar” anatomia. Eis o texto da sinopse original do filme: “Ao chegar em São Paulo Lírio conhece Julinha (Helena Ramos) e, pela primeira vez, sente o clamor do sexo. O ímpeto é tão forte que suas calças rasgam“.

Deste cRássico, guardo na memória as cenas de Nuno Leal Maia deixando todas as mulheres mancas após transarem com ele, assim como a inolvidável sonoplastia (o tóóóóóóóóóiiiim ouvido a cada ereção do personagem é simplesmente antológico). Eram tempos nos quais as produções não exibiam sexo explícito nem pêlos pubianos; em compensação, viam-se peitos e bundas em generosa profusão. Ou seja, exatamente o perfil dos longas-metragens exibidos na Sala Especial, sessão de filmes que a TV Record apresentava todas as sextas-feiras, às 23 horas, em meados dos anos 80.

Foi por intermédio da Sala Especial que vi pela primeira vez coxas, peitos e bundas, antes mesmo de começar a me interessar pelo sexo oposto. Assisti a muitos filmes toscos como “A Ilha das Cangaceiras Virgens”, “Histórias que Nossas Babás Não Contavam”, “Os Bons Tempos Voltaram - Vamos Gozar Outra Vez” escondido de meus pais, protegido pela penumbra da sala, com o volume no mínimo e a excitação que só as coisas proibidas podem nos trazer.

Em 1982, surgiu o primeiro filme de sexo explícito made in Brazil: “Coisas Eróticas”, de Rafaelli Rossi. A novidade teve repercussão imediata nas bilheterias: 4.525.401 brasileiros pagaram ingressos para assisti-lo nas salas de cinema. Foi o ápice de público, e ao mesmo tempo o começo da derrocada da Boca do Lixo paulistana. A recessão econômica e a popularização dos videocassetes, em sua maior parte abastecidos por títulos estrangeiros, foram as principais causas do fim das pornochanchadas. Hoje, com a popularização da Internet, que traz diretamente para as casas de adolescentes repletos de espinhas no rosto e hormônios no sangue vídeos pirateados por aí, falar em pornochanchadas é como recordar os tempos em que Papai Noel tinha barba preta. Mas foi bom enquanto duro.

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P.S.: Os pôsteres de cinema que ilustram este post foram criados por José Luiz Benício. De seu site, tomo emprestadas estas palavras: “Durante mais de 30 anos, Benício foi o responsável por mais de 300 cartazes do cinema nacional obtendo diversas premiações. Benício também ficou conhecido pela exaltação às formas femininas em suas obras no período das pornochanchadas”.

Os 10 melhores discos de música popular brasileira

Por Alexandre Inagakisábado, 10 de dezembro de 2005

Confesso que sofri. Tudo começou quando Idelber Avelar, professor de literatura e responsável pelo blog O Biscoito Fino e a Massa, propôs que blogueiros e seus leitores participassem de uma eleição dos dez melhores discos de música popular brasileira lançados entre 1950 e 2005. Foi aí que começou o meu suplício, porque, como todos bem sabem, listas serão sempre incompletas, voláteis e insuficientes para abarcar todas as nossas preferências.

Diversos álbuns entraram e saíram da minha lista a todo momento. Dentre os que ficaram de fora, destaco:

- “Chega de Saudade” (1959), o longplay de estréia do Mestre João Gilberto. Não emplacou a lista porque considerei injusto incluir em meu Top 10 um álbum por causa de duas irretocáveis obras-primas (“Chega de Saudade”, para mim a melhor e mais importante música de todos os tempos na história da MPB, e “Desafinado”) em meio a outras dez canções que não fazem parte do meu rol de prediletas da casa. Este foi o único momento em que lamentei o fato de coletâneas não poderem ser incluídas na votação, porque senão “O Mito” (1993), compilação que reúne as gravações dos três primeiros álbuns de João (e que, diga-se de passagem, encontra-se fora de catálogo porque João Gilberto acionou a Justiça a fim de impedir a venda desta coletânea criada pela gravadora sem sua prévia autorização), seria o primeiro lugar de minha lista.

- “Falso Brilhante” (1976), de Elis Regina, indubitavelmente a nossa maior intérprete, em um disco que, além das belchiorianas “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida”, apresenta duas de suas mais emocionantes gravações: “Fascinação” e “Gracias a la Vida”;

- “Roberto Carlos” (1969), álbum de transição entre a Jovem Guarda e a fase “cama-e-mesa”, que apresenta três das baladas mais matadoras do parceiro do Erasmo: “As Curvas da Estrada de Santos”, “As Flores do Jardim da Nossa Casa” e a excepcional “Sua Estupidez”. De quebra, é o disco com a melhor performance soul do Rei: “Não Vou Ficar”, composição de Tim Maia;

- “Vivendo e Não Aprendendo” (1986), a obra-prima do grupo paulistano Ira!, repleta de clássicos dos anos 80 como “Envelheço na Cidade”, “Dias de Luta”, “Flores em Você” e a pungente “Quinze Anos”, um dos melhores retratos já traçados a respeito dos desconcertos daquela fase em que temos tantas espinhas na cara quanto dúvidas existenciais.

Enfim, antes que eu comece a recordar mais ausências, melhor deixar os preâmbulos e partir para a publicação da minha lista. Em tempo: estes foram os resultados da votação discográfica promovida por Idelber.

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1) “Tropicália ou Panis Et Circencis” (1968). Ouça uma balada com a beleza de “Baby”. Pense nos recortes justapostos das letras de Capinam, Torquato Neto, Tom Zé, Gil e Caetano, retratos do contexto conturbado de tempos imediatamente pré-AI-5. Viaje com os fantásticos arranjos de sopros e cordas criados pelo genial Rogério Duprat. Deleite-se, com sorriso nos tímpanos, ao ouvir as subversivas regravações de “Coração Materno” (de Vicente Celestino) e do Hino do Senhor do Bonfim, e a maviosa voz de Nara Leão em “Lindonéia”. E desfrute, enfim, de um álbum-conceito que consegue ao mesmo tempo soar assombroso e acessível, experimental e pop, caótico e coerente, renovador e assobiável.

2) “Construção” (1971) - Chico Buarque. Um dos maiores, senão o melhor de todos os letristas da MPB, imortaliza aquela que talvez seja sua obra-prima em versos na música que dá nome ao álbum. Em plena era Médici, “Construção” traça um retrato concreto (e, ao mesmo tempo, um desenho mágico) da realidade embotada do trabalhador brasileiro, em versos proparoxitonamente antológicos. Mas, para além de “Construção” e de sua canção-irmã “Deus lhe Pague” (ambas com arranjos do mestre tropicalista Duprat), Chico gravou ainda outras canções que merecem lugar garantido no cânone de sua obra, como “Cotidiano” (“Todo dia ela faz tudo sempre igual/ Me sacode às seis horas da manhã/ Me sorri um sorriso pontual/ E me beija com a boca de hortelã“), “Desalento” e “Valsinha”.

3) “A Tábua de Esmeralda” (1974) - Jorge Ben. Muito antes de mudar seu sobrenome para Benjor, Jorge chegou ao auge neste álbum que miscigena soul, samba, jazz, bossa nova, funk e blues, amalgamados com um estilo único de tocar violão e letras misticamente delirantes. Do clima descontraído das gravações (que perpassa todo o álbum) até a genuína inspiração (ir)responsável por gemas do suíngue como a sincopada “Brother”, a galanteadora “Minha Teimosia é uma Arma pra te Conquistar” ou a hipnótica “Errare Humanum Est”, este álbum por si só já garantiria a Jorge um lugar entre os maiores da MPB.

4) “Dois” (1986) - Legião Urbana. Juventude, transgressão, rebeldia contra o establishment, esperança ingênua em mudar o mundo: sim, todos nós já fomos jovens. E, em se tratando de rock nacional, não há trilha sonora mais adequada para essa etapa da vida do que Legião Urbana. Ao contrário da pasmaceira vigente no BRock que toca nas FMs atualmente, à base de músicas que parecem orbitar no mesmo repetitivo binômio sexo/maconha, a Legião faz sucesso até hoje por abordar em suas canções assuntos efetivamente relevantes como política, religião, amor e as decepções com a vida em geral. Em “Dois”, Renato Russo alcança o equilíbrio preciso entre a revolta punk e o lirismo de composições como “Tempo Perdido”, “Daniel na Cova dos Leões”, “Acrylic on Canvas”, “Quase Sem Querer” e aquela que talvez seja a mais bela de todas as canções sobre o desencanto juvenil, “Andrea Doria“, dos versos “Quero ter alguém com quem conversar/ Alguém que depois não use o que eu disse/ Contra mim“.

5) “Cartola” (1976). Nascido em 1908, o carioca Angenor de Oliveira ganhou o apelido de Cartola porque, quando trabalhava como pedreiro, usava um chapéu para evitar que seu cabelo ficasse sujo de cimento. Aos 20 anos, fundou com mais sete amigos uma escola de samba no subúrbio em que morava: a Estação Primeira de Mangueira. Por anos a fio compôs diversas músicas, dentre eles os primeiros sambas-enredos de sua escola, sempre convivendo com dificuldades financeiras. Cartola só veio a gravar seu primeiro disco em 1974, aos, vejam só, 65 anos de idade, graças aos esforços do produtor Marcus Pereira. Em 1976, foi lançado o seu segundo álbum (e o meu predileto). Algumas de suas canções: “As Rosas Não Falam”, “O Mundo é um Moinho”, “Preciso me Encontrar” (na verdade, composta pelo igualmente grande Candeia), “Ensaboa Mulata” e “Cordas de Aço”. Preciso ainda justificar a inclusão desta preciosidade em minha lista?

6) “Ideologia” (1988) - Cazuza. Em abril de 1987 Agenor de Miranda Araújo Neto amargava as primeiras crises decorrentes da Aids que já minava seu organismo. Contra a iminência da morte, veio sua resposta através da música: “O meu prazer/ Agora é risco de vida“. Ao mesmo tempo, Cazuza traça um retrato daqueles tempos pós-Cruzado (“Não me ofereceram/ Nem um cigarro/ Fiquei na porta estacionando os carros/ Não me elegeram/ Chefe de nada/ O meu cartão de crédito é uma navalha“), enquanto flerta com a bossa nova e a MPB em composições como “Faz Parte do Meu Show” e “Um Trem para as Estrelas” (em parceria com Gilberto Gil), atingindo o auge de seu lirismo com “Blues da Piedade” (“Vamos cantar o blues da piedade/ Porque há um incêndio sob a chuva rala/ Porque somos iguais em desgraça“).

7) “Foi um Rio que Passou em Minha Vida” (1970) - Paulinho da Viola. Filho de um dos integrantes do Época de Ouro, considerado um dos maiores grupos de choro da história, o jovem Paulo presenciou desde garoto tertúlias musicais com nomes como Pixinguinha e Jacob do Bandolim. Felizmente não sairia imune dessa vivência musical. Ainda jovem, ingressou na ala de compositores da Portela e emplacou, em 1966, o samba-enredo “Memórias de Um Sargento de Milícias”, campeão do carnaval daquele ano. Em 1968, aos 26 anos, gravou seu primeiro disco solo. Um ano depois, venceu o último festival de MPB da TV Record com o clássico “Sinal Fechado”. Em 1970 lançou novo álbum, em que logo despontou uma canção em homenagem à sua escola de coração, a Portela: “Foi um Rio que Passou em Minha Vida”. O samba ganhava seu mais novo mestre.

8) “Pérola Negra” (1973) - Luiz Melodia. Filho de sambista, crescido no bairro do Estácio no Rio, Melodia amalgamou em sua música influências variadas, que vão do rock ao jazz. Antes de gravar seu primeiro álbum, mostrou à dupla Torquato Neto e Waly Salomão uma composição inédita. Os dois, imediatamente fisgados por aquela música, trataram de convencer Gal Costa a gravá-la em um álbum: era “Pérola Negra”. Catapultado pelo sucesso dessa canção, que em sua peculiar voz ganhou um dos mais belos arranjos que já ouvi, Luiz Melodia gravou um imediato clássico da MPB. Além de “Pérola Negra”, de versos contundentemente paradoxais (“Baby, te amo/ Nem sei se te amo“), destacam-se as gravações de “Estácio, Holly Estácio”, “Abundantemente Morte” e “Vale Quanto Pesa”.

9) “Passarim” (1987) - Tom Jobim. Quando se fala no melhor da MPB, não é concebível a omissão do nome de Antônio Carlos Jobim. Aos 60 anos de idade, após ter vivenciado a concepção da bossa nova (da qual foi um dos pais), a consagração nos Estados Unidos (com direito a dueto com Frank Sinatra), enveredado por experimentações instrumentais (misturando jazz a elementos tipicamente tupiniquins) e excursões plenamente sucedidas no mundo inteiro, Tom Jobim gravou “Passarim”, que foi, por incrível que pareça, o primeiro Disco de Ouro da carreira de Tom no Brasil. Como é característico em toda a sua obra, “Passarim” é um álbum repleto de canções de extraordinária riqueza melódica, dentre as quais destaco “Luíza” (cuja letra prova que o maestro, além de compositor, também era versejador de mão cheia), “Anos Dourados”, “Borzeguim” e “Bebel”.

10) “Noturno Copacabana” (2003) - Guinga. Fiz questão de incluir este álbum, o mais recente de toda a lista, porque Carlos Althier de Souza Lemos Escobar, o Guinga, ainda não recebeu todo o reconhecimento que lhe é devido, e isso apesar de já fazer por merecer um lugar no panteão dos Grandes da MPB, ao lado de talentos como Noel Rosa, Chico Buarque, Tom Jobim, Lamartine Babo e Orestes Barbosa. Neste que é o seu sexto álbum, Guinga grava parcerias com letristas do porte de Aldir Blanc, Nei Lopes e Paulo César Pinheiro, resgata as heranças musicais de mestres como Radamés Gnatalli e Villa-Lobos, mescla influências de baião, xaxado, choro e blues e grava, ao lado da cantora Ana Luiza, aquela que foi considerada por ninguém menos que Chico Buarque “a canção do século”: “O Silêncio de Iara”. Que mais pessoas conheçam o trabalho deste mestre, compositor de outras gemas como “Catavento e Girassol” e “Senhorinha”.

(texto publicado originalmente em 7 de março de 2004.)

Cyber Movie, o dilema (ou: uma 9dade c/ legendas mto, mto lokas!)

Por Alexandre Inagakisábado, 10 de dezembro de 2005

Estreou no Telecine Premium a sessão Cyber Movie, que exibirá semanalmente filmes legendados em “internetês” (também conhecido como “miguxês”), aquele estranho dialeto usado por adolescentes em chats e fotologs repleta de palavras abreviadas e corruptelas como “fzr” (fazer), “cmg” (comigo) e “9dades” (novidades). A intenção do canal é fazer uma programação mais “antenada” (odeio essa palavra) com o público jovem.

Bem, eu cometi o despautério de assistir algumas cenas do filme “+ Velozes + Furiosos” a fim de conferir como essa proposta funcionaria em vídeo. É certo que o filme não prima exatamente pela qualidade de seus diálogos, mas não agüentei ver mais do que cinco minutos de legendas como:

- Vc tá maluko, kra?

- Soh toh fazendu o q me mandaram.

- Ei, p/ onde eles estaum indu?

- Sei lah!

Quem já estudou lingüística já deve ter ouvido o papo de que não existe certo ou errado na língua. Segundo essa abordagem, o domínio das normas cultas deve ser analisado como um fato de dimensões sociais, que no fundo só serve para ressaltar a superioridade arbitrária de um grupo sobre outro. Ainda sob esse ponto de vista, os gramáticos seriam espécies de ditadores, sobrepondo sua visão sobre os demais. Mas o problema é o seguinte: sem a imposição de determinadas regras, a língua portuguesa torna-se uma barafunda, uma anarquia na qual vale tudo, até mesmo iXcReVeR dExXi jeItU intragável de se ler.

Ok, línguas são como organismos vivos que evoluem de acordo com os tempos, recebendo influências de outras culturas e idiomas, e acolhendo novos vocábulos criados pelas mudanças sociais e tecnológicas. É assim que incorporamos palavras surgidas relativamente há pouco tempo em nosso dia-a-dia, como “blog”, “teleconferência”, “apê”, “downsizing” e “metrossexual”, enquanto outras estão fadadas a cair paulatinamente no oblívio, como “vitrola”, “soviético” e “malufar”. Mas será que a melhor resposta à propagação desse dialeto já praticado por cerca de 7 milhões de internautas é, simplesmente, incorporá-lo como acabou de fazer o canal Telecine?

O fato é que, uma vez chocado o ovo da serpente, o bicho torna-se indomável. Eu, pessoalmente, execro a iniciativa dessa sessão Cyber Movie (talvez a primeira no Brasil, mas não na América Latina - a MTV Latina há tempos exibe “El Clic”, programa interativo que adota as grafias alternativas criadas pelos internautas), mas ao mesmo tempo sei que é uma postura estéril, uma vez que não há como se controlar a difusão do “miguxês” - línguas se modificam naturalmente, por mais que legisladores e gramáticos tentem impor regras normativas.

Vale a pena, de qualquer modo, acompanhar os apaixonados debates travados no fórum do site do Telecine. Mais do que os previsíveis embates entre internautas indignados com a “imbecilização da humanidade”, e outros que chamam os detratores da iniciativa de “fascistas” (palavra tão banalizada) e “tiranos da língua”, chamo a atenção para aqueles que abordam o assunto da maneira como qualquer crítica deveria ser feita: com bom humor. Destaco aqui as sugestões de Gabriel Tacchi, de criar novas atrações como a Sessão Mussum (pra quem é fãnzis do saudoso trapalhãozis consumidorzis de mé) ou a Sessão Língua do Pê, e de Régis Felipe Schorr, que propôs a exibição de filmes legendados em “fanhês” (afinal “fanho também é gente“), mas não em “gaguês”, porque senão o filme acabaria muito antes das legendas…

(texto publicado originalmente em 1 de março de 2005.)

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Pense Nisso! Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista e consultor de comunicação em mídias digitais. É japaraguaio, cínico cênico. torcedor do Guarani Futebol Clube e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos. Já plantou semente de feijão em algodão, criou um tamagotchi (que acabou morrendo de fome) e mantém este blog. Luta para ser considerado mais do que um rosto bonitinho e não leva a sério pessoas que falam de si mesmas na terceira pessoa.

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