As mortes de Terri Schiavo

Por Alexandre Inagakidomingo, 27 de março de 2005

Theresa Marie Schiavo, nascida em 3 de dezembro de 1963, está para morrer pela segunda vez a qualquer momento. Sua primeira morte ocorreu em fevereiro de 1990, quando, aos 26 anos, sofreu uma parada cardíaca dentro de sua casa. Levada ao hospital pelo seu marido, Michael, Terri teve interrompido o fluxo de oxigênio ao seu cérebro durante o tratamento recebido (sua família recebeu cerca de US$ 2 milhões de indenização pelo erro médico). Desde então, Terri está em “estado vegetativo persistente”, e ela só se mantém viva graças à inserção de um tubo de alimentação em seu corpo.

Ao longo destes quinze anos, o marido e os pais de Terri se digladiaram em batalhas judiciais. Enquanto Michael ingressou na Justiça solicitando o desligamento do tubo, afirmando desejar que sua esposa tivesse uma morte digna, Bob e Mary Schindler, pais da americana, lutaram anos a fio para que o aparelho permanecesse ligado. Não os culpo: o “estado vegetativo persistente” é um dos males mais cruéis que pode afligir os parentes de uma vítima. Basicamente, quem mergulha neste estado está com o cérebro morto; no entanto, apesar da inexistência de qualquer função cerebral, o paciente parece reagir a estímulos externos, chorando, sorrindo e até mesmo balbuciando sons. Neste site mantido pela família de Schiavo, encontram-se arquivos de áudio e vídeo que parecem comprovar, quase que irrefutavelmente, que Terri mantém ainda algum vínculo com o mundo externo. No entanto, dezoito especialistas que a examinaram foram unânimes em concluir: ela já não possui qualquer sinal de consciência.

Sexta-feira, dia 18, por intermédio de uma ordem judicial, o tubo de alimentação de Terri foi desligado. Desde então o caso Schiavo saiu da esfera familiar para tornar-se uma imensa barafunda política e religiosa. Jeb Bush, governador da Flórida e irmão de George W. Bush, motivado principalmente pela pressão oriunda dos fortes lobbies “pró-vida” mantidos por grupos conservadores (os mesmos que têm se intrometido em outros assuntos como o direito ao aborto ou o ensino do darwinismo nas escolas públicas), interveio na esfera do Judiciário a fim de tentar aprovar uma lei visando o religamento de aparelhos em casos similares, por enquanto sem sucesso.

Em meio a tudo isso, o corpo de Theresa Marie Schiavo definha. A imagem de seus olhos ainda abertos e o desconforto de saber que ela morrerá de fome e de sede chocam a opinião pública, embora os médicos afirmem categoricamente que ela não padecerá de qualquer nível de sofrimento porque seu córtex cerebral está destruído. Ok, mas vá explicar isso aos pais de Terri. Em meio ao desespero vale tudo, inclusive tentar interpretar os sons desarticulados que saem da boca de Schiavo. Uma matéria do New York Times descreve a demagógica tentativa que Barbara Weller, advogada da família Schindler, fez de conversar com a paciente. Weller dirigiu-se diretamente a Terri e perguntou: você gostaria de viver? Segundo relatos dos presentes à cena, Schiavo teria dito “Ahhhhh” e “Waaaaaaa“, e é até natural que seus parentes tenham concluído que ela tentou responder “I want to live“.

Quis o destino, esse irônico filho da puta, que os capítulos finais dessa tragédia coincidissem com a Semana Santa, que relembra justamente o calvário de Cristo, sua morte e ressurreição. E, em meio a infindáveis discussões sobre o direito à eutanásia (assunto sobre o qual recomendo fortemente uma visita a esta excelente página), só posso lamentar o fato de que o destino de Terri Schiavo não possa ser decidido pela própria paciente. Não sei, sinceramente, o que faria se estivesse no lugar do marido ou dos pais desta mulher. Em um mundo ideal todos nós deveríamos explicitar, tal como podemos fazer com relação à doação de órgãos em nossos RGs, se aparelhos médicos devem ou não ser desligados em casos extremos.

Não posso deixar de recordar três citações. A primeira, “memento mori“, expressão em latim que ressalta o óbvio nem sempre relembrado: todos nós vamos morrer. A segunda, uma frase de Sêneca: “Morremos mil vezes do medo de morrer“. Por fim, a terceira: o epitáfio da lápide de Nancy Beth Cruzan, que faleceu em circunstâncias semelhantes ao caso de Terri: “Nasceu em 20 de julho de 1957/ Partiu em 11 de janeiro de 1983/ Em paz em 26 de dezembro de 1990“.

Requiescant in pace.

Pense Nisso!
Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.

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Pense Nisso! Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista e consultor de comunicação em mídias digitais. É japaraguaio, cínico cênico. torcedor do Guarani Futebol Clube e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos. Já plantou semente de feijão em algodão, criou um tamagotchi (que acabou morrendo de fome) e mantém este blog. Luta para ser considerado mais do que um rosto bonitinho e não leva a sério pessoas que falam de si mesmas na terceira pessoa.

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