Escrever é fácil?
Por Alexandre Inagaki ≈ quarta-feira, 23 de março de 2005
O leitor mais atento já deve ter percebido que este blog anda imerso numa fase reflexiva. Para usar uma imagem de Fernando Pessoa, estou como um novelo embrulhado para dentro. É por essas e outras, por exemplo, que me mantive alheio à interessantíssima discussão sobre o voto nulo desencadeada por Idelber Avelar. Ando tão enredado com meus questionamentos pessoais que mal consigo pôr a cabeça pra fora e pensar decentemente no caso Terri Schiavo, a contenda China x Taiwan, a reforma ministerial que não houve e outros assuntos que acabam desembocando no nosso dia-a-dia. Vivo, pois, numa daquelas fases de introspecção que me fizeram chegar à conclusão de que não sirvo para a literatura.
Explico melhor. Quando ainda fomentava planos de ser escritor, ficava cá encasquetado com o seguinte dilema: meus textos mais, hmm, densos, eram concebidos nos momentos em que estava mais fodido sentimentalmente. Nessas horas eu queria mais que o mundo lá fora se lascasse, porque eu só conseguia pensar na merda dos desencontros dessa vida que faziam com que meus relacionamentos fossem pras cucuias. Por outro lado, quando eu me sentia bem comigo mesmo, a inspiração ia prum bar tomar chope com os camaradas e eu não escrevia uma linha decente sequer.
Foi aí que me apercebi do fato de que jamais conseguiria ser o romancista que almejava ser. Porque o bom prosador é aquele que transcende os fatos de sua própria vida para escrever sobre dinamites pangalácticas, bibliotecas em Babel, desertos tártaros e o que mais sua imaginação conceber, independendo das contas a pagar, das mulheres esquivas, dos filhos na escola, dos parentes serpentes, das crises de hemorróida, etc etc.
Outra coisa: escrever nunca foi uma atividade fácil para mim. Recordo a frase lapidar de Douglas Adams: “Escrever é fácil. Tudo o que você tem a fazer é ficar olhando fixamente para uma folha em branco até a sua testa começar a sangrar“. Quando lembro que Hemingway arrebentou a cabeça com uma espingarda por achar que seu talento havia esgotado, Pessoa renunciou ao amor de uma mulher em nome de sua compulsão literária, Gogol finalizou a segunda parte de “Almas Mortas” para em seguida ateá-la ao fogo e Poe afogou suas angústias até estourar o fígado, penso ainda em autores como Virginia Woolf, Yukio Mishima, Pedro Nava, Anne Sexton, Horacio Quiroga e tantos outros que abreviaram suas passagens por esta vida. E aí, sou tentado a concluir que sábio mesmo foi Rimbaud, que escreveu o que tinha de escrever e depois foi viver sua vida fora dos livros.
Porém, é preciso fazer a devida ressalva: como bem comentou José Roberto Torero em uma entrevista que fiz com ele, também há pedreiros que cortam os pulsos, dentistas que tomam veneno, contadores que pulam das janelas. Mesmo assim, não posso deixar de pensar na definição de Adams e no questionamento que fiz a um cineasta amigo meu: se fossem opções rigorosamente excludentes entre si e você pudesse escolher uma delas, desejaria ser um grande artista ou um cara anonimamente feliz?
(Mas tergiverso, tergiverso. Preciso laçar os pensamentos que se debatem em torno do tema feito cavalos chucros, a fim de concluir este post.)
Felicidade, fora do plano estritamente pessoal, é uma coisa chata e tediosa. Percebam: jornais precisam anunciar mortes, desastres e divórcios a fim de venderem suas edições. Filmes complicam a vida de seus protagonistas com brigas, discussões e mal-entendidos, porque no momento em que o casal se entender, saberemos que a história não deve mais ser contada e chegará ao happy end. Os grandes livros falam de homens transformados em baratas, assassinos de velhinhas ou árabes, esposas adúlteras que se suicidam, tuberculosos em crise existencial, filhos que matam o tio que comeu sua mãe… Enfim, uma desgraceira só. A arte se alimenta dos dramas da vida.
E eu, que tantas vezes tenho sido vil e errôneo, hoje me limito a um dia tentar conseguir apreender a tal arte de viver bem e encontrar uma cúmplice que me acompanhe por aí.
Alexandre Inagaki
Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.
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