Os 10 melhores discos de música popular brasileira
Por Alexandre Inagaki ≈ sábado, 10 de dezembro de 2005
Confesso que sofri. Tudo começou quando Idelber Avelar, professor de literatura e responsável pelo blog O Biscoito Fino e a Massa, propôs que blogueiros e seus leitores participassem de uma eleição dos dez melhores discos de música popular brasileira lançados entre 1950 e 2005. Foi aí que começou o meu suplício, porque, como todos bem sabem, listas serão sempre incompletas, voláteis e insuficientes para abarcar todas as nossas preferências.
Diversos álbuns entraram e saíram da minha lista a todo momento. Dentre os que ficaram de fora, destaco:
- “Chega de Saudade” (1959), o longplay de estréia do Mestre João Gilberto. Não emplacou a lista porque considerei injusto incluir em meu Top 10 um álbum por causa de duas irretocáveis obras-primas (“Chega de Saudade”, para mim a melhor e mais importante música de todos os tempos na história da MPB, e “Desafinado”) em meio a outras dez canções que não fazem parte do meu rol de prediletas da casa. Este foi o único momento em que lamentei o fato de coletâneas não poderem ser incluídas na votação, porque senão “O Mito” (1993), compilação que reúne as gravações dos três primeiros álbuns de João (e que, diga-se de passagem, encontra-se fora de catálogo porque João Gilberto acionou a Justiça a fim de impedir a venda desta coletânea criada pela gravadora sem sua prévia autorização), seria o primeiro lugar de minha lista.
- “Falso Brilhante” (1976), de Elis Regina, indubitavelmente a nossa maior intérprete, em um disco que, além das belchiorianas “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida”, apresenta duas de suas mais emocionantes gravações: “Fascinação” e “Gracias a la Vida”;
- “Roberto Carlos” (1969), álbum de transição entre a Jovem Guarda e a fase “cama-e-mesa”, que apresenta três das baladas mais matadoras do parceiro do Erasmo: “As Curvas da Estrada de Santos”, “As Flores do Jardim da Nossa Casa” e a excepcional “Sua Estupidez”. De quebra, é o disco com a melhor performance soul do Rei: “Não Vou Ficar”, composição de Tim Maia;
- “Vivendo e Não Aprendendo” (1986), a obra-prima do grupo paulistano Ira!, repleta de clássicos dos anos 80 como “Envelheço na Cidade”, “Dias de Luta”, “Flores em Você” e a pungente “Quinze Anos”, um dos melhores retratos já traçados a respeito dos desconcertos daquela fase em que temos tantas espinhas na cara quanto dúvidas existenciais.
Enfim, antes que eu comece a recordar mais ausências, melhor deixar os preâmbulos e partir para a publicação da minha lista. Em tempo: estes foram os resultados da votação discográfica promovida por Idelber.
1) “Tropicália ou Panis Et Circencis” (1968). Ouça uma balada com a beleza de “Baby”. Pense nos recortes justapostos das letras de Capinam, Torquato Neto, Tom Zé, Gil e Caetano, retratos do contexto conturbado de tempos imediatamente pré-AI-5. Viaje com os fantásticos arranjos de sopros e cordas criados pelo genial Rogério Duprat. Deleite-se, com sorriso nos tímpanos, ao ouvir as subversivas regravações de “Coração Materno” (de Vicente Celestino) e do Hino do Senhor do Bonfim, e a maviosa voz de Nara Leão em “Lindonéia”. E desfrute, enfim, de um álbum-conceito que consegue ao mesmo tempo soar assombroso e acessível, experimental e pop, caótico e coerente, renovador e assobiável.
2) “Construção” (1971) - Chico Buarque. Um dos maiores, senão o melhor de todos os letristas da MPB, imortaliza aquela que talvez seja sua obra-prima em versos na música que dá nome ao álbum. Em plena era Médici, “Construção” traça um retrato concreto (e, ao mesmo tempo, um desenho mágico) da realidade embotada do trabalhador brasileiro, em versos proparoxitonamente antológicos. Mas, para além de “Construção” e de sua canção-irmã “Deus lhe Pague” (ambas com arranjos do mestre tropicalista Duprat), Chico gravou ainda outras canções que merecem lugar garantido no cânone de sua obra, como “Cotidiano” (“Todo dia ela faz tudo sempre igual/ Me sacode às seis horas da manhã/ Me sorri um sorriso pontual/ E me beija com a boca de hortelã“), “Desalento” e “Valsinha”.
3) “A Tábua de Esmeralda” (1974) - Jorge Ben. Muito antes de mudar seu sobrenome para Benjor, Jorge chegou ao auge neste álbum que miscigena soul, samba, jazz, bossa nova, funk e blues, amalgamados com um estilo único de tocar violão e letras misticamente delirantes. Do clima descontraído das gravações (que perpassa todo o álbum) até a genuína inspiração (ir)responsável por gemas do suíngue como a sincopada “Brother”, a galanteadora “Minha Teimosia é uma Arma pra te Conquistar” ou a hipnótica “Errare Humanum Est”, este álbum por si só já garantiria a Jorge um lugar entre os maiores da MPB.
4) “Dois” (1986) - Legião Urbana. Juventude, transgressão, rebeldia contra o establishment, esperança ingênua em mudar o mundo: sim, todos nós já fomos jovens. E, em se tratando de rock nacional, não há trilha sonora mais adequada para essa etapa da vida do que Legião Urbana. Ao contrário da pasmaceira vigente no BRock que toca nas FMs atualmente, à base de músicas que parecem orbitar no mesmo repetitivo binômio sexo/maconha, a Legião faz sucesso até hoje por abordar em suas canções assuntos efetivamente relevantes como política, religião, amor e as decepções com a vida em geral. Em “Dois”, Renato Russo alcança o equilíbrio preciso entre a revolta punk e o lirismo de composições como “Tempo Perdido”, “Daniel na Cova dos Leões”, “Acrylic on Canvas”, “Quase Sem Querer” e aquela que talvez seja a mais bela de todas as canções sobre o desencanto juvenil, “Andrea Doria“, dos versos “Quero ter alguém com quem conversar/ Alguém que depois não use o que eu disse/ Contra mim“.
5) “Cartola” (1976). Nascido em 1908, o carioca Angenor de Oliveira ganhou o apelido de Cartola porque, quando trabalhava como pedreiro, usava um chapéu para evitar que seu cabelo ficasse sujo de cimento. Aos 20 anos, fundou com mais sete amigos uma escola de samba no subúrbio em que morava: a Estação Primeira de Mangueira. Por anos a fio compôs diversas músicas, dentre eles os primeiros sambas-enredos de sua escola, sempre convivendo com dificuldades financeiras. Cartola só veio a gravar seu primeiro disco em 1974, aos, vejam só, 65 anos de idade, graças aos esforços do produtor Marcus Pereira. Em 1976, foi lançado o seu segundo álbum (e o meu predileto). Algumas de suas canções: “As Rosas Não Falam”, “O Mundo é um Moinho”, “Preciso me Encontrar” (na verdade, composta pelo igualmente grande Candeia), “Ensaboa Mulata” e “Cordas de Aço”. Preciso ainda justificar a inclusão desta preciosidade em minha lista?
6) “Ideologia” (1988) - Cazuza. Em abril de 1987 Agenor de Miranda Araújo Neto amargava as primeiras crises decorrentes da Aids que já minava seu organismo. Contra a iminência da morte, veio sua resposta através da música: “O meu prazer/ Agora é risco de vida“. Ao mesmo tempo, Cazuza traça um retrato daqueles tempos pós-Cruzado (“Não me ofereceram/ Nem um cigarro/ Fiquei na porta estacionando os carros/ Não me elegeram/ Chefe de nada/ O meu cartão de crédito é uma navalha“), enquanto flerta com a bossa nova e a MPB em composições como “Faz Parte do Meu Show” e “Um Trem para as Estrelas” (em parceria com Gilberto Gil), atingindo o auge de seu lirismo com “Blues da Piedade” (“Vamos cantar o blues da piedade/ Porque há um incêndio sob a chuva rala/ Porque somos iguais em desgraça“).
7) “Foi um Rio que Passou em Minha Vida” (1970) - Paulinho da Viola. Filho de um dos integrantes do Época de Ouro, considerado um dos maiores grupos de choro da história, o jovem Paulo presenciou desde garoto tertúlias musicais com nomes como Pixinguinha e Jacob do Bandolim. Felizmente não sairia imune dessa vivência musical. Ainda jovem, ingressou na ala de compositores da Portela e emplacou, em 1966, o samba-enredo “Memórias de Um Sargento de Milícias”, campeão do carnaval daquele ano. Em 1968, aos 26 anos, gravou seu primeiro disco solo. Um ano depois, venceu o último festival de MPB da TV Record com o clássico “Sinal Fechado”. Em 1970 lançou novo álbum, em que logo despontou uma canção em homenagem à sua escola de coração, a Portela: “Foi um Rio que Passou em Minha Vida”. O samba ganhava seu mais novo mestre.
8) “Pérola Negra” (1973) - Luiz Melodia. Filho de sambista, crescido no bairro do Estácio no Rio, Melodia amalgamou em sua música influências variadas, que vão do rock ao jazz. Antes de gravar seu primeiro álbum, mostrou à dupla Torquato Neto e Waly Salomão uma composição inédita. Os dois, imediatamente fisgados por aquela música, trataram de convencer Gal Costa a gravá-la em um álbum: era “Pérola Negra”. Catapultado pelo sucesso dessa canção, que em sua peculiar voz ganhou um dos mais belos arranjos que já ouvi, Luiz Melodia gravou um imediato clássico da MPB. Além de “Pérola Negra”, de versos contundentemente paradoxais (“Baby, te amo/ Nem sei se te amo“), destacam-se as gravações de “Estácio, Holly Estácio”, “Abundantemente Morte” e “Vale Quanto Pesa”.
9) “Passarim” (1987) - Tom Jobim. Quando se fala no melhor da MPB, não é concebível a omissão do nome de Antônio Carlos Jobim. Aos 60 anos de idade, após ter vivenciado a concepção da bossa nova (da qual foi um dos pais), a consagração nos Estados Unidos (com direito a dueto com Frank Sinatra), enveredado por experimentações instrumentais (misturando jazz a elementos tipicamente tupiniquins) e excursões plenamente sucedidas no mundo inteiro, Tom Jobim gravou “Passarim”, que foi, por incrível que pareça, o primeiro Disco de Ouro da carreira de Tom no Brasil. Como é característico em toda a sua obra, “Passarim” é um álbum repleto de canções de extraordinária riqueza melódica, dentre as quais destaco “Luíza” (cuja letra prova que o maestro, além de compositor, também era versejador de mão cheia), “Anos Dourados”, “Borzeguim” e “Bebel”.
10) “Noturno Copacabana” (2003) - Guinga. Fiz questão de incluir este álbum, o mais recente de toda a lista, porque Carlos Althier de Souza Lemos Escobar, o Guinga, ainda não recebeu todo o reconhecimento que lhe é devido, e isso apesar de já fazer por merecer um lugar no panteão dos Grandes da MPB, ao lado de talentos como Noel Rosa, Chico Buarque, Tom Jobim, Lamartine Babo e Orestes Barbosa. Neste que é o seu sexto álbum, Guinga grava parcerias com letristas do porte de Aldir Blanc, Nei Lopes e Paulo César Pinheiro, resgata as heranças musicais de mestres como Radamés Gnatalli e Villa-Lobos, mescla influências de baião, xaxado, choro e blues e grava, ao lado da cantora Ana Luiza, aquela que foi considerada por ninguém menos que Chico Buarque “a canção do século”: “O Silêncio de Iara”. Que mais pessoas conheçam o trabalho deste mestre, compositor de outras gemas como “Catavento e Girassol” e “Senhorinha”.
(texto publicado originalmente em 7 de março de 2004.)