À medida em que os anos passam, a impressão que se consolida com o tempo é de que nenhuma derrota da Seleção me será mais dolorida do que a da Copa de 1982. Eu tinha 8 anos de idade, mas consigo recordar com clareza da minha inconformidade com os gols do Paolo Rossi, da angústia encalacrada na garganta nos últimos minutos do jogo, do meu pai xingando Dino Zoff pelas defesas incríveis, da dor de cabeça que senti ao final da partida, e que fez com que eu tomasse um comprimido pela primeira vez na vida. A arte foi derrotada, e desde então a Seleção vive um dilema muito bem sintetizado por Celso Viáfora em sua música “A Cara do Brasil”, comparando o escrete de Telê Santana com a equipe pragmática de 1994, campeã após um 0 x 0 com a Itália:
Brasil Mauro Silva, Dunga e Zinho
Que é o Brasil zero a zero e campeão
Ou o Brasil que parou pelo caminho:
Zico, Sócrates, Júnior e Falcão?
Qualquer torcedor sofredor (expressão pleonástica) sabe que futebol é uma caixinha de Pandora. Já está, portanto, acostumado a desdobrar cada fibra cardíaca até os 46 minutos do segundo tempo. Está calejado a ouvir as gozações das torcidas adversárias e de amar incondicionalmente o seu time, apesar de nem sempre esse sentimento ser devidamente correspondido. A expressão “amar é sofrer” nunca faz tanto sentido como quando é utilizada no contexto ludopédico.
O Sport Club Corinthians Paulista já amargou 22 anos e oito meses sem um título sequer, de 1954 a 1977. Já foi apelidado, em 1961, de “Faz-Me Rir”, nome de um bolero gravado por Edith Veiga, devido à péssima campanha no Campeonato Paulista daquele ano. Foi o último colocado da Copa União de 1987, quando só não foi rebaixado porque não houve rebaixamento naquele ano, ganhando o apelido de “Ultimão”. Já teve no elenco jogadores do naipe de Embu (mais lembrado pelas constantes homenagens que a Fiel lhe prestou, em coros com rimas óbvias), Baré, Guinei, Dema e Jacenir, sendo que em 1996 seus atacantes foram Alcindo, Alex Rossi, Marcus Alemão, Caju e o sul-africano Mark Williams. Ou seja, quando torcedores corintianos se autodenominam como “maloqueiros e sofredores”, eles afirmam isso com conhecimento de causa. Ainda assim, creio que ninguém estava preparado para o baque da tarde de domingo.
Em um ano no qual o Corinthians apareceu nos noticiários policiais quase tanto quanto nos cadernos de esportes, graças aos escândalos protagonizados por Alberto Dualib, Boris Berezovski, Kia Joorabchian, Nesi Curi e outros craques da maracutaia extracampo, não diria que o rebaixamento para a Segunda Divisão é o mais amargo capítulo de toda a sua história. Outros grandes times do futebol brasileiro como Palmeiras, Grêmio, Atlético Mineiro e Botafogo do Rio já passaram por esse perrengue. Do mesmo modo, grandes equipes do futebol europeu como Atlético de Madri e Juventus foram rebaixadas nos últimos anos e sobreviveram ao calvário da Série B. Nada mais natural: em tempos nos quais os campeonatos são cada vez mais competitivos e as equipes mais niveladas, nenhum torcedor pode imaginar que seu time jamais passará por um rebaixamento.
Eu me solidarizo com o sofrimento vivido pelos corintianos (e também pelos torcedores do Paraná, Juventude e América de Natal) porque sei bem, muito mais do que gostaria, o que é penar por causa de futebol. Em novembro de 2006, escrevi um texto intitulado Masoquista Ludopedico (des)motivado por mais um golpe no coração desferido pelo meu time, o Guarani Futebol Clube. Para aqueles que não ligam para o esporte bretão ou não entendem o porquê de tanta comoção, deixo aqui a famosa frase cunhada por Bill Shankly, ex-treinador do Liverpool, que sintetiza bem a natureza do amor nem sempre correspondido dos torcedores por seus times: “Futebol não é uma questão de vida ou de morte. É muito mais importante que isso”.
Amor não se escolhe; simplesmente acontece. Tudo seria muito mais simples se pudéssemos escolher a pessoa por quem nos apaixonamos. Não correríamos o risco de amarmos sem sermos correspondidos, não cairíamos na cilada de oferecer nosso coração a quem não fizesse por merecê-lo… Enfim, esses riscos que todos que já amaram alguma vez sabem muito bem quais são. Mas, como diria Riobaldo, viver é muito perigoso.
Neste final de semana meu time foi rebaixado para a terceira divisão do Campeonato Brasileiro. Mais uma dentre tantas decepções que eu, na condição de torcedor do Guarani Futebol Clube, tenho amargado nos últimos anos. Situação desgraçadamente corriqueira a torcedores que amam incondicionalmente o seu clube e que, feito eu, vivem em constante sofrimento: somos um bando de masoquistas ludopédicos. Por vezes me sinto como um marido cuja esposa me chifra inúmeras vezes, com meus melhores amigos, na minha própria cama. Ao chegar em casa, vejo seus amantes refestelados em meu sofá, com os pés na mesa e tomando da minha cerveja. E eu, na condição desgracenta de corno apaixonado, sou incapaz de ensaiar alguma represália, porque continuo amando essa ingrata desgraçada acima de tudo.
É duro acessar diariamente sites e rádios online e tomar conhecimento do amontoado de notícias deprimentes relacionadas ao meu Bugrão. Salários atrasados, jogadores despejados de flats por falta de pagamento, atletas que recorrem à Justiça para abandonar o time, total falta de recursos financeiros fazendo com que falte comida para os jogadores das divisões de base, torcida depredando a sede revoltada com os recentes resultados, etc etc. Faltam perspectivas, faltam alentos, faltam razões cartesianas para que eu possa vislumbrar dias melhores para o Guarani.
Mas o amor fomenta esperanças nos terrenos mais estéreis. Diante disso, abstraio as perspectivas sombrias, as piadas de outros torcedores, as decepções dos últimos campeonatos. É como diz o nosso hino: “Avante, avante meu Bugre/ Que nós vibramos por ti/ Na vitória ou na derrota/ Hoje e sempre Guarani“. Tenho a plena consciência de que meu time de coração não possui a mesma estrutura, muito menos o orçamento ou a quantidade de títulos arrematados por outras “grandes” agremiações. Ainda assim, sou capaz de vislumbrar na escassez de títulos um lado positivo: ao contrário de outros torcedores mal-acostumados, vibro intensamente com cada vitória conquistada, cada gol feito, cada avanço na tabela do campeonato.
Meu Bugrão permanece sendo o único clube do interior que foi campeão brasileiro (1978), além de ter conquistado a Taça de Prata (1981), a Taça dos Invictos (1970), a Taça São Paulo de Júniores (1994) e o bicampeonato da Copa Toyota de Futebol Juvenil no Japão (2001/2002). Também bateu recordes que perduram até hoje, como a de melhor ataque em campeonatos brasileiros (em 1982 o ataque formado por Lúcio, Jorge Mendonça, Ernani Banana e Careca fez 63 gols em 20 jogos - média de 3,15 gols por partida) e vitórias consecutivas (doze, em 1978). Pena que toda essa tradição de nada adianta no momento presente. A vida é assim mesmo: promessas de amor não valem nada, e se dissipam, voláteis, no etéreo território das ilusões.
Neste momento difícil, solidarizo-me com o sofrimento vivido por outros irmãos de sangue alviverde, como Bruno Ribeiro e Delfin, e busco forças em todos os bons momentos proporcionados pelo meu Bugrão, desde o primeiro jogo que assisti em um estádio (Guarani 3 x 2 América-RJ, em jogo válido pelo Brasileiro de 1980).
Afirmou Sergio Fonseca: “amor que não dói não é amor“. Viver é assimilar os socos desferidos na alma e prosseguir combatendo nas batalhas do dia-a-dia. E o amor é como uma lente de aumento que amplifica cada mínimo detalhe do cotidiano. Assim é a minha paixão pelo Guarani: uma profissão de sangue, coisa para poucos e privilegiados iluminados, cujos corações foram tocados por algo maior e inexplicável. Porque o amor desnorteia, e faz com que a lógica cartesiana dance rumba e saia de fininho.
Haja o que houver, eu sempre afirmarei que sou feliz, e muito, por possuir o privilégio de torcer para o Bugrão. Com muito orgulho. Com muito amor.
Durante 90% do tempo, costumo ser um cara zen. Por causa disso, nos raros momentos em que perco as estribeiras e parto para a ignorância, as pessoas que me conhecem se assustam com a raiva que externo nesses instantes. Durante o colegial, só parti para a porrada uma vez, e lembro da sensação maravilhosamente catártica que foi descer o braço em um cara que me enchia o saco com piadas bestas envolvendo minha família, ao externar minha fúria em vez de represá-la como geralmente costumo fazer.
No banco, já saí do sério por duas vezes. Na primeira vez, por causa de um mané que me chamou de “ladrão”, acusando-me de ter ficado com o dinheiro de uma conta de água que ele supostamente teria pago no mês anterior. Retruquei: “das duas uma; ou você é burro, porque saiu da agência e nem viu que seu conta não havia sido autenticada, ou você é filho da puta, porque está me acusando de algo que não fiz. Mas na verdade creio que você é burro e filho da puta“. Não saí pro pau porque gerente e segurança logo interviram no quiproqüó, e o falastrão imbecil sumiu para nunca mais voltar a aparecer na minha frente.
A segunda ocasião foi mais, hmm, bacana, porque ninguém pôde me segurar na hora. Após ouvir a pentelhação de um cliente que se queixava da fila em um dia no qual três colegas meus haviam faltado por motivos médicos, solicitei que ele se acalmasse, explicando a situação e dizendo que não ia mais aturar ter meus tímpanos sodomizados por sua voz histérica. Ele retrucou: “você está dando uma de valentão só porque está do outro lado desse balcão“. A resposta veio num ímpeto só: “ok, não seja por isso“. Saí do guichê, corri bufando em direção ao cara, cheguei empurrando-o e dizendo: “e aí, vamos resolver essa parada lá fora?“. Como era de se esperar, ele recolheu-se ao seu canto, assustadamente surpreendido feito um franguinho sem asas de mãe galinha para se abrigar, e a turma do deixa-disso tratou de aquietar a situação.
Este não é um relato edificante, e até me surpreendo pelo fato de minhas atitudes intempestivas não terem se revertido em alguma espécie de punição administrativa que eu certamente mereceria ter sofrido. Porém, devo dizer que em todas estas situações em que reagi eu me senti maravilhosamente leve, macho pra caralho e pintudão da silva. É nesta ridícula condição de fanfarrão bissexto, portanto, que eu posso dizer que compreendo, perfeitamente, a atitude asinina de Zinedine Zidane ao cabecear aquele folgado zagueiro italiano. Porque há momentos em que o id dá olé no superego e faz com que você simplesmente precise reagir de modo destemperado a certas coisas que você é obrigado a ouvir por aí.
Quando soube que Zidane pediu desculpas por sua agressão, porém sem se arrepender da cabeçada dada em Materazzi, meu respeito ao craque francês, que indubitavelmente foi o melhor jogador de futebol dos últimos dez anos, manteve-se intacto. Porque, oras bolas, herrar é umano. É bóbvio que Zidane agiu de maneira egoísta e acabou por comprometer sua equipe. E, sim, cometeu uma solene bobagem, da mesma maneira que outros mestres da bola como Garrincha (expulso na semifinal da Copa de 62), Maradona (expulso no jogo contra o Brasil em 82 após entrada criminosa no estômago de Batista) e Pelé (na semifinal do mundial de 70 desferiu uma cotovelada em um zagueiro uruguaio que, como afirmou Tostão em uma de suas colunas, deveria ter sido punida com expulsão e subseqüente suspensão da final da Copa). No entanto, ao reagir aos insultos à sua mãe e irmã, Zidane mostrou que tinha sangue correndo em suas veias, ao contrário de certos jogadores que permitiram que o Brasil fosse eliminado de forma vexaminosamente apática deste mundial.
P.S. 3: Segundo o jornal Daily Express, eis o que aconteceu: Materazzi teria beliscado o mamilo de Zidane. Este respondeu à provocação prometendo que entregaria sua camisa ao italiano após o jogo. O zagueiro retrucou: “prefiro tirar a da sua esposa“. A seguir, vieram seguidos insultos à mãe e à irmã do francês, desembocando na cena que marcará para a posterioridade a Copa mais insípida desde 1994.
Não há cacófato nem leitura labial que dê conta de expressar meus sentimentos ao dizer que Cafu deu o que tinha que dar. E o que dizer de notícias como esta: “Roberto Carlos ajeita meia na hora do gol“? Mas enfim, como diria aquela música infame, é isso aí. Enquanto me preparo para ouvir Galvão Bueno narrar o próximo jogo de Portugal bradando que Felipão é o Brasiiiiiiiiiilllll na Copa, chuto a bola pro mato porque o jogo é de campeonato e resgato a alegria perdida assistindo a este vídeo de trilha sonora pra lá de perfeita, que prova que Ronaldinho Gaúcho não é o único a dar suas pisadas de bola por aí.
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P.S. 1: Confira no Blog do Vesgo um vídeo mostrando a manifestação de carinho da torcida brasileira a Parreira durante o jogo contra a França (via Querido Leitor).
P.S. 2: Enquete rápida e rasteira: quem deve ser o novo técnico da Seleção?
Ok. Ronaldo tornou-se o maior artilheiro das Copas, Cafu bateu o recorde de participações, chegamos a 11 vitórias consecutivas em Copas. E daí? Temos números para bradar no livro Guiness de recordes, mas adiamos mais uma vez a aposentadoria de Mestre Zinedine Zidane. Enquanto isso, nosso “persistente” treinador teimou em escalar um time com laterais que não acertavam um cruzamento e um quadrado tão mágico que cometeu a façanha de desaparecer com o futebol que supostamente deveria jogar. Vimos o tal do “joga bonito” só aparecer na partida contra o Japão. Não por coincidência, com uma escalação repleta de reservas que voltaram ao banco graças à confiança que Carlos Alberto Parreira depositou na envelhecida e apática equipe-base de 2002. O resultado todos nós acabamos de testemunhar.
Mas enfim, agora Inês é morta. Minha torcida agora está dividida entre duas seleções que provaram ter espírito guerreiro, vontade de amealhar mais do que recordes para seus currículos e, principalmente, treinadores que não se limitam a ver suas equipes arrastarem-se em campo, efetuando substituições só lá pelos 30 minutos do segundo tempo: Portugal e Alemanha.
Enquanto a torcida brasileira conclama, desesperada, pela entrada de Cicinho, Juninho Pernambucano e Robinho na Seleção, recomendo a todos que confiram este vídeo do Monty Python e esqueçam por alguns instantes que futebol é uma caixinha de Pandora.
Em tempo: a fluidez com que Parreira efetua as substituições necessárias e muda o esquema tático da Seleção durante uma partida me fez lembrar muito da atuação dos filósofos alemães nesta peleja montypythoniana. Continue Lendo
Alexandre Inagaki é jornalista e consultor de comunicação em mídias digitais. É japaraguaio, cínico cênico. torcedor do Guarani Futebol Clube e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos. Já plantou semente de feijão em algodão, criou um tamagotchi (que acabou morrendo de fome) e mantém este blog. Luta para ser considerado mais do que um rosto bonitinho e não leva a sério pessoas que falam de si mesmas na terceira pessoa.