Bloomsday

Por Alexandre Inagakiquarta-feira, 16 de junho de 2010

Anthony Burgess, autor de Homem Comum Enfim, muito provavelmente a melhor introdução à obra de James Joyce, escreveu: “Ulisses é um livro para se ter, para se conviver com ele. Tomá-lo emprestado é provavelmente mais do que inútil, porque a sensação de urgência imposta pelo limite de tempo de leitura luta contra o lento andamento do livro, uma música pausada que exige um ouvido sem pressa e oferece pouco ao olho ligeiro, nutrido pelo jornal”. Relendo estas palavras, penso na aparente contradição que representa a celebração do Bloomsday na Internet, este meio fomentador de leituras em diagonal e portadores do Distúrbio de Déficit de Atenção.

Marilyn lendo, pelo jeito, o capítulo final. Foto de Eve Arnold que encontrei no blog de Milton Ribeiro.

Poucas obras representam tão bem a contemporaneidade quanto Ulisses, este caudaloso romance enciclopédico no qual Joyce criou um amplo painel de toda a humanidade a partir da descrição de um único dia, 16 de junho de 1904 - não por coincidência, o dia em que James Joyce teve seu primeiro encontro, hmm, amoroso com sua companheira Nora Barnacle -, em um único cenário, a cidade de Dublin, através das experiências vividas por três personagens principais: Leopold Bloom, Stephen Dedalus e Molly Bloom. Um livro no qual o período de tempo que compreende 24 horas é dilatado, triturado e reconstruído tal qual suas palavras, putas maleáveis que Joyce não hesitou em enxertar, truncar, fundir e neologizar em uma linguagem que desafia leitores desde a publicação de sua primeira edição, em 1922.

E pensar que durante os sete anos que dispendeu escrevendo seu livro mais conhecido, Joyce conviveu com a pobreza, o alcoolismo, o glaucoma e o espectro da Primeira Guerra Mundial. Mais pedras no caminho surgiriam até que Ulisses fosse enfim publicado, com a decisiva ajuda de Ezra Pound. Acusado de obscenidade, o livro foi censurado nos Estados Unidos, e só pôde ser legalmente vendido naquele país em 1933. Há uma certa ironia subentendida nesses fatos, tendo em vista a leitura feita por Joseph Campbell em O Poder do Mito, que vê como grande tema na obra de Joyce o paradoxo da fé cristã (ilustrado por Romanos, capítulo 11, versículo 32: “pois Deus condenou todos os homens à desobediência, para que pudesse mostrar sua misericórdia com todos”). Se um grande pecador fomenta a compaixão divina, o escritor irlandês teve motivos de sobra para merecê-la: fora a trajetória acidentada de Ulisses, o beberrão e fetichista (vide suas cartas enviadas para a companheira Nora) Joyce morreu praticamente cego e separado de sua filha Lucia, internada num hospício por sofrer de esquizofrenia.

O gif animado que ilustra o clássico monólogo de Molly Bloom, feito pelo site Ulysses For Dummies.

Voltando ao livro: Ulisses é o Everest dos romances, um desafio que demanda tempo, entrega e disciplina dos seus leitores, pré-requisitos que me faltam. E olhem que, feito aqueles alpinistas que levam cilindros de oxigênio, fiz toda uma preparação prévia antes de encará-lo; além de devorar o excelente ensaio crítico de Burgess, li a biografia escrita por Richard Ellmann, adquiri os Dublinenses e o Retrato do Artista Quando Jovem. Ainda assim faltaram-me alguns capítulos para que eu chegasse até o topo da montanha, conseqüência da péssima administração de meu tempo pessoal e da procrastinação crônica que assombra minhas atividades. Um dia chego lá. :)

Enquanto isso, recomendo uma visita ao já clássico Ulysses for Dummies. Recomendo também as dicas dadas por Edson Aran para comemorar o Bloomsday. Exemplos: “besunte o corpo com azeite de oliva e saia procurando poetas concretos pra abraçar” ou “vista-se de drag queen e desça a rua da Consolação, em São Paulo, recitando o monólogo da Molly Bloom”.

Aos curiosos em conhecer detalhes da vida amorosa de Joyce com Nora Barnacle, camareira de hotel por quem o escritor se apaixonou fulminantemente, e que inspirou correspondências do mais alto grau pornográfico (um trecho: “Escreva mais e com mais sacanagem, querida. Esfrega o teu grelo enquanto escreves para te fazer dizer coisas cada vez piores. Escreve as palavras feias em grande, sublinhando-as e beija-as e encosta-as por um instante em tua deliciosa boceta quente, querida, e também levanta o vestido por um instante e coloca-as debaixo de tua cara bundinha peidorrenta.”), recomendo este link. Por fim, vale a pena conferir o post de Milton Ribeiro sobre o Bloomsday (no qual encontrei a foto de Marilyn que ilustra este texto).

* * *

P.S.: Trecho de Levantado do Chão, meu livro favorito de José Saramago (1922-2010): “Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais.”

Pense Nisso!
Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.

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  • http://www.lucredigitando.com Marcelo Gustavo

    Gostei do seu blog Alexandre, tenho visitado sempre. Abraços

    R: Valeu, Marcelo. Volte sempre. :) []‘s!

  • Ribeiro

    Por indicação do meu amigo Erê, então casado com o poeta Amaral Cavalcante, aos 22 anos comprei a volumosa obra de James Joyce, “Ulisses”, tentei ler por dois meses, e olha que nessa época devorava tudo que encontrava pela frente em termos de literatura, aos 16 anos anos já tinha lido o substancial “Crime e castigo” de Dostoievski, num tempo bastante curto. Confesso que não consegui chegar a metade do Ulisses e acabei dando ele presente de anvesário para meu querido amigo Aristides Porto. Realmente é um livro muito interessante, mas, assim como a obra de Habermas, há que se ter uma vida de reserva para poder gastar o tempo devido para ler (risos)…

  • Renata

    A obra merece um feriado só seu, é indiscutível. Entretanto, no meu caso, espero um dia completar a tarefa hercúlea de chegar até o final do livro. Abraços.

  • http://www.educaedu-brasil.com karla

    oi, gostaria de obter o email de contato do blog.
    obrigada.

    R: Oi Karla, é o mesmo email informado no sidebar direito: [email protected]. Um abraço!

  • http://www.arenadesignificados.blogspot.com Gustavo Prado

    Discordo em um ponto: acredito que Rayuela, pela disposição labirintica e fragmentada, represente melhor a conteporaneidade. Não existe linearidade, a construção narrativa está no leitor, que surge como “protagonista”. Um verdadeiro Jogo de Amarelinhas.

    R: Gustavo, boa ponderação. E recordo a história de que Rayuela antecipou a navegação por hyperlinks da WWW com o roteiro alternativo de leitura proposto por Cortázar.

  • http://endimmawess.blogspot.com/ endim mawess

    será que nessa foto a marylin já era mulher do miler?

    R: Boa pergunta. Tudo indica que sim, né? Não creio que o Joe DiMaggio recomendaria Ulisses como leitura para a Marilyn. :)

  • http://www.micropolis.blogspot.com Marilia

    Ina, você não tá divulgando teu próprio livro ? http://www.poiesis.org.br/casadasrosas/agenda_eventos_interna.php?id=396
    abraços!

    R: Na verdade sou apenas um dos vários colaboradores do livro, né Marilia? Sem essa de nutrir sentimentos de posse. :)

  • http://www.blogpaedia.com.br Isaias Malta

    Tenho esbarrado muitas vezes contra esta obra titânica, que tenazmente teima em continuar no cimo na minha prateleira. Oxalá o Monólogo de Molly Bloom pudesse ser recitado por alguém de fôlego infinito e bochechas vermelhas!

    R: Isaias, confesso que fiz quase o mesmo que a Marilyn na foto do post. Iniciei minha leitura de Ulisses pelo final, devorando o monólogos dos Sims de Molly Bloom. :)

  • Enrique

    Hey,tudo bem?!
    Te enviamos um convite para a inauguração da loja Sample Central há uns dias.
    Gostariamos de saber se você recebeu e reforçar nosso interesse na sua presença! :)

    Obrigado!

    R: Valeu pelo lembrete, Enrique. O convite já estava soterrado na pilha de emails que chegam toda manhã na minha caixa postal!

  • Anônimo

    O Paulo Francis uma vez definiu: Ulysses é um livro aonde quaisquer dez páginas são maravilhosas, mas encarar tudo é dose para leão.
    Decidi encarar o desafio aos dezessete anos, naquela idade em que eu já entendia que tempo livre iria virar commodity valiosa e rara em poucos anos.
    Li minha média de dez páginas todo dia. Hoje lembro pouquíssimo de tudo o que li ali. XD

    R: Lancaster, essa sensação descrita pelo Paulo Francis eu vivenciei quando enfrentei a bela jornada de ler Guimarães Rosa. :)

Pense Nisso! Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista e consultor de comunicação em mídias digitais. É japaraguaio, cínico cênico. torcedor do Guarani Futebol Clube e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos. Já plantou semente de feijão em algodão, criou um tamagotchi (que acabou morrendo de fome) e mantém este blog. Luta para ser considerado mais do que um rosto bonitinho e não leva a sério pessoas que falam de si mesmas na terceira pessoa.

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