A Porta

Por Alexandre Inagakisexta-feira, 24 de novembro de 2006

O post de hoje traz um conto escrito por Alex Castro. Responsável por um dos blogs mais conhecidos do Brasil, Alex mora atualmente em Nova Orleans, onde desfruta de uma bolsa de estudos. Segundo suas próprias palavras, ele é um cara feliz. Nas horas vagas, come, dorme, transa, faz pães, fuma cachimbos, beija pés, brinca com seu cachorro, lê, escreve, passeia, explora, transa e experimenta. O quê, eu não sei: melhor perguntar a ele.

Mas, como você poderá constatar alguns scrolls abaixo, Alex também é um escritor que conhece como poucos seu ofício. “A Porta” segue à risca os ensinamentos de mestre Júlio Cortázar, que dizia: “Enquanto no romance você conquista o leitor por rounds, no conto você deve abatê-lo por nocaute“. E, de fato, Alex Castro leva à lona seus leitores. Não apenas em “A Porta”, como também nas quatro outras narrativas que compõem o livro Onde Perdemos Tudo, à venda de forma pouco usual no Brasil, onde são raros os internautas dispostos a pagar algo por conteúdo (por melhor que ele possa ser): e-book, em formato PDF, por meros 7 reais ou 3 dólares (procedimentos devidamente explicados nesta página). A seguir, uma amostra grátis deste autor que, como disse Zander Catta Preta, é um filho da puta que escreve bem, desgraçadamente bem. Bom nocaute.

* * * * *

A Porta

Jesus respondeu: Façam todo o esforço possível para entrar pela porta estreita, porque eu lhes digo: muitos tentarão entrar, e não conseguirão. Uma vez que o dono da casa se levantar e fechar a porta, vocês vão ficar do lado de fora. E começarão a bater na porta, dizendo: ‘Senhor, abre a porta para nós!’ E ele responderá: ‘Não sei de onde são vocês’. E vocês começarão a dizer: ‘Nós comíamos e bebíamos diante de ti, e tu ensinavas em nossas praças!’ Mas ele responderá: ‘Não sei de onde são vocês. Afastem-se de mim‘”. Lucas 13, 23-27

A most melancholy voice sobbed, ‘Let me in - let me in!’ ‘Who are you?’ I asked, struggling“. Lockwood, em Wuthering Heights, de Emily Brontë

Amanda e eu nos conhecemos na boate. Não dentro: na porta.

Eu pastoreava uma matilha de amigos, todos pavlovianamente vestidinhos no melhor estilo da estação, e só eu de roupas coloridas. Amanda nos relanceou um olhar e sentenciou: todos entram, menos o aloha. Camisa florida aqui, nunca.

Eles escorraçaram-se para dentro e eu não ranqueei um segundo olhar de Amanda. Resignado, carreguei minhas frustrações para casa.
Correram algumas semanas e a tribo decidiu, num supetão, voltar à boate. Como sempre, eu estava fantasiado de eu-mesmo e carimbei: aquela ruiva vai me deixar na porta de novo. Eles me tranqüilizaram: imagina!, se eu fosse barrado, iríamos todos para outro lugar, e muito melhor!

Amanda me farejou de longe e não tirou as narinas de mim. O pessoal pressentiu: a ruiva da porta está toda aberta pra você. Assentamos mais de hora na fila e Amanda sempre me desviando olhares sonegados. Quando chegou nossa vez, chicoteou: os amiguinhos com estilo, entram, o camisa-florida, fica. E não me olhou mais.

Os amiguinhos, aqueles putos, nem tossiram: tinham esbarrado com a Alicinha na fila, combinaram de se esbarrar mais lá dentro, e você viu a bunda da Alicinha hoje?, não podiam deixar a bunda da Alicinha na mão!, e entraram. Eu, mais uma vez, me deportei de volta pra casa.

No mês seguinte, meus mui-amigos planejaram com antecedência uma nova ida à boate. Eu não queria participar, mas houve pressão. Aparentemente, a bunda da Alicinha estaria lá. Por sorte, tia Eulália morrera no ano anterior e eu tinha algumas roupas escuras no armário.

Depois da hora ritual de fila, os suplicantes chegaram diante do oráculo. Os olhos de Amanda sussuraram, discretíssimos, que me reconheciam, mas o resto de seu corpo preferiu não se comprometer. Fez um gesto soberbo e ganhamos entrada, sem burocracias.

Tirando o bundão da Alicinha - realmente fenomenal, mas melhor apreciado diariamente, de nove às onze, no posto seis - a boate era a estampa de qualquer outra: escura, ensurdecedora, emaranhada, esfumaçada.

E, por entre a fumaça, logo vi o cabelo malagueta de Amanda marchando com diligência, olhando para o escuro, estalando os saltos. Pensei: está a minha espreita! Mas não: ventou por minha mesa duas vezes e não fez nada. Por fim, fez. Ocupou a cadeira à minha frente e desferiu: eu não devia ter te deixado entrar. Você nessas roupas é a profanação de um lugar sagrado. E a culpa é minha. Daqui a duas horas, o movimento some e eu estou liberada. Me espere aqui e vamos entrar em um lugar muito melhor. E entramos.

Nossos dois anos de casamento foram delirantemente felizes, até o dia em que eu estava tomando banho e ouvi, por entre a água, o som da chave na fechadura. Só Amanda tinha a chave. Fechei a água e chamei: Amanda? Ela uivou: sou eu, sou eu, abre a porta, por favor, me deixa entrar. Tudo bem?, eu quis saber, ainda no chuveiro. A essa hora, ela deveria estar no trabalho. E por que sua chave não funcionava? A resposta veio num estalo: abre essa porta agora, rápido.

Pinguei pelo banheiro, correndo, mal encostando a toalha no corpo, tocou o telefone e nem atendi, mas a secretária atendeu:

Alô? Tem alguém em casa?, implorou a voz. Era Norma, colega de trabalho de Amanda. Atende, por favor, suplicou e, então, desabou: meu deus, não sei o que fazer, a Amanda, ela, nós estávamos tentando entrar no ônibus, o motorista não parou, ela foi correr atrás, tentou pular pela porta aberta e o motorista fechou a porta na hora, ela ficou com o braço preso, foi sendo arrastada, meu deus, meu deus!, e eu, já enxuto, me aproximei do telefone, mas não atendi, olhei a porta, mas não abri, coloquei a mão sobre a secretária e senti sua vibração: eu corri atrás do ônibus, não acredito que estou contando isso para uma secretária, você não está aí?, não sei o que fazer, eu corri atrás do ônibus, vi a Amanda sendo arrastada pela rua, ela gritou o tempo todo, eu também, os passageiros gritaram, mas o motorista não parava, não parava, até que parou, parou e fugiu, mas ela já estava morta, morta, e estou aqui do lado do corpo, preciso de voc-clique.

No silêncio, ouvi a respiração canina de Amanda do outro lado e caminhei até lá. O som do meu celular tocando chamou sua atenção e ela se achegou à porta, me deixa entrar, por favor, eu preciso entrar, eu preciso te ver, e passou os dedos sensualmente em volta do olho mágico, como se alisando meu rosto, aqueles dedos de unhas longas e negras que sempre me excitaram.

Acariciei a maçaneta, que soluçou mecanicamente ao meu toque. Amanda eriçou as orelhas e ganiu: por favor, eu não quero ir embora, você prometeu que iríamos ficar juntos pra sempre, que me protegeria e me acompanharia, não pode me largar aqui fora, eu te peço.

Me espalmei contra a porta como uma lagartixa e fiquei apreciando Amanda, registrando cada poro, cada pestana, sentindo ainda o aroma cítrico do seu sabonete de limão, embalado pelo som frustrado da chave na fechadura, chorando lágrimas secas.

Algum tempo depois, sumiu. Só fui vê-la de novo quando reconheci o corpo.

Praia do Meio, Trindade, Paraty, 2 de agosto de 2004

Pense Nisso!
Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista, consultor de projetos de comunicação digital, japaraguaio, cínico cênico, poeta bissexto, air drummer, fã de Cortázar, Cabral, Mizoguchi, Gaiman e Hitchcock, torcedor do Guarani Futebol Clube, leonino e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos, não necessariamente nesta ordem.

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Comentários do Blog

  • romano

    texto bom, gostei mais do início com sua repetição e humor, suas cores berradas e ao fim de tudo, barradas.
    Não acho que o nocaute precise vir acompanhado de morte, ou de sua reelaboração. Prefiro quando é um nocaute técnico, quando os dois vão cada um para o seu lado após a luta.
    valeu pelo texto inagaki.

  • Andreia Alves Rafel

    Muito bom… agora quero o meu exenplar pois quero ler todo o resto!!!!
    tem resto??
    D++++++.
    Sim, Andreia, tem mais: clique aqui e saiba como adquirir o e-book de contos do autor de “A Porta”, Alex Castro.

  • Zé do Caroço

    Puxa velhinho, que texto profundo. Muito o que se pensar.
    Mas no final é isso aí…a vida é uma só e assim mesmo, a gente não pode ficar esperando a vida bater na nossa porta… e qdo a gente sai da nossa segurança fisica, emocional, profissional, etc…pra botar a cara a tapa, muitas vezes acontece o pior.

  • Cileno

    Parabéns!
    Demontra muita emoção e foi um ótimo cruzado!!!

  • http://rosebud-nyc.blogspot.com Andréa N.

    Ai, que triste. Nossa.

  • http://belacaleidoscopica.blogspot.com Bela

    Isso é um belo cruzado de direita na ponta do queixo!
    Uau!
    Vou lá comprar o meu!
    Brigada pela dica ( + uma), Ina.
    beijos jingle bells
    ps: meu aniv. é O reveillon! Rá!

  • http://dearprudence7.blogspot.com tainá

    No dia do meu niver.
    são tantos filmes. tantos.

  • Bruno

    bom. mas 2 anos de casamento?

  • milena

    bom, mas o pessoal exagera… ai ai…

  • http://www.contaoutra.wordpress.com marie.

    Ai, essas mulheres de cabelo malagueta…

  • http://lombaxomba.blogspot.com Pedro Victor

    A dramática vitória do time dos atores transformou o campo em palco, mostrando que futebol é uma caixinha de Pandora.
    Concomitantemente ao mesmo tempo, a equipe dos empresários não deu trabalho à representação dos operários, sofrendo clamorosa goleada de muitos gols.
    Enquanto isso, o geógrafo sumiu do mapa. O datilógrafo permaneceu batendo na mesma tecla. O cadáver do milionário foi encontrado podre de rico. O salva-vidas nadou, nadou e morreu na praia. Este, a propósito, torcia para a Portuguesa de Desportos.
    A festa dos relojoeiros não tinha hora para acabar. O alfaiate arregaçou as mangas, enquanto o cozinheiro botava a mão na massa. Corria um boato, mas este foi pego no doping. Os empresários anões anunciaram crescimento negativo da empresa.
    A briga entre os donos de cantinas acabou em pizza.
    Dez entre dez atrizes atuam. Humm, pensando bem… Deixa pra lá. O consenso tornou-se unanimidade geral entre todos.
    Devagar se vai lentamente. O marinheiro ficou a ver navios, porque a justiça tarda mas não chega na hora.
    O silêncio vale ouro, e o sussurro, prata. A luva caiu como uma chuva. Apressados comem cru, atrasados roem ossos. Estes, aliás, serão os primeiros e rirão melhor. Um texto só termina quando acaba. E vice-versa. (Alexandre Inagaki).

  • http://www.patriafc.blogspot.com Bruno Ribeiro

    Caímos, Ina. Caímos…
    Sim, eu sei. Ainda estou tentando assimilar o golpe, Bruno.

  • http://dezazero.com Dennis Schwartz

    Uau, cara que narrativa, surpreendente… ainda estou digerindo, mas, certamente me provocou.

  • http://zaimstriker.blogspot.com André Medeiros

    Pô gostei bastante da historia não só da parte que ele ve a mulher morta mais a parte de eles se casarem.Por que será que quando as pessoas se odeiam de primeira sempre sai casamento?

    Legal a sua iniciativa de colocar o conto de Alex Castro, eu vi a historia desse cara sortudo, EUA dias antes do furacão, perder o cachorro e tudo mais…Legal pra caramba seu blog espero que continue assim

  • http://selmashock.blogspot.com/ selmashock

    Eu li o conto que o Alex Castro escreveu e achei muito interesante ele nos conta uma grande verdade.

  • http://deu-errado.blogspot.com/ tayane

    uma ótima idéia a sua de postar um conto dele….
    realmente concordo com você o cara sabe mesmo como escrever.
    nos motiva a comprar e ler as outras narrativas do livro…

  • http://ferblogeer.blogspot.com/ fernando

    Gostei da estoria contada, só não gostei da parte sobre a garota morta aparecer na casa dele pois isso é biblica tecnica fisica e piscicolojicamente impocivel.

  • http://agentesdoagentek.blogspot.com/ kleber

    Querido Alex Castro, fiz a leitura de seu texto intitulado “A porta”, e achei o seguinte :
    Não importa a sua religião, mais não esqueça de acender uma vela para essa amiga em sua memória.
    Algumas pessoas não gostam de vela acesa, mais eu particularmente acendo, de preferencia em casa, ou em dia de finados, em um cemitério local.

  • http://escondidinhos.blogspot.com/ Moniky Cruz

    Excelente! Apesar de triste…
    Faz a gente refletir, pensar na vida, nas coisas reais, provoca uma interação fantástica entre o leitor e o conto.
    Duas dicas: poderia haver forma mais simples de venda… e os brasileiros podiam dar mais valor a leitura também!

  • http://jota-midiasdv.blogspot.com/ João

    Muito interessante e envolvente.
    Alguns correm o risco de derepente se reconhecer.

  • http://ops-ops.blogspot.com/ Larissa

    É mesmo um conto, que não tem nada a ver com os contos de fadas, lidos por crianças.
    Quem imaginaria que a grande Amanda iria morrer no final…
    Nossa até me atrapalhei, porque depois ela chamava na porta…
    Nossa muito bom o conto e o que foi aquilo ser arastada por um idiota de um motorista de ônibus.
    Meu Deus é um conto bem emocionate principalmente nas últimas linhas.

  • http://www.karllenny.blogspot.com Aninha *Karllenny*

    Muito interessante!!!

  • Jonas

    Texto bom. Só que o blog não é um dos mais conhecidos do Brasil. Longe disso…
    Critérios são sempre subjetivos, Jonas. Mas eu creio que um blog como o LLL, que estava na lista dos 15 mais linkados do Brasil segundo o saudoso Top Links, que foi citado em veículos como o No Mínimo e O Globo, e que possui um dos mais fiéis públicos que conheço, está sim entre os mais conhecidos.

  • http://www.andrewernner.blogsport.com Andre Wernner

    Gostei do texto do Alex Castro.
    Flui fácil, não é rebuscado e faz o leitor se projetar na cena seguinte. Ele brinca com as palavras e mexe com a imaginação do leitor…
    Valeu, parabéns e que as vendas fluam!

  • http://www.circulando.com Cláudio Rúbio

    Fera.

  • http://lagrimaslavadas.blogspot.com Aleksandra Pereira

    Lembro que quando li “A Porta”, fiquei passada. Por ter perdido um amigo em condições muuito parecidas, e por ter sido conquistada pela prosa do Alex. Recomendo, é um achado.

  • http://www.vestidodeflor.com.br CEL


    Sem palavras.
    Excelente.

  • http://noticiasdomundo.zip.net Bia Cardoso

    Tá vendo porque Natal é tão legal, Inagaki dá presentes aos leitores.
    Agradecimentos ao CEL e ao Alex!

  • http://liberallibertariolibertino.blogspot.com alex castro

    agora quero ver se esse pessoal que gostou tanto vai comprar o livro… :) eh baratinho, gente… deixem de comprar um big mac e se tornem acionistas da nova literatura brasileira, vai… ;)

  • http://fudeblog.zyakannazio.eti.br Cesar Cardoso

    Noooosa… entrei em knockdown. Um dia eu consigo escrever um conto com a metade da força do conto do Alex…

  • http://www.z-cp.com zander catta preta

    Já não bastava eu ter chorado com o texto do Alex quando recebi o PDF, agora me pego lacrimejando no meio do expediente…
    Isso não se faz!!!! =)
    Um abraço!!!

  • http://liberallibertariolibertino.blogspot.com alex castro

    Ina, muito, muito obrigado, ficou o bicho!
    Menina-Prodigio, eu adoraria. Se vc souber de um jeito, me diga. Eu tentei usar a Sendep que o André Dahmer usa pros Malvados, mas todos os leitores estavam tendo muito problemas, time out o tempo todo, muitos erros, etc, e voltei aos depósitos. O lado bom é que a maior parte dos cartões hoje em dia É internacional. :)

  • http://www.morroida.com.br Fabião Morroida

    pqp bicho
    porra
    traumatizei

  • http://meninaprodigio.blogspot.com Menina-Prodígio

    Se a forma de pagamento fosse mais simples, o livro dele ia vender mais.
    Esse conto é um soco no nariz.
    Mas é fácil: faça um depósito em conta, e você recebe o arquivo assim que o pagamento for confirmado - Alexandre Moraes de Castro e Silva, 043040097 70, Unibanco 0100 133191-5. Depois, é só entrar em contato com o Alex!

  • Carmen

    Pouta que parile!!!

  • Bea

    Nossa. Realmente, um nocaute.

  • http://decuro.blogspot.com Aztronauta

    Caralho… Muito bom o texto Inagaki… Show…

Pense Nisso! Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista e consultor de comunicação em mídias digitais. É japaraguaio, cínico cênico. torcedor do Guarani Futebol Clube e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos. Já plantou semente de feijão em algodão, criou um tamagotchi (que acabou morrendo de fome) e mantém este blog. Luta para ser considerado mais do que um rosto bonitinho e não leva a sério pessoas que falam de si mesmas na terceira pessoa.

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