Rio Content Market Parte 1- Representatividade de Gênero no Mercado Audiovisual

Por Cíntia Cittonsábado, 02 de abril de 2016

O agitado mês de março foi provavelmente um dos mais interessantes do ano, graças à oportunidade que tive de participar em dois eventos tão ricos em conteúdo como o Rio Content Market e o Mulheres Digitais (post em breve).

O Rio Content Market é considerado o maior evento de conteúdo audiovisual da América Latina, e em sua 6ª edição reuniu como palestrantes e debatedores nomes de extrema relevância para o setor, e recebeu um público composto pelos principais players do mercado audiovisual internacional e brasileiro: produtores, diretores, roteiristas e executivos de canais e estúdios. Além disso, um espaço próximo da sala principal hospedou uma exposição onde foram realizadas 1.180 reuniões de rodadas de negócios, que resultarão em produções exibidas em todo o mundo.

Estive por lá nos dias 9 e 10/3 e logo percebi que os slogans “Here We Do Business” e “Here We Do Emotion” não tinham nada de propaganda enganosa. Eu precisaria ser pelo menos umas 3 para acompanhar todas as conversas interessantes do evento, mas acabei me concentrando em representatividade de gênero, processos criativos, novos modelos de negócios e novas plataformas de criação e distribuição de conteúdo. Foram compartilhadas tantas informações interessantes que escreverei posts para cada um desses assuntos.

Representatividade e Narrativas de Gênero

Com pelo menos três painéis específicos sobre o assunto concentrados na manhã do dia 9, o evento trouxe algumas das pessoas mais relevantes trabalhando essa questão no meio audiovisual:

Questões de Gênero

Rhys Ernst abriu a manhã do dia 9 falando sobre a série Transparent (Amazon) e a necessidade de retratar pessoas transgênero de forma mais completa: “Para mim sempre foi muito importante contar histórias que incluíssem minorias, pessoas que estão marginalizadas ou que não são suficientemente representadas no mercado audiovisual, inseri-las em uma narrativa maior. Além disso, normalmente os personagens transgênero costumam ser retratados nas telas como piada ou como monstros, e o que diferencia Transparent é justamente que retrata o momento em que o personagem vai se descobrindo e se assumindo como transgênero, mas antes disso ele é um pai, ele está inserido numa família, tem uma história, uma religião, pertence a uma comunidade…”

Para reduzir o preconceito é importante mostrar às pessoas que, antes de transgênero, trata-se de um ser humano que tem qualidades e relacionamentos como qualquer outro. Representar minorias gera empatia, que é um importante instrumento de mudança. (Rhys Ernst)

Atualmente ainda é muito difícil para pessoas trans conseguirem bons empregos, e eles ainda sofrem violência. O Brasil é considerado o pior país do mundo para transgêneros, concentrando 50% do índice MUNDIAL de homicídios de pessoas trans, que aqui têm uma expectativa de vida que dificilmente ultrapassa os 30 anos. Não dá para ser indiferente com essa realidade.

O produtor diz que a série busca envolver e empregar pessoas que realmente são transgênero. Não apenas para evitar caricaturas, mas também para lhes dar chances que, de outra maneira, provavelmente (e infelizmente) não teriam.

O primeiro capítulo da série foi mostrado no evento. Acredito que a Márcia Zanelato matou a charada sobre o impacto da obra: “A meu ver, Transparent é uma série que interessa a todas as pessoas, na medida em que ela vai trabalhar a singularidade, a auto-percepção, a validação da auto-percepção. Acontece uma coisa muito interessante na série: na medida em que o pai (Maura) se revela, a família começa a se revelar, todos passam a se perceber de uma outra maneira e pensar: ‘bem, talvez eu esteja muito enquadrado nesses limites que já foram impostos a mim desde sempre, e talvez eu possa ser mais eu’.”

Acho que a única coisa que vale a pena perguntar realmente na vida é ‘eu sou de fato o que sinto que sou?’ A série Transparent nos leva para esse lugar, da singularidade, e a voltar a se dar o direito de estar em aberto, de se procurar novamente. (Márcia Zanelato)

Uma Conversa Com Autoras e Produtoras

As autoras e produtoras Anna Muylaert, Rosane Svartman, Petra Costa, Vivian de Oliveira e Débora Ivanov falaram sobre a presença da mulher no mercado audiovisual brasileiro, o que o olhar feminino pode trazer para esse mercado e quais os maiores desafios enfrentados atualmente.

A conversa foi amparada por dados de um dos estudos mais recentes feitos sobre o assunto pela ANCINE e trazidos por Débora Ivanov, onde se mostra que as mulheres são apenas 20% das diretoras de obras nacionais, 22% das roteiristas e que só têm uma presença quase igualitária na produção executiva. Isso significa que podem participar na concretização das obras, mas ainda não ocupam espaço suficiente em postos que influenciam mais diretamente a construção da narrativa. Quanto ao tipo de conteúdo, as mulheres têm maior participação em documentários do que em ficção. A boa notícia é que a partir de 2016 a ANCINE também vai adotar paridade de gênero para a seleção de todas as obras do Fundo do Setor Audiovisual.

A cineasta Rosane Svartman preparou um apanhado de cenas de seus filmes que evidenciam o olhar feminino para introduzir algumas histórias de bastidores como exemplos da importância de mostrar que um filme, mesmo que não seja especificamente sobre mulheres, pode retratá-las de forma menos estereotipada. Seu relato também ilustrou quanta resistência do mercado e até de alguns atores uma diretora precisa enfrentar para contar histórias a partir do ponto de vista feminino.

Petra Costa (diretora de Elena e Olmo e Gaivota) comentou os ataques de alguns extremistas católicos e evangélicos por causa do vídeo de divulgação de sua nova obra, que aborda a presença da mulher nas telas e falou sobre as dificuldades enfrentadas pelas mulheres em encontrarem papéis onde elas realmente se sintam representadas.

Acho que o que a gente vê determina muito o que a gente acha que pode sentir, como se criasse recipientes aceitáveis para o empacotamento da alma. (Petra Costa)

Falando em religião, Vívian de Oliveira (autora de Os Dez Mandamentos, novela da Record), mencionou o papel da mulher na época retratada na Bíblia, dizendo que sempre buscou mostrar em suas obras mulheres fortes que, apesar de terem pouca voz nas principais decisões, possuíam forte influência dentro de suas casas.

Anna Muylaert falou dessa influência doméstica posteriormente, comentando que no mercado de trabalho em geral, mas também no audiovisual, a mulher muitas vezes está autorizada a fazer o trabalho, mas não a ter o crédito. Ou seja, continua influenciando decisões apenas da porta para dentro. Anna também comentou que no início não via a si ou seu filme como empoderadores para as mulheres, e que só foi se dar conta disso mais tarde, pela reação das pessoas durante a divulgação e quando leu numa crítica que seu filme passava com sucesso no teste de Bechdel. Após o sucesso internacional de seu filme Que Horas Ela Volta?, Anna comentou que vivenciou as situações sexistas mais violentas de sua vida. Segundo ela, o mercado acha “bonitinho” uma mulher dirigindo um curta ou um documentário, mas que a coisa muda de figura quando se trata de um tipo de obra mais “valorizada”. Da mesma forma, o cinema admite com maior facilidade as mulheres na produção executiva do que em postos de maior poder de decisão, como roteirista ou diretora.

Por ter feito sucesso internacional, por ter vendido e por ter chegado numa esfera de dinheiro que eu nunca tinha chegado antes, eu fui vivenciando situações sexistas as mais violentas que senti na minha vida, mais até do que no início da carreira. (Anna Muylaert)

Estas conversas abriram caminho para a apresentação dos resultados de estudos feitos pelo Instituto Geena Davis.

Se ela pode ver, ela pode ser

Ao acompanhar os programas de televisão e cinema com sua filha, a premiada atriz Geena Davis percebeu que havia poucos modelos de mulheres para que as meninas se espelhassem, pois elas geralmente não apareciam como protagonistas e, quando o faziam, era em profissões e posições tradicionais dentro de um patriarcado (secretária, esposa, amante…).

Por que é importante a representatividade na TV? Como foi mencionado por Petra Costa no debate anterior, mesmo quando adultos, buscamos referências o tempo todo para “calibrar” nossa percepção do que é socialmente aceitável.

No caso das crianças, o impacto dos conteúdos é ainda maior, pois elas ainda são vulneráveis por não terem todas as ferramentas críticas para questionar esses conteúdos. Segundo a pesquisadora Catharina Bucht, “as crianças são ativas e curiosas, e estão sempre buscando uma maneira de construir significados para entender o mundo. Elas querem aprender, se divertir, construir relações sociais e criar sua própria identidade - também por meio da mídia“.

Conhecendo de perto a influência da mídia, Geena resolveu criar o Instituto Geena Davis de Gênero na Mídia, para conscientizar o mercado audiovisual de que essa diferença existe e buscar por mudanças. Atualmente, o Instituto faz um acompanhamento dos 10 maiores mercados audiovisuais do mundo e apresenta os resultados de seus estudos e pesquisas para inspirar as mudanças necessárias. Madeleine Di Nonno, a CEO do Instituto Geena Davis de Gênero na Mídia trouxe ao evento os resultados dos últimos levantamentos feitos pela instituição, mostrando dados inquietantes.

Apesar de representarem 49% da população mundial, as mulheres apareceram com falas em apenas 30% dos filmes produzidos em 2014. Nos Estados Unidos, uma pesquisa com meninas de 6 anos mostrou que muitas delas já escolhem as bonecas que tiverem a aparência mais “sexy”.

Além disso, aparecem normalmente em papéis estereotipados e excessivamente sexualizadas.


Quanto às atividades, a frequência com que as mulheres aparecem no cinema em profissões relacionadas a ciências exatas e tecnologia nos lembra até um número algo traumático para nosso país.


A ideia é de que uma maior representatividade nas telas em papéis fora dos estereótipos pode ajudar meninas a buscar esse tipo de carreira, e a pesquisa mostra que uma presença maior das mulheres em posições com poder de decisão é algo que pode ajudar.

Lembrando que não estamos falando de algum tipo de conspiração masculina para deixar as mulheres de fora: em muitos casos as pessoas sequer são conscientes dessa baixa representatividade, um pouco como no caso de quem nada a favor da correnteza e não percebe que está sendo ajudado.

Di Nonno também deixou algumas recomendações a produtores de conteúdo e pais:

- Após escrever um roteiro, antes de começar o casting, simplesmente risque alguns nomes masculinos e os troque por nomes femininos. É um bom começo para escrever personagens não estereotipados.
- Se tiver alguma cena de multidão, especifique no roteiro que 50% do cast deve ser de mulheres. Hoje em dia, apesar de serem metade da população, as mulheres ainda são só 17% das pessoas nessas cenas.
- Como pais, mães e outras pessoas que convivem com crianças, assista o que eles estão assistindo. Não os censure ou proíba, mas converse com eles sobre as situações que ali aparecem. Crianças pequenas ainda não têm senso crítico (ainda que a internet mostre que muito adulto também não), os adultos de suas vidas podem ajudá-los a desenvolver esse senso pouco a pouco.

Conheça a campanha “See Jane” (em inglês):


Depois dessas conversas, fiquei tentando lembrar quais eram os meus personagens femininos favoritos na TV quando criança e adolescente, e o resultado foi:

Penélope Charmosa, As Panteras (quanta briga com minhas primas para ser a personagem da Jaclyn Smith nas nossas brincadeiras), A Mulher Biônica, Mulher Maravilha, Kate Mahoney e a capitã Morgan Adams.

E os seus modelos, quais foram? Você acha que influenciaram de alguma forma a sua maneira de ver o mundo e suas escolhas?

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No próximo post: Melissa Rosenberg falando sobre o Processo Criativo na série Jessica Jones, Howard Gordon falando sobre personagens cativantes como Jack Bauer e Carrie Mathison e sobre a influência dos novos formatos nas narrativas de séries, além de Steve Golin falando sobre seus critérios de escolha para a produção de sucessos como O Regresso e Spotlight. Stay tuned ;-)

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Em tempo: O Rio Content Market já tem data e alguns nomes confirmados para a sua próxima edição, agendada para os dias 8 a 10 de março de 2017.

Outros links:

- A origem do Teste de Bechdel;
- Análise da relação entre orçamento, aprovação no teste de Bechdel e ROI de filmes lançados entre 1990 e 2013;
- “A Vida que Não Cabe“: documentário sobre transexualidade no Brasil;
- “Eu, Trans“: especial sobre transfobia no Brasil.

Pense Nisso!
Cíntia Citton

Cíntia Citton é consultora de Inovação e facilitadora de cursos de Design Thinking e Modelagem de Negócios. Já trabalhou em Gestão Estratégica, Comércio Internacional e Organização de Eventos no Brasil, França, Alemanha e Espanha. Foi moderadora em eventos como o Iguassu Social Media, palestrante no Curitiba Social Media 2014 e foi voluntária na organização e mentorias de eventos Startup Weekend. É colaboradora do Pensar Enlouquece nas áreas de Inovação e Empreendedorismo.

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Pense Nisso! Alexandre Inagaki

Alexandre Inagaki é jornalista e consultor de comunicação em mídias digitais. É japaraguaio, cínico cênico. torcedor do Guarani Futebol Clube e futuro fundador do Clube dos Procrastinadores Anônimos. Já plantou semente de feijão em algodão, criou um tamagotchi (que acabou morrendo de fome) e mantém este blog. Luta para ser considerado mais do que um rosto bonitinho e não leva a sério pessoas que falam de si mesmas na terceira pessoa.

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